No programa desta noite, vi que apareço como professor. Achei adequado e oportuno. Falar em escritor esconderia uma qualificação mais condizente com o meu trabalho, e por meio da qual me reconheço. A escrita sempre apareceu como uma atividade complementar aos estudos e às leituras para o desempenho em sala de aula.
Vindo de uma família de professores, eu não poderia escapar a essa determinação, que era alimentada pelo que eu via em casa ao acompanhar a rotina profissional do meu pai e da minha mãe. A literatura parecia mais uma idealização, um sonho motivado pela frequência aos romances e às crônicas que eu costumava ler. Veio sobretudo da preferência pelos cronistas (e destaco entre eles Rubem Braga) o desejo de produzir textos como aqueles, cheios de lirismo, humor e por vezes reflexões sobre a vida.
Rubem Braga Biblioteca Pública do Paraná
Se enfatizo o ensino da língua portuguesa, é porque comumente se associa a prática literária a certo desprezo pelo uso da norma. De fato, gramática e estilo não combinam; uma estabelece regras, o outro promove desvios que visam à expressividade. No entanto, o conhecimento do que é considerado certo serve, conscientemente ou não, de referência para as escolhas que promovem o efeito literário. Millôr Fernandes observa com espírito que:
“Se não houver norma, não há como transgredir. A língua tem variantes, mas temos de ensinar a escrever o padrão.”
Millôr FernandesCynthia_Brito
Toda língua tem normas que disciplinam o seu uso racional. “Dominar a lógica da gramática”, observa Francine Prose, “contribui para a lógica do pensamento.” E permite que se avaliem as escolhas de léxico, pontuação, sintaxe, que não apenas favorecem a correção, como são importantes para a expressão de necessidades, desejos, estados de alma. Essa gramática é inicialmente transmitida no contato social, mediante analogias que a criança estabelece a partir do que ouve dos usuários adultos.
Francine Prose David Shankbone
Celso Cunha ABL
O exercício do magistério terminou me conduzindo à UFPB, onde passei a ensinar a partir de 1978. Isso depois de ter lecionando em cursinhos pré-vestibulares por cinco anos e ter feito durante quase quatro o curso de Medicina – um equívoco que me custou caro em termos emocionais. Não foi fácil deixar o curso médico e me transferir para Letras e, como é de supor, sofri grande pressão social – e, um pouco menos, familiar.
GD'Art
No âmbito acadêmico, fiz Especialização em Literatura Brasileira e duas pós-graduações stricto sensu – um Mestrado sobre a produção autobiográfica de Antonio Carlos Villaça e um Doutorado sobre a poesia de Augusto dos Anjos. Mergulhei nos textos autobiográficos de Villaça para tentar desvendar a profunda crise que o levou a abandonar o mosteiro. O que me fascinou na sua escrita foi como ele, de forma corajosa e por vezes brutalmente honesta, desnudou a discrepância entre a romantização da vida religiosa e a realidade com que se deparou.
Antônio Carlos Villaça ABL
Um dos pontos de mais impacto que sua obra autobiográfica revela é a dimensão material e, por vezes, chocante do cotidiano monástico. Ele se deparou com cenas que contrastavam duramente com a sublimidade esperada: monges arrotando ou emitindo outro tipo de gases durante o Ofício das Matinas, por exemplo. Essa exposição a uma corporalidade crua e "imperfeita" durante um momento de suposta comunhão divina foi um choque para sua visão estetizada da religião. Era como se a humanidade mais básica e até vulgar invadisse o espaço do sagrado, quebrando a harmonia e a perfeição que ele projetava.
Além da desilusão com a dimensão física, Villaça também se viu imerso em um ambiente onde a "luta pelo poder" era uma constante, muitas vezes disfarçada sob o véu da humildade e da devoção. Essa hipocrisia institucional, essa tensão entre o ideal de serviço e a busca por controle, minou ainda mais a sua fé. Ele percebeu que o mosteiro não estava imune às
Antônio Carlos Villaçal\Biblioteca Nacional
Minha contribuição, portanto, foi a de mostrar como Villaça, através de sua escrita autobiográfica, transformou essa desilusão em matéria-prima literária. Ele não apenas registrou sua saída do mosteiro, mas elaborou poeticamente o impacto dessa "travessia" de um ideal para a realidade. Mostrei como a literatura, nesse caso, não foi apenas um diário de sua dor; foi também um instrumento para ele se questionar, denunciar e, finalmente, poder se redimir fora dos muros do mosteiro. Saindo de lá, virou uma espécie de cidadão do mundo, aberto à diversidade do convívio humano.
Na tese de Doutorado, publicada posteriormente com o título de “O evangelho da podridão”, procurei estudar a representação da culpa e da melancolia na poesia de Augusto dos Anjos. Eu pretendia ter o paraibano como objeto da tese, mas hesitava quanto à linha teórica a utilizar. A resposta me veio após fazer dois cursos sobre psicanálise aplicada à literatura com a profa. Helena Parente Cunha. Os referidos cursos, que enfocavam a obra de Freud, Lacan,
Procurei em meu estudo não cair num psicologismo redutor, que seria tentar diagnosticar o poeta ou ver em sua obra um conjunto de sintomas psíquicos. Esse equívoco, por sinal, não é incomum nos que avaliam o paraibano e consideram a metafórica tuberculose referida em um de seus poemas como uma afecção pessoal, que o teria levado à morte. Se em cada escarro o eu lírico via “o retrato da própria consciência” (e com isso abstraía os bacilos de Kock), não se pode interpretar a doença na obra de Augusto como um dado meramente físico.
A Doença, no universo do Eu, é sobretudo a metáfora orgânica de um mal que se radica na alma. Leva à morte e à decomposição, num movimento articulado pelo Deus-Verme, que o poeta considera como um “fator universal de transformismo”. Nele as imagens muitas vezes "grotescas", "putrefatas" e "dissonantes" refletem a obsessão pelo corpo que se corrompe e expressam uma visão de mundo marcada pela consciência do pecado e da finitude. Vale ressaltar que essa ênfase no trabalho do verme revela um ponto de contato do paraibano com a poética de Charles Baudelaire, que largamente tematiza a "miséria da carne em putrefação".
Schopenhauer CC0
Na nossa leitura, essa busca está ligada à expectativa de substituir o velho homem, marcado pela Falta, por um homem novo. Ao considerar a podridão um evangelho, como diz em “Monólogo de uma Sombra”, ele busca conciliar a ideia de deterioração com a de uma “boa nova” capaz de propiciar ao ser humano um recomeço. Além de arauto, ele ambiciona ser uma espécie de agente dessa transformação, ao se confundir com um novo Cristo para sacrificar-se pelos homens. Essa utópica esperança está claramente expressa no final de “Os Doentes”, um dos seus poemas fundamentais. Na visão do poeta, é a mancha pecaminosa de origem que impede ao ser humano a ascensão espiritual.
Augusto dos Anjos CC0
Peço desculpas se falei mais do que devia, mas era preciso, de algum modo, referir alguns aspectos da minha atuação docente e literária que justificam a homenagem de hoje. Agradeço a Helder Moura o convite, que não deixou de me surpreender, levando-se em conta a qualidade dos que têm sidos bafejados pelo calor deste sol literário. Um calor do qual emanam reconhecimento e fraternidade. Muito obrigado!
Texto lido por ocasião da homenagem que me foi feita na 103ª edição do Pôr do Sol Literário, promovida pela Confraria Sol da Letras em parceria com a APL.