Não conheço os trâmites legais para se adotar um camaleão. Mas quase me tornei tutor de um deles. Ele apareceu bem novinho e verdinho...

O que é melhor para os outros?

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Não conheço os trâmites legais para se adotar um camaleão. Mas quase me tornei tutor de um deles. Ele apareceu bem novinho e verdinho, um dia, em minha casa. Eu iria chamá-lo de Boy George, por causa do sucesso dos anos 80, “Karma Chameleon”, da banda Culture Club. Refletindo sobre toda a logística envolvida em sua criação e também acerca do perigo que ele representaria para Maria Catarina e Lola, as duas porquinhas-da-Índia do meu filho, desisti da ideia.

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Despedi-me de “Boy George” soltando-o próximo ao canal do Parque Paraíba. Ele não correu para a liberdade, talvez com saudade dos vegetais frescos que lhe oferecia na residência improvisada, uma caixa grande de papelão. Em sua partida, tive a ligeira impressão de que me olhou com certa melancolia, antes de finalmente desaparecer em meio ao capinzal, “embarcado em nunca-mais”, como no parágrafo final do conto “Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon”, de José Cândido de Carvalho.

O episódio prosaico me trouxe à lembrança outro ícone da literatura brasileira, Mário Quintana. Num relato escrito por ele, um menino, querendo fazer a coisa certa, resolve soltar seu peixinho de estimação no rio, acreditando estar restituindo-o à família biológica. Mas o animal, acostumado à vida do aquário e à companhia do amigo, morre afogado na própria saudade.

O texto de Quintana, escrito em prosa poética, é uma metáfora delicada e cruel ao mesmo tempo, ao mostrar que nem sempre aquilo que pensamos ser o melhor para o outro realmente o é.

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Quantas vezes, movidos por nossos afetos e intenções mais sinceras, interferimos na vida alheia, convencidos de que sabemos o que é melhor para o outro? Na ânsia de ajudar, muitas vezes oferecemos conselhos apressados, impomos nossas visões ou até mesmo determinamos as escolhas que julgamos mais corretas.

Cada um possui sua própria estrada de aprendizado, que só pode ser vivida por ele mesmo. As provas e dificuldades que cada pessoa enfrenta não são acidentes ou injustiças, mas etapas indispensáveis ao seu próprio crescimento. É muito comum agir assim em relação aos filhos, por exemplo. Contudo, às vezes, na tentativa de aliviar a dor de alguém, corremos o risco de retirar-lhe a lição necessária que a vida, em sua sabedoria, está tentando ensinar.

O que nos parece sofrimento inútil pode ser, na verdade, oportunidade de crescimento interior. O exemplo do Evangelho é claro, pois nem mesmo Jesus impôs a Sua vontade aos discípulos. Ele convidava, mas nunca obrigava. Mostrava o caminho, mas deixava a cada um a liberdade de segui-Lo ou não, num ensinamento profundo para todos nós, pois às vezes confundimos amor com domínio e auxílio com imposição.

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Quando tentamos resolver pelo outro o que cabe a ele superar, podemos impedir o seu amadurecimento.

Até a prática do bem exige discernimento. A verdadeira bondade não é a que invade ou determina, mas a que orienta, aconselha, acompanha, consola e oferece apoio sem roubar do próximo a oportunidade de crescer. Ajudar não é sempre dar o que pensamos ser necessário, mas estar ao lado, com compreensão e paciência, enquanto o outro encontra as suas próprias respostas.

Ninguém deve carregar a cruz do outro o tempo todo, mas todos podemos oferecer o ombro amigo para que o peso se torne mais suportável. Essa é a diferença entre impor e amparar. Amar é respeitar o tempo e a experiência de cada ser, confiando na Providência Divina que conduz a todos rumo ao bem.

Quando sentimos vontade de interferir nas escolhas alheias, é oportuno recordar que a nossa visão é limitada, parcial. O que nos parece errado pode ser apenas uma etapa necessária, e o que julgamos certo pode não ser o caminho destinado ao outro.

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A melhor ajuda que podemos oferecer é a oração sincera e o apoio pontual, aceitando que amar não é ditar caminhos, nem proteger o outro de tudo, mas respeitar escolhas e destinos; não é impor soluções, mas cultivar a paciência de caminhar junto, na certeza de que cada um chegará ao lugar exato em que precisa estar.

Como a realidade sempre supera a ficção e a imaginação, um dia li, numa revista judaica, o relato de uma experiência real entre pai e filho que me enterneceu muito. O pai, um judeu religioso, desejava que o seu filho seguisse a sua tradição espiritual, casando-se com uma moça judia, além de observar outros preceitos de sua fé. O jovem, porém, tinha os seus próprios planos e tomou como esposa uma gentia, discordando do pai também em vários outros temas. Eles se desentenderam e, depois, se afastaram.

Os anos se passaram, e um perdeu o rastro do outro. O casamento do filho chegou ao fim quando o “amor acabou”. Outras expectativas que tinha também não se confirmaram, e ele se recordou dos conselhos do seu pai, concluindo que tinha sido precipitado e injusto com ele no passado. Buscou então reencontrá-lo e descobriu que ele já havia falecido há algum tempo. Arrasado com a notícia, foi invadido por
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Dylan Shaw
um imenso remorso. Tinha tanto a dizer, a declarar e a agradecer, mas não havia mais como. Foi quando se lembrou de um local de que o seu pai sempre falava: o Muro das Lamentações, em Jerusalém, um dos lugares mais sagrados para o povo judeu, o fragmento que restou do antigo Templo de Jerusalém, destruído pelos romanos no ano 70 d.C.

Sendo o ponto mais próximo do antigo Santo dos Santos, aqueles que visitam o Muro fazem orações silenciosas e, muitas vezes, escrevem seus pedidos, agradecimentos ou preces pessoais em pequenos papéis, que são colocados nas frestas entre as pedras. O filho planejou, então, escrever um bilhete e depositá-lo no Muro, na esperança de que chegasse a seu pai, aonde quer que estivesse. A mensagem não podia ser muito grande, por isso ele se limitou a dizer:

“Pai, hoje eu lhe peço perdão por ter sido impaciente e agressivo com você. Finalmente aprendi que o senhor me amava e sempre quis o melhor para mim. Gostaria de tê-lo ouvido mais. Perdoe-me e saiba que também o amo!”

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GD'Art
Saiu de onde morava e foi até Jerusalém cumprir o seu propósito. Chegando ao destino, teve dificuldades de encontrar uma fresta desocupada. Todas as reentrâncias do Muro estavam entupidas de bilhetes e cartas. Percebendo o espaço numa fenda logo acima de sua cabeça, esforçou-se para depositar sua mensagem. Na tentativa, fez pular um papel amarelado que já estava no local há algum tempo. Preocupado, rapidamente tentou devolvê-lo ao seu lugar original. Quando o pegou, contudo, achou a letra familiar. Era um bilhete escrito por seu pai. Sem conseguir acreditar na “coincidência” e com os olhos borbulhando em lágrimas, ele leu o texto que dizia:

“Filho querido, Procurei-o em muitos lugares, mas nunca consegui encontrá-lo para pedir perdão. Por isso deixo aqui esta mensagem, confiando que D’us a levará até você. Arrependo-me de não ter tido a sabedoria de respeitar as suas próprias escolhas. Fui rude e impulsivo, e não o ouvi. Saiba que agora o compreendo e abençoo o seu destino e a sua identidade. Receba o beijo do seu pai, que sempre o amará.”

Em relação a “Boy George”, o filhote de camaleão que não cheguei a adotar, espero não ter causado nenhum mal a ele, embora confesse sentir uma ponta de saudade pelo convívio que não chegamos a ter.

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