O cisne não canta antes de morrer, afirma Pablo Neruda no seu livro autobiográfico Confesso que vivi . O avestruz não enfia a cabeça n...

Por que cuspido e escarrado?

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O cisne não canta antes de morrer, afirma Pablo Neruda no seu livro autobiográfico Confesso que vivi. O avestruz não enfia a cabeça na areia para esconder-se do mundo, segundo a crença popular. Na verdade, o avestruz envia a cabeça na areia para comer. As aves costumam comer areia para ajudar na digestão. Charles de Gaulle não disse que o Brasil não era um país sério. Quem o disse foi o embaixador Carlos Alves de Sousa, por ocasião da Guerra da Lagosta.
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Joseph-Ignace Guillotin ▪ 1738—1814
O Dr. Joseph-Ignace Guillotin (1738-1814) não morreu guilhotinado. Antes da guilhotina, a execução era levada a efeito com espada ou com machado, além do uso da forca e da roda. Nem sempre a espada matava do primeiro golpe, e nem sempre a mão do carrasco era firme o bastante para acertar com o machado no lugar certo. A vítima sofria vários golpes antes de morrer, e sua agonia era prolongada. Para evitar esses massacres desumanos, o médico Guillotin propôs à Assembleia Nacional, em 1789, a utilização de um instrumento que decapitava sem torturar e a que chamou de Mirabelle, em homenagem ao seu amigo Mirabeau, que defendia seu projeto. Inicialmente, a lâmina era em forma de lua crescente. O primeiro a construir a guilhotina sob encomenda foi Tobias Schmidt, inventor do escafandro, mas foi Luís XVI que, no final do ano de 1791, deu à lâmina a forma triangular, talhada obliquamente. Por isso, a guilhotina, inicialmente, era chamada de Louison ou Louisette, em homenagem ao rei que a redesenhou e que — ele, sim, — acabou sendo vítima dela. A primeira cabeça a ser cortada pela guilhotina foi a do bandido Nicolas Jean Pelletier, no dia 25 de abril de 1792. No sul da França e na Itália, contudo, durante o século XVI, era usado um instrumento semelhante, que decapitava sem torturar, e ao qual se dava o nome de mannaja.

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A execução de Maria Antonieta, Anon., S.XIX
Há, portanto, ideias falsas que se espalham e se aceitam como se fossem verdadeiras. Por isso, muita gente pensa que "cuspido e escarrado", que designa semelhança, se origine de uma corruptela de "esculpido e encarnado" ou de "esculpido em carrara". Essa ideia errônea foi espalhada no início do século XVII, em 1606, por um de nossos primeiros gramáticos, chamado Duarte Nunes de Leão, no livro Origem da língua portuguesa (4.ed. de José Pedro Machado. Lisboa: Pro Domo, 1945, p. 303; ou 1.ed de Maria Leonor Carvalhão Buescu. Lisboa:Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1983, p. 295, edição que inclui também a Ortografia da língua portuguesa). Disse ele, no cap. XVIII, intitulado "De alguns vocábulos que são os plebeios, ou idiotas que os homẽs polidos não devem vsar na listagem, em ordem alfabética: "Cuspido, a seu pay, por esculpido, ou semelhante'."

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V. Surikov, 1888
Não foi, no entanto, essa a origem da expressão. O cuspo é símbolo de criatividade e também de destruição. Jesus curou um cego com sua saliva (João, 9, 6). A saliva é considerada uma secreção com poderes mágicos ou sobrenaturais que cura ou corrompe, que une ou dissolve, que adula ou insulta (Cf. Dictionnaire des symboles, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Paris: Robert Laffont / Jupiter, 1982, s.v.). Os animais lambem suas feridas porque intuitivamente sabem que a saliva tem poder cicatrizante. Segundo Ernout e Meillet, no seu Dictionnaire étymologique de la langue latine (Paris: Klincksieck, 1967 s.v. spuo), o cuspe, na crença popular, tinha um valor apotropaico, i.e., um valor que afugenta os males, daí o sentido físico e moral de despuo (afastar um mal, cuspindo). O espanhol tem o verbo escupir (de conspuere), e no antigo francês existia o verbo dialetal escopir. É possível que a semelhança fônica com sculpere, "esculpir", tenha ajudado a confundir o falante. O verbo esculpir vem de sculpere; em francês, o verbo sculpter é uma restauração de sculper, a partir de sculpteur, segundo Bloch e Wartburg (Dictionnaire étymologique de la langue française. Paris: Presses Universitaires de France, 1975, s.v. sculpteur). O falante francês, antes dessa restauração, certamente,
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A. Maurer, 1928
além de associar algo bom ao cuspe, passou a usar o termo também como sinônimo de semelhança.

O verbo cracher, em francês, significa "escarrar", e desde 1464, segundo o Larousse, já é usado com o sentido também de semelhança: "C'est son portrait tout craché, c'est lui tout craché, c'est son portrait très ressemblant", ensina o Dictionnaire de la langue française Larousse - Lexis, direção de Jean Dubois, 1993, s.v. (Tradução: "É seu retrato cuspido, é ele cuspido, é o retrato parecidíssimo dele."). Foi da França que essa significação de semelhança dada ao escarro se espalhou: em inglês, o verbo to spit também tem essa conotação. O Dicionário inglês-português (Webster's), de Antônio Houaiss (Rio de Janeiro: Record, 1982, s.v. spit) registra a expressão "the spit and image of" com o sentido de "ser o retrato escarrado de, ser o retrato escrito e escarrado de". Ora, se "cuspido e escarrado" fosse corruptela de "esculpido e encarnado", como se explicariam as expressões cracher e spit, do francês e do inglês, que significam "cuspir" e, ao mesmo tempo, "semelhança física"? E como se explicaria que a palavra portuguesa crachá, originária do francês crachat, que significa "escarro", denote identificação? Afinal, o crachá é um cartão que as pessoas trazem preso ao peito com dados identificadores.

A expressão "cuspido e escarrado" não veio, portanto, da corruptela de "esculpido e encarnado", mas do verbo cuspir mesmo, reforçado pelo sinônimo escarrar. A origem remota da expressão está, portanto, na simbologia do cuspe. O que houve em português foi o acréscimo de "escarrado" à expressão "cuspido", como reforço que não ocorreu em outras línguas.

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José Augusto Carvalho, mestre em Linguística pela Unicamp e doutor em Língua Portuguesa pela USP, é autor de vários livros sobre língua portuguesa, como Gramática Superior da Língua Portuguesa (Brasília: Thesaurus, 2011), Pequeno Manual de Pontuação em Português (Brasília: Thesaurus, 2013) e Estudos sobre o pronome (Brasília:Thesaurus,2016).

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