No programa desta noite, vi que apareço como professor. Achei adequado e oportuno. Falar em es...

No Sol das Letras

magisterio professor ensino portugues
No programa desta noite, vi que apareço como professor. Achei adequado e oportuno. Falar em escritor esconderia uma qualificação mais condizente com o meu trabalho, e por meio da qual me reconheço. A escrita sempre apareceu como uma atividade complementar aos estudos e às leituras para o desempenho em sala de aula.

Vindo de uma família de professores, eu não poderia escapar a essa determinação, que era alimentada pelo que eu via em casa ao acompanhar a rotina profissional do meu pai e da minha mãe. A literatura parecia mais uma idealização, um sonho motivado pela frequência aos romances e às crônicas que eu costumava ler. Veio sobretudo da preferência pelos cronistas (e destaco entre eles Rubem Braga) o desejo de produzir textos como aqueles, cheios de lirismo, humor e por vezes reflexões sobre a vida.

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Rubem Braga Biblioteca Pública do Paraná
Diante disso, fiz-me autor de crônicas, mandando desde cedo meus textos para os jornais da capital. Cheguei a assinar colunas n’A União, em O Norte e o no Jornal da Paraíba; o resultado dessa produção apareceu em cinco livros. Concomitantemente a isso, continuava com as minhas atividades docentes. Antes de me tornar professor universitário, dei aulas de português atuando em cursinhos, e posso dizer que neles tive as melhores lições sobre como ensinar.

Se enfatizo o ensino da língua portuguesa, é porque comumente se associa a prática literária a certo desprezo pelo uso da norma. De fato, gramática e estilo não combinam; uma estabelece regras, o outro promove desvios que visam à expressividade. No entanto, o conhecimento do que é considerado certo serve, conscientemente ou não, de referência para as escolhas que promovem o efeito literário. Millôr Fernandes observa com espírito que:

“Se não houver norma, não há como transgredir. A língua tem variantes, mas temos de ensinar a escrever o padrão.”
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Millôr FernandesCynthia_Brito
Como escrevi em texto para o portal “Língua e Tradição”, criado por Fernando Pestana e do qual participam linguistas e professores de português, “desconhecer a gramática é como pretender que um corpo se mantenha de pé sem a espinha dorsal. Limitar-se a ela, contudo, é preservar-lhe apenas o esqueleto. O texto, como todo organismo, necessita de ossos e também de músculos, pele, nervos, tendões. É da articulação desses elementos que ele obtém a eficiência e a sedução com que envolve o leitor”.

Toda língua tem normas que disciplinam o seu uso racional. “Dominar a lógica da gramática”, observa Francine Prose, “contribui para a lógica do pensamento.” E permite que se avaliem as escolhas de léxico, pontuação, sintaxe, que não apenas favorecem a correção, como são importantes para a expressão de necessidades, desejos, estados de alma. Essa gramática é inicialmente transmitida no contato social, mediante analogias que a criança estabelece a partir do que ouve dos usuários adultos.

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Francine Prose David Shankbone
O importante é que o bom senso prevaleça no ensino da língua. A gramática constitui um arcabouço orientado pela racionalidade. Estabelece normas que vigoram, digamos, em situações genéricas, ideais. A dinâmica da língua, sobretudo em produções nas quais prevalece o estilo, promove um afrouxamento das determinações gramaticais. Nesse caso é preciso prudência na hora de definir o que é certo e o que é errado (ou melhor, o que tolerável e o que não é). Não me refiro apenas ao domínio das figuras, que constituem desvios, por assim dizer, codificados; falo, por exemplo, das pequenas liberdades atinentes aos vários registros e que se revelam na regência, na concordância, na pontuação e obviamente no vocabulário.

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Celso Cunha ABL
Sei que esse tópico é maçante e não vou prolongá-lo. Se o enfatizo é também porque, durante muito tempo, a prática docente me pareceu um empecilho para o exercício da literatura. Como se o apego às lições de Celso Cunha, Rocha Lima ou Evanildo Bechara determinasse uma rigidez incompatível com a flexibilidade desejável na produção de crônicas ou mesmo de alguns “pecados poéticos”. Essa ideia falsa me perseguiu por um bom tempo e era na verdade uma forma de justificar o largo envolvimento nas tarefas de professor e me perdoar pelo que eu não conseguia escrever.

O exercício do magistério terminou me conduzindo à UFPB, onde passei a ensinar a partir de 1978. Isso depois de ter lecionando em cursinhos pré-vestibulares por cinco anos e ter feito durante quase quatro o curso de Medicina – um equívoco que me custou caro em termos emocionais. Não foi fácil deixar o curso médico e me transferir para Letras e, como é de supor, sofri grande pressão social – e, um pouco menos, familiar.

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GD'Art
Comecei no Ciclo Básico, ensinando língua portuguesa, e ainda hoje agradeço à professora Maria Argentina (então chefe do DLCV) ter me destinado, entre mais dois colegas que a pleiteavam, a disciplina de Teoria da Literatura. Refletir sobre o literário a partir das ideias de Aristóteles, Horácio, Platão e outros pensadores basilares representou enorme enriquecimento para o jovem aspirante a escritor, que se deparou no estudo da tragédia com alguns dos conflitos fundamentais que obsediam a alma humana. Afinal, como disse Freud, Édipo é todo mundo.

No âmbito acadêmico, fiz Especialização em Literatura Brasileira e duas pós-graduações stricto sensu – um Mestrado sobre a produção autobiográfica de Antonio Carlos Villaça e um Doutorado sobre a poesia de Augusto dos Anjos. Mergulhei nos textos autobiográficos de Villaça para tentar desvendar a profunda crise que o levou a abandonar o mosteiro. O que me fascinou na sua escrita foi como ele, de forma corajosa e por vezes brutalmente honesta, desnudou a discrepância entre a romantização da vida religiosa e a realidade com que se deparou.

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Antônio Carlos Villaça ABL
Villaça ingressara no mosteiro com uma imagem idealizada da convivência entre os monges. Esperava encontrar um ambiente de elevação, de transcendência pura, onde cada gesto e palavra fossem permeados por uma beleza, digamos, sublime. No entanto, lá se deparou com uma realidade "crua e prosaica" – um cenário que colidia violentamente com as suas aspirações.

Um dos pontos de mais impacto que sua obra autobiográfica revela é a dimensão material e, por vezes, chocante do cotidiano monástico. Ele se deparou com cenas que contrastavam duramente com a sublimidade esperada: monges arrotando ou emitindo outro tipo de gases durante o Ofício das Matinas, por exemplo. Essa exposição a uma corporalidade crua e "imperfeita" durante um momento de suposta comunhão divina foi um choque para sua visão estetizada da religião. Era como se a humanidade mais básica e até vulgar invadisse o espaço do sagrado, quebrando a harmonia e a perfeição que ele projetava.

Além da desilusão com a dimensão física, Villaça também se viu imerso em um ambiente onde a "luta pelo poder" era uma constante, muitas vezes disfarçada sob o véu da humildade e da devoção. Essa hipocrisia institucional, essa tensão entre o ideal de serviço e a busca por controle, minou ainda mais a sua fé. Ele percebeu que o mosteiro não estava imune às
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Antônio Carlos Villaçal\Biblioteca Nacional
fraquezas humanas, às vaidades e aos jogos políticos. A autenticidade que buscava foi corroída pela percepção de que a vida monacal, por trás de suas aparências, reproduzia conflitos e interesses bem mundanos.

Minha contribuição, portanto, foi a de mostrar como Villaça, através de sua escrita autobiográfica, transformou essa desilusão em matéria-prima literária. Ele não apenas registrou sua saída do mosteiro, mas elaborou poeticamente o impacto dessa "travessia" de um ideal para a realidade. Mostrei como a literatura, nesse caso, não foi apenas um diário de sua dor; foi também um instrumento para ele se questionar, denunciar e, finalmente, poder se redimir fora dos muros do mosteiro. Saindo de lá, virou uma espécie de cidadão do mundo, aberto à diversidade do convívio humano.

Na tese de Doutorado, publicada posteriormente com o título de “O evangelho da podridão”, procurei estudar a representação da culpa e da melancolia na poesia de Augusto dos Anjos. Eu pretendia ter o paraibano como objeto da tese, mas hesitava quanto à linha teórica a utilizar. A resposta me veio após fazer dois cursos sobre psicanálise aplicada à literatura com a profa. Helena Parente Cunha. Os referidos cursos, que enfocavam a obra de Freud, Lacan,
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Julia Kristeva e outros, me deram subsídios para abordar o que sempre me impressionou em Augusto – a manifestação de um intenso sentimento de culpa, que transcende a esfera individual e se estende a toda a espécie humana.

Procurei em meu estudo não cair num psicologismo redutor, que seria tentar diagnosticar o poeta ou ver em sua obra um conjunto de sintomas psíquicos. Esse equívoco, por sinal, não é incomum nos que avaliam o paraibano e consideram a metafórica tuberculose referida em um de seus poemas como uma afecção pessoal, que o teria levado à morte. Se em cada escarro o eu lírico via “o retrato da própria consciência” (e com isso abstraía os bacilos de Kock), não se pode interpretar a doença na obra de Augusto como um dado meramente físico.

A Doença, no universo do Eu, é sobretudo a metáfora orgânica de um mal que se radica na alma. Leva à morte e à decomposição, num movimento articulado pelo Deus-Verme, que o poeta considera como um “fator universal de transformismo”. Nele as imagens muitas vezes "grotescas", "putrefatas" e "dissonantes" refletem a obsessão pelo corpo que se corrompe e expressam uma visão de mundo marcada pela consciência do pecado e da finitude. Vale ressaltar que essa ênfase no trabalho do verme revela um ponto de contato do paraibano com a poética de Charles Baudelaire, que largamente tematiza a "miséria da carne em putrefação".

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Schopenhauer CC0
Outra influência marcante é a de Schopenhauer, explicitamente citado em “O meu Nirvana”. Nessa composição Augusto se refere a uma manumissão, ou seja, a uma libertação ou alforria schopenhaureana, mediante a qual poderia se alhear da “obscura forma humana” por meio do pensamento e da meditação. Os versos refletem o propósito de transcender o invólucro carnal, físico e perecível, rumo à imortalidade das Ideias. Essa obsessão também se observa em autores como Cruz e Sousa; a diferença é que, no paraibano, a angústia é menos filosófica, genérica, e se traduz por uma representação antes de tudo corporal. A morte não é percebida como uma ausência futura, uma negação da vida, mas como uma presença que processualmente degrada o corpo e o consome. Daí a busca de transcendência como alternativa a isso.

Na nossa leitura, essa busca está ligada à expectativa de substituir o velho homem, marcado pela Falta, por um homem novo. Ao considerar a podridão um evangelho, como diz em “Monólogo de uma Sombra”, ele busca conciliar a ideia de deterioração com a de uma “boa nova” capaz de propiciar ao ser humano um recomeço. Além de arauto, ele ambiciona ser uma espécie de agente dessa transformação, ao se confundir com um novo Cristo para sacrificar-se pelos homens. Essa utópica esperança está claramente expressa no final de “Os Doentes”, um dos seus poemas fundamentais. Na visão do poeta, é a mancha pecaminosa de origem que impede ao ser humano a ascensão espiritual.

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Augusto dos Anjos CC0
Meus estudos sobre o poeta se prolongaram quando voltei da pós-graduação, com textos vinculados ao projeto de pesquisa “A Sombra em Eros: imagens da melancolia em escritores brasileiros”, apoiado pelo CNPq. Alguns desses textos enfeixei no livro “A Sombra e a Quimera; escritos sobre Augusto dos Anjos”, o qual contempla leituras sobre a obra do poeta não necessariamente vinculadas ao objeto da tese, e que destinei depois a um blog que criei sobre ele e pode ser consultado no endereço escritossobreaugustodosanjos.wordpress.com. A par desse lado acadêmico, como disse, tenho produzido crônicas, nas quais procuro aliar o comentário sobre fatos e pessoas a notas de humor. Nesse gênero publiquei cinco livros, um deles prefaciado por Antonio Carlos Villaça, que a certa altura observa: “Organicamente cronista, espontaneamente cronista, o autor possui naturalidade, vivacidade e um respeito pelo ser humano que logo nos cativa. E uma sinceridade que é porventura o seu traço diferencial mais gritante, mais nítido. Ele é ele mesmo. Chico é Chico.”

Peço desculpas se falei mais do que devia, mas era preciso, de algum modo, referir alguns aspectos da minha atuação docente e literária que justificam a homenagem de hoje. Agradeço a Helder Moura o convite, que não deixou de me surpreender, levando-se em conta a qualidade dos que têm sidos bafejados pelo calor deste sol literário. Um calor do qual emanam reconhecimento e fraternidade. Muito obrigado!

Texto lido por ocasião da homenagem que me foi feita na 103ª edição do Pôr do Sol Literário, promovida pela Confraria Sol da Letras em parceria com a APL.


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