“Morte, morte, morte, que talvez seja o segredo desta vida”Raul Seixas (Canto para a minha morte, 1976)
Oitenta. Essa seria a idade a ser comemorada hoje. Raul Santos Seixas nasceu, pois, a 28 de junho de 1945 e, menos de três meses depois, terminava a segunda guerra mundial (considerado o ato de rendição formal do Japão, em 2 de setembro).
Raul Seixas, 1950s
Raul nasce, assim, sob a influência marcante do meio social terreno, em que a guerra modificou o panorama coletivo e provocou marcantes transformações, influenciando todo o porvir. Há nesse espectro, a necessidade de entender e conciliar cinco das leis universais aplicáveis ao fato em si (guerra) e suas consequências temporais: conservação, destruição, progresso, sociedade e justiça, amor e caridade. Por extensão, o mundo não foi mais o mesmo (inclusive cotejando não somente uma, mas as duas guerras mundiais) e a individualidade e a coletividade passam a viver sob sua influência permanente: a sociedade e seus efeitos em relação aos indivíduos.
E, reciprocamente, as diferenças humanas, que são do Espírito, imortal, não são originárias do nascimento (vida físico-material), mas do conjunto de experiências das vidas sucessivas (sob a regência, para quem a aceita e entende, de outra lei, a da reencarnação). Eis aí a chave para entender porque alguns humanos são tão importantes para alterar contextos e influenciar o (no) progresso!
Raul Santos Seixas (1945—1989), cantor, compositor, produtor e multi-instrumentista baiano, nascido em Salvador. ▪ Imagem: Div.
E Raul, sim, é uma influência marcante na vida brasileira, da filosofia à prática, das relações interindividuais às transpessoais, do micro ao macro, do uno ao todo e ao uno, consequentemente. Note-se que ele se “auto alcunhou” em inúmeras de suas poesias-canções: o Carimbador Maluco, Gita, Metamorfose Ambulante, Maluco Beleza, Cowboy fora da lei, Maçã...
Ele sabia disso, intimamente, quando escreveu: “Eu nasci há dez mil anos atrás” (1976), complementando em tom poético (ainda que pudesse soar como soberba): “E não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais”. É Raul! Sabemos tudo o que se conforma ao nosso ângulo de visão, da posição em que nos encontramos, e sujeito às mutações, no instante seguinte. E este momento ulterior, provocará a racionalidade de observar entendendo e tendo ciência (ainda que relativa, claro!) do que surgiu em nossa frente. Meio socrático, isto, já que saber é não saber! Ou o que se sabe permite divisar um UNIVERSO em relação ao que (ainda) não se sabe... E o “saber demais” da poesia raulziana, destarte, é muito mais uma provocação para que possamos transcender...
Raul, como nós, foi – e vai, porque segue no pós-vida – continuando a aprender “o segredo da vida”, inclusive na meditação sobre os dias idos, “vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar”. Nesta sabedoria, ele nos impele ao progresso, quando “chacoalha” a mesmice do conformismo: “Eu não posso entender tanta gente aceitando a mentira” (Medo da Chuva, 1974).
Afinal, ele, como nós, repetimos as mesmas perguntas: “Quem eu sou? De onde venho? E aonde vou dá?” (Eu também vou reclamar, 1976). Na mesma canção, um “esboço” da resposta: “E sendo nuvem passageira, não me leva nem à beira disso tudo que eu quero chegar”.
No palco da existência humana, diante da materialidade terrena, o músico também enunciou: “Quem vai ficar? Quem vai partir?”. Isto porque “o trem está chegando, tá chegando na estação”, e neste trem espiritual, uns vem, outros vão, destacando que “não precisa passagem, nem mesmo bagagem no trem”, que segue em frenética frequência, quando soa “o sinal das trombetas”, de O trem das 7 (1984).
E, aos que seguem: “Boa viagem, até outra vez”, porque, nem sempre é possível seguir junto, ainda que, Raul dissesse (e quem não disse, diante da morte de um ente querido?): “O que eu queria mesmo era ir com vocês” (O carimbador maluco, 1983).
Raul Seixas nasceu soteropolitano e viveu intensos quarenta e quatro anos, morrendo em São Paulo a 21 de agosto de 1989. Compositor, cantor e multi-instrumentista, produtor musical, é considerado um dos pioneiros do rock brasileiro. Gravou dezessete discos em 26 anos de carreira. Se tivéssemos que eleger um epíteto para identificar o personagem, na música e fora dela, como ativista social — porque suas letras e suas performances, além das inúmeras entrevistas que concedeu o demonstram – Raulzito seria a própria Metamorfose ambulante (1973),
pois abominava ter “aquela velha opinião formada sobre tudo”. Nunca deveríamos esperar de Seixas a rotina da constância, a zona de conforto e a certeza imutável, pois o mundo gira e gira sempre...
Não foi, pois, uma “vida longa”, mas foi uma “longa vida”, por tudo o que experienciou, na música e fora dela. Não temia, como grande parte dos encarnados, o ato de morrer: “A morte, surda, caminha ao meu lado, e eu não sei em que esquina ela vai me beijar”. E, diante da imprecisão, do inesperado, do “destino”, ele ainda exortou: “Será que ela vai deixar eu acabar o que tenho de fazer?” (Canto para a minha morte, 1976). Não, Raul, ela não deixou, nem deixa, para cada um de nós. Mas é um adiamento, para voltar e retomar o que “faltou” dizer ou fazer...
Raul primava pela liberdade (a própria e a dos outros). Não fazia nenhuma ode ao personalismo interminável das vaidades humanas, reconhecendo a qualidade espiritual de ser livre: “Então vá, faz o que tu queres, pois tudo é da lei!”, justamente porque “todo homem, toda mulher é uma estrela” — olha a igualdade aí! (Sociedade alternativa, 1974).
Foi, ele, um Cowboy fora da lei (1987), mas não queria “provar nada”, nem “entrar para a história”, para não ter que “morrer dependurado numa cruz”, como o Magrão!
O que pensava sobre o amor? Algo universal, amplo, dinâmico, efetivo, ainda que pudesse ser apenas visto, em sua letra (A maçã, 1975) como algo profano e promíscuo: “Amor só dura em liberdade”, e “Se esse amor ficar entre nós dois, vai ser tão pobre, amor... vai se gastar”. O amor há de alcançar todas as quadrâncias, todos os alcances, todas as individualidades: “Porque quem gosta de maçã, irá gostar de todas, porque todas são iguais”. Amemos (todas) as maçãs, então...
O amor é, raulzianamente, o “Máximo Denominador Comum” de cada um de nós, viventes (Tu és o MDC da minha vida, 1975).
Seixas enxergava uma divindade dinâmica – e não prostrada e encastelada em um trono divinal. Ele descreve seu percurso, até o “encontro”: “Andei rezando para Totens e Jesus, jamais olhei pro céu” (S.O.S., 1974). E, em Gita (1974), toda a magia do entendimento do “Deus em nós” torna-se randômico e imprevisível: “Eu sou feito da terra, do fogo, da água e do ar”. Porque “eu sou a luz das estrelas, eu sou a cor do luar, eu sou as coisas da vida, eu sou o medo de amar”. Ele é tudo, ou está em tudo. No que “é bom ou ruim”, naquilo que temos “todo dia”. Incrível, porque ao nos afastarmos dessa essência, logo, em seguida, vamos lhe buscar, novamente: “Mas saiba que eu estou em você, mas você não está em mim”, uma “reprimenda” elucidativa e amorosa...
Por isso, não posso terminar esse ensaio – que é de gratidão à presença marcante de Raul Seixas em nossas vidas (na minha, notadamente, e, espero, também na sua, leitor!), dizendo que havia, na espiritualidade camaleônica de Raulzito, espaço não para a idolatria de um Deus criado pelo homem, concedente das “regalias” e das “virtudes” humanas, mas uma essência prévia e primeira, presente em nós, e influente em nossos atos, no sentido progressivo do termo. Porque ele não se conformava em ter que, genuflexoriamente, se curvar diante de um Deus-humano. Pois, rebeldemente, disse: “Eu devia agradecer ao Senhor por ter tido sucesso na vida como artista [e] [...] finalmente vencido na vida”. Entretanto, “eu acho isso uma grande piada e um tanto quanto perigosa”.
E a explicação é a marca não só do “Maluco Beleza”, mas de todos os que não se encastelam em suas posições atuais (tidas como definitivas): “E agora eu me pergunto: — e daí? Eu tenho uma porção de coisas grandes pra conquistar, e eu não posso ficar aqui parado!” (Ouro de Tolo, 1973). Isto porque não somos – nem podemos ser — “formigas que trafegam sem porquê” (S.O.S., 1974).
Jamais estaremos, meu querido Raulzito. As coisas para conquistarmos, espiritualmente, em todos os quadrantes, nascem a cada dia! Como, mesmo “o início, o fim e o meio”, de Gita (1974).
E, no futuro, “no dia em que a Terra” parar, não terá sido um “sonho de sonhador” (O dia em que a Terra parou, 1977): teremos cumprido o nosso desiderato! Ainda que existam outros mais a realizar, em outras plagas...
E seguiremos indo e vindo, porque “há tantos caminhos, tantas portas” e “tudo acaba onde começou” (Meu amigo Pedro, 1976).
Então, toca Raul! “E fim de papo!” (Eu também vou reclamar, 1976).