Uma propaganda de bebida informa que se trata de “uma cerveja que desce redondo”. Não poucos estudiosos se debruçaram sobre essa fr...

Descer redondo?

praia cerveja
Uma propaganda de bebida informa que se trata de “uma cerveja que desce redondo”. Não poucos estudiosos se debruçaram sobre essa frase, para concluir que redondo está aí como advérbio e que, portanto, não há concordância com cerveja, já que os advérbios são palavras normalmente invariáveis (os casos de flexão com advérbio são raros, mas existem, como, por exemplo, em “ela estava toda nua”, em que toda, embora advérbio, com o sentido de totalmente, se flexiona no feminino; compare-se “toda nua”
com “todo-poderosa”, em que todo não varia).

Embora a conclusão dos estudiosos que admitem a não concordância de redondo na frase da propaganda de cerveja seja defensável, é melhor refletirmos um pouco sobre a distinção básica entre adjetivo e advérbio, a partir das definições clássicas dessas duas classes de palavras. O adjetivo é a palavra variável que determina ou caracteriza um substantivo ou pronome; o advérbio é a palavra quase sempre invariável que caracteriza ou determina um adjetivo, um verbo ou outro advérbio. Por terem funções qualificadoras, confundem-se às vezes, e não raro um adjetivo se usa em lugar de um advérbio, naturalmente sem flexão.

A partir das definições acima, contudo, é possível explicar por que são consideradas agramaticais as frases abaixo (o asterisco indica a agramaticalidade da frase):

1* A chuva caía barulhento (isto é, barulhentamente).
2* Ela desceu apressado as escadas (isto é, apressadamente).
3* Maria fuma desesperado (isto é, desesperadamente).
4* Ela aguarda ansioso o resultado do exame (isto é, ansiosamente).
5* Ela reagiu bravo à provocação (isto é, bravamente).
É também possível, pelas definições acima, explicar por que são boas as seguintes frases:

6 Ela anda rápido (isto é, rapidamente).
7 Eles batem forte (isto é, fortemente).
8 Ela discursou bonito (isto é, de maneira bonita).
Ocorre que o adjetivo, quando usado em função adverbial, se associa ao verbo, como nos três últimos exemplos: se digo que Maria fala bonito, o bonito não se associa ao sujeito Maria, mas ao modo de falar, uma vez que uma pessoa feia pode falar de jeito bonito. Uma pessoa não precisa ser forte para bater com força. Portanto, em “Eles batem forte”, a ação é que é exercida fortemente.

Nos primeiros exemplos, “*A chuva caía barulhento” ou “*Ela desceu apressado”, barulhento e apressado não podem ser advérbios, porque se referem especificamente a qualidades do sujeito. São adjetivos e, por isso, variam: Ela é que é apressada ao descer; a chuva é que faz barulho ao cair. Portanto somos obrigados a fazer a concordância:

1A chuva caía barulhenta.
2Ela desceu apressada as escadas.
3Maria fuma desesperada.
4Ela aguarda ansiosa o resultado do exame.
5Ela reagiu brava à provocação.
Quando dizemos “A Lua vai alta no céu”, alta é adjetivo referente a Lua, não pode ser um advérbio e não se refere ao verbo ir.

Em alguns casos, o uso do adjetivo pelo advérbio leva a interpretações dúbias. Na frase “Eles fizeram o trabalho independente de orientação”, o independente pode ser interpretado como adjetivo
(e, nesse caso, se refere a trabalho) ou como advérbio (e, nesse caso, se refere ao ato de fazer).

Com relação à frase da propaganda de cerveja, é óbvio que redondo não se refere ao verbo descer, mas à qualidade da cerveja. Não existe uma ação redonda. A redondeza é a da cerveja que, por ser líquida, se adapta ao recipiente que a contém e acompanha a anatomia circular da garganta.

Observe-se que as restrições aqui expostas dizem respeito ao uso do adjetivo em função adverbial, e não ao uso do advérbio, como se pode perceber pelos exemplos precedidos de asterisco: são frases agramaticais quando apresentam o adjetivo em função adverbial, mas são frases perfeitamente aceitáveis quando se substitui o adjetivo adverbializado pelo advérbio ou pela locução adverbial (que aparece entre parênteses no final de cada exemplo). Tornemos mais claro este ponto.

Observemos as duas frases seguintes:

9Ela anda rápido.
10*Ela anda esfomeado.
Na primeira frase — Ela anda rápido —, eu posso dizer rápido em lugar de rápida, porque a referência à ação é óbvia. É a ação de andar que é rápida. Mas também posso fazer a concordância no feminino para indicar que ela é rápida quando anda. No segundo exemplo — *Ela anda esfomeado —, seria tolice pensar que o ato de andar é que é esfomeado. Por isso a concordância tem de ser feita exclusivamente no feminino: “Ela anda esfomeada”.

Quando vemos uma bola rolar no campo, devemos dizer que “Ela corre redonda”, pois a referência é à bola e não ao ato de correr. Portanto o mais adequado é dizer que “A cerveja desce redonda”, e não “redondo”. Com todo o respeito que tenho pelas opiniões em contrário.

Se o leitor estiver interessado em maiores explicações, recomendo a leitura do eruditíssimo estudo “Adjetivo e advérbio”, de Harri Meier, incluído nas páginas 61-127, do livro Ensaios de filologia românica I (3. ed. Rio de janeiro: Grifo, 1974).

Mas, seja como for, a frase da propaganda atingiu em cheio o seu objetivo em termos de marketing: provocou celeuma e fez a festa da cerveja...
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José Augusto Carvalho, Mestre em Linguística pela Unicamp e Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, é autor de várias obras sobre língua portuguesa, entre as quais Pequeno Manual de Pontuação em Português (2.ed. 2013) e Estudos sobre o Pronome (2016), ambas pela editora Thesaurus, de Brasília

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