Onde está o extraordinário?

Quando vivi na Espanha, tinha um refrigerante favorito: Aquarius. Era minha bebida de referência, como é a Inka Cola para quem visita o Peru. Leve, menos doce que a maioria dos refrigerantes, Aquarius passava a ideia de hidratação, quase um meio-termo entre isotônico e refrigerante. Eu não me preocupava muito se era “saudável” ou não. Comprava sem precisar de propaganda.

Ainda assim, uma campanha da marca me chamou a atenção.

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O ano era 2006, e um spot exibido nos intervalos comerciais da TV espanhola mostrava Dom Justo Gallego, um senhor conhecido por construir, praticamente sozinho, sua própria catedral, com materiais reaproveitados e sem formação técnica, em Mejorada del Campo, perto de Madri.

O anúncio narrava sua história real e inspiradora, destacando dedicação, criatividade e perseverança. A ideia era mostrar o que havia de “extraordinário no comum”. O comercial fazia parte de uma campanha da bebida que apostava em histórias humanas para promover, de forma indireta, o produto.

O que vi me estimulou a visitar a Catedral de Dom Justo. Descobri que ele havia iniciado a construção em 1963. Por décadas, voluntários, colaboradores e espectadores iam e vinham, mas Dom Justo permaneceu fiel ao seu propósito, atravessando todo tipo de dificuldade.

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Resolvi visitar o “extraordinário”, onde diziam que ele estava. Saí de onde morava, passei de trem por Chamartín, segui de Cercanías até Coslada e fiz o último trecho de ônibus até Mejorada del Campo.

Cheguei por lá numa manhã de verão. Desci do ônibus ainda cedo, com o ar seco do clima castelhano me envolvendo assim que pus os pés no chão.

Antes de seguir, pedi informações a um funcionário da estação, que franziu levemente a testa quando mencionei a catedral. Apontou para fora, explicou qual ônibus de linha comum eu deveria pegar e comentou algo como:

“Allí hay una iglesia muy grande… rara.”

O ônibus não demorou. Era desses urbanos simples, bancos duros, janelas amplas. O trajeto durou algo entre vinte e trinta minutos, atravessando zonas residenciais, áreas semiindustriais e terrenos vazios. Nada indicava que eu me dirigia ao lugar extraordinário do anúncio.

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Já em Mejorada, perguntei novamente, agora a uma senhora que varria a calçada, onde ficava a catedral. Ela não hesitou. Apontou com a cabeça, não com o dedo, e disse: “Siga reto. Você vai ver.”

O percurso foi de quinze ou vinte minutos a pé. Caminhei por ruas baixas, de casas simples e muros claros. Não havia placas. Nenhuma seta. Nenhuma mediação institucional.

Então, ela apareceu: um monumento improvável, com volumes que não obedeciam a manual algum. Vergalhões expostos, tijolos de origens distintas. Grande, mas não solene.

Dom Justo ainda estava por lá, trabalhando, recebendo turistas, jornalistas e curiosos em geral, todos atraídos pela propaganda recente. E o vi entre torres inacabadas, colunas improvisadas e cúpulas que mais pareciam sonhos sustentados por teimosia, numa “catedral” que era, por si só, um milagre.

Ele não tinha se deslumbrado com a fama súbita. Acostumado ao entusiasmo passageiro dos voluntários ocasionais, persistia em sua obra. Um idoso determinado, com roupas simples. Um homem pequeno diante de algo imenso e, ainda assim, maior do que tudo aquilo.

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Observei-o enquanto labutava devagar. Tive receio de interrompê-lo.

Em certo momento, percebeu minha presença. Levantou os olhos e me ofereceu um aceno breve e cordial. Não precisou dizer palavra alguma para me ensinar que a persistência pode ser mais revolucionária do que qualquer discurso.

Lembrei-me de Dom Justo neste Natal. Ele partiu para a catedral celestial em 28 de novembro de 2021, aos 96 anos, deixando sua obra inacabada aos cuidados da organização católica Mensageiros da Paz.

A catedral não tem reconhecimento oficial da Igreja Católica nem é um templo consagrado, porque não foi legalizada nem recebeu aprovações formais. Pesquisas e equipes de engenharia foram envolvidas para garantir que a estrutura atual não desabe, e há esforços para proteger e talvez completar partes, mas não há uma conclusão definitiva programada.

Dizem que a chamada “Catedral Aquarius” será concluída. Se houver um pouco de Dom Justo ainda por lá, não tenho dúvidas de que o será mesmo.

Catetral "Aquarius" (Mejorada, Espanha) @archdaily.com.br

Independentemente dos burocratas administrativos e religiosos, a construção se tornou um ponto de encontro para reflexão e um lugar de oração, ainda que inacabado.

Para além de qualquer propaganda de refrigerante, Dom Justo demonstrou que o extraordinário não está no tamanho da obra, nem no reconhecimento que ela recebe, mas na decisão de permanecer, dia após dia, quando não há garantias, quando o mundo passa e a tentação de desistir se torna razoável.

O extraordinário está em quem constrói sem saber se verá a conclusão da obra. Em quem trabalha sem plateia. Em quem aceita que o sentido não está no resultado, mas na fidelidade ao chamado. Está em quem é fiel até o fim, como sugeriu Paulo em sua 2ª Epístola a Timóteo.

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