Não conheço os trâmites legais para se adotar um camaleão. Mas quase me tornei tutor de um deles. Ele apareceu bem novinho e verdinho, um dia, em minha casa. Eu iria chamá-lo de Boy George, por causa do sucesso dos anos 80, “Karma Chameleon”, da banda Culture Club. Refletindo sobre toda a logística envolvida em sua criação e também acerca do perigo que ele representaria para Maria Catarina e Lola, as duas porquinhas-da-Índia do meu filho, desisti da ideia.
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O episódio prosaico me trouxe à lembrança outro ícone da literatura brasileira, Mário Quintana. Num relato escrito por ele, um menino, querendo fazer a coisa certa, resolve soltar seu peixinho de estimação no rio, acreditando estar restituindo-o à família biológica. Mas o animal, acostumado à vida do aquário e à companhia do amigo, morre afogado na própria saudade.
O texto de Quintana, escrito em prosa poética, é uma metáfora delicada e cruel ao mesmo tempo, ao mostrar que nem sempre aquilo que pensamos ser o melhor para o outro realmente o é.
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Cada um possui sua própria estrada de aprendizado, que só pode ser vivida por ele mesmo. As provas e dificuldades que cada pessoa enfrenta não são acidentes ou injustiças, mas etapas indispensáveis ao seu próprio crescimento. É muito comum agir assim em relação aos filhos, por exemplo. Contudo, às vezes, na tentativa de aliviar a dor de alguém, corremos o risco de retirar-lhe a lição necessária que a vida, em sua sabedoria, está tentando ensinar.
O que nos parece sofrimento inútil pode ser, na verdade, oportunidade de crescimento interior. O exemplo do Evangelho é claro, pois nem mesmo Jesus impôs a Sua vontade aos discípulos. Ele convidava, mas nunca obrigava. Mostrava o caminho, mas deixava a cada um a liberdade de segui-Lo ou não, num ensinamento profundo para todos nós, pois às vezes confundimos amor com domínio e auxílio com imposição.
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Até a prática do bem exige discernimento. A verdadeira bondade não é a que invade ou determina, mas a que orienta, aconselha, acompanha, consola e oferece apoio sem roubar do próximo a oportunidade de crescer. Ajudar não é sempre dar o que pensamos ser necessário, mas estar ao lado, com compreensão e paciência, enquanto o outro encontra as suas próprias respostas.
Ninguém deve carregar a cruz do outro o tempo todo, mas todos podemos oferecer o ombro amigo para que o peso se torne mais suportável. Essa é a diferença entre impor e amparar. Amar é respeitar o tempo e a experiência de cada ser, confiando na Providência Divina que conduz a todos rumo ao bem.
Quando sentimos vontade de interferir nas escolhas alheias, é oportuno recordar que a nossa visão é limitada, parcial. O que nos parece errado pode ser apenas uma etapa necessária, e o que julgamos certo pode não ser o caminho destinado ao outro.
Unsp
Como a realidade sempre supera a ficção e a imaginação, um dia li, numa revista judaica, o relato de uma experiência real entre pai e filho que me enterneceu muito. O pai, um judeu religioso, desejava que o seu filho seguisse a sua tradição espiritual, casando-se com uma moça judia, além de observar outros preceitos de sua fé. O jovem, porém, tinha os seus próprios planos e tomou como esposa uma gentia, discordando do pai também em vários outros temas. Eles se desentenderam e, depois, se afastaram.
Os anos se passaram, e um perdeu o rastro do outro. O casamento do filho chegou ao fim quando o “amor acabou”. Outras expectativas que tinha também não se confirmaram, e ele se recordou dos conselhos do seu pai, concluindo que tinha sido precipitado e injusto com ele no passado. Buscou então reencontrá-lo e descobriu que ele já havia falecido há algum tempo. Arrasado com a notícia, foi invadido por
Dylan Shaw
Sendo o ponto mais próximo do antigo Santo dos Santos, aqueles que visitam o Muro fazem orações silenciosas e, muitas vezes, escrevem seus pedidos, agradecimentos ou preces pessoais em pequenos papéis, que são colocados nas frestas entre as pedras. O filho planejou, então, escrever um bilhete e depositá-lo no Muro, na esperança de que chegasse a seu pai, aonde quer que estivesse. A mensagem não podia ser muito grande, por isso ele se limitou a dizer:
“Pai, hoje eu lhe peço perdão por ter sido impaciente e agressivo com você. Finalmente aprendi que o senhor me amava e sempre quis o melhor para mim. Gostaria de tê-lo ouvido mais. Perdoe-me e saiba que também o amo!”
GD'Art
“Filho querido,
Procurei-o em muitos lugares, mas nunca consegui encontrá-lo para pedir perdão. Por isso deixo aqui esta mensagem, confiando que D’us a levará até você.
Arrependo-me de não ter tido a sabedoria de respeitar as suas próprias escolhas. Fui rude e impulsivo, e não o ouvi.
Saiba que agora o compreendo e abençoo o seu destino e a sua identidade.
Receba o beijo do seu pai, que sempre o amará.”
Em relação a “Boy George”, o filhote de camaleão que não cheguei a adotar, espero não ter causado nenhum mal a ele, embora confesse sentir uma ponta de saudade pelo convívio que não chegamos a ter.