Fosse hoje, provavelmente as cartas de Nevita e Marcílio Franca não existiriam. Seriam substituídas por e-mails e telefonemas int...

As cartas de Nevita e Marcílio: um diálogo de afetos e de inteligências

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Fosse hoje, provavelmente as cartas de Nevita e Marcílio Franca não existiriam. Seriam substituídas por e-mails e telefonemas internacionais a preços módicos. E assim não teríamos o belo livro Cartas de Berlim (Editora Ideia, João Pessoa, 2025), lançado há poucos dias. E seria uma pena, pois perderíamos esse importante registro epistolar que retrata um tempo e um mundo já passados, mas que mantém interesse sob vários aspectos.

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Marcílio e Nevita Franca
Gerardo Rabello
Por que publicar cartas pessoais? Esta é uma pergunta fácil de responder quando se compreende que há cartas e cartas. Aquelas que ultrapassam, pelo conteúdo e pelas circunstâncias, o âmbito estritamente privado e banal, para alcançar um patamar de interesse mais amplo, podem eventualmente justificar sua publicação, tornando-as acessíveis a um público maior. É o caso dessa correspondência trocada, nos idos de 1993 e 1994, entre mãe e filho pessoenses, este, então um jovem estudante, descobrindo o vasto mundo a partir de uma temporada de estudos numa Alemanha recentemente unificada.

Como seria de esperar, as cartas são antes de tudo uma troca de afetos. A maneira como os missivistas se tratam demonstra o explícito carinho que dedicam um ao outro: “Minha mãe muito querida”, escreve o filho; “Meu filhinho adorado”, responde a mãe. Por aí vemos – e sentimos – a atmosfera de afagos que permeia a correspondência. E só isto constitui um diferencial positivo para o leitor. Mas não só. Pois as cartas também são um diálogo de inteligências e uma troca de observações perspicazes, reveladoras do nível cultural dos correspondentes. E aí temos outra diferença a valorizar essas cartas singulares.

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Marcílio e Nevita Franca
Chamou-me a atenção a religiosidade da mãe protetora. “Deus lhe abençoe!”, “Deus ilumine seus caminhos”, “Nossa Senhora cubra você com o manto dela”, “Que o Espírito Santo lhe conceda seus dons e frutos” são expressões frequentes de uma Nevita preocupada com o jovem Marcílio longe de casa. Que mãe amorosa não estaria também em semelhante situação? O eterno cuidado com os filhos, mesmo crescidos e até idosos, é um atributo inerente à maternidade, que a nossa missivista exerce em plenitude.

Nessas cartas não há preocupação literária – nem poderia haver, sob pena de perderem a espontaneidade. Nelas predomina a informalidade própria de uma conversa amigável, a oralidade dos diálogos é visível, sem prejuízo, em algumas passagens, da gravidade dos assuntos. Em todas as missivas temos uma amorosa conversa de mãe para filho e vice-versa. Uma conversa de amigos, na verdade. Mas o leitor atento observará a qualidade literária dos textos epistolares, anunciadora dos escritores que ambos haveriam de se tornar posteriormente.

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Aldo Lopes
Como bem ressaltou Aldo Lopes de Araújo na orelha do livro, de Berlim, Marcílio manda notícias sobre a cidade, sua vida cultural, os monumentos, os nativos e seus costumes, os efeitos da reunificação na vida cotidiana dos alemães; da aldeia, Nevita informa os acontecimentos recentes, as provincianas miudezas, capazes, talvez, de diminuir as saudades do filho distante. Mas não só. Pois ela também exerce o sagrado magistério materno, transmitindo ensinamentos e experiências, de modo a orientar o promissor filhote na exploração do mundo. É a leoa ensinando o leãozinho a sobreviver sozinho. Vê-se, portanto, que o diálogo é não apenas de carinhos, mas também de intelectos, e é exatamente essa particularidade que justifica a publicação das cartas, pois elas extrapolam a esfera estritamente privada dos missivistas para despertar o que podemos chamar de interesse público. E, assim, deixam de ser apenas correspondências para se transformarem em documentos que também retratam uma época. Ultrapassam a trivialidade para alcançar um estatuto superior.

São impressionantes as notícias que partem de Berlim naquele já distante outubro de 1993. A então recente queda do odioso Muro ainda produz consequências no cotidiano da população. A derrocada do império soviético está à vista como uma fratura exposta, pois perto do Portão de
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Queda do Muro de Berlim
Yuriy Somov
Brandenburgo “é possível comprar desde o fardamento completo de um general do Exército Vermelho da ex-URSS até uma medalha de bravura da antiga Alemanha Oriental.” As facilidades para se usufruir da rica vida cultural da cidade são inúmeras. O jovem estudante brasileiro se deslumbra. Mas nem tudo são flores, adverte ele: “Berlim, em certos locais, é muito melancólica, e talvez por isso é comum ver pessoas bem vestidas embriagadas nas praças e estações.” Sim, o paraíso não é deste mundo, deve ter concluído o arguto Marcílio.

Da avenida Goiás ou de Camboinha, por sua vez, a mãe atenta envia, além de cuidadosos conselhos, o relato das novidades brasileiras e aldeãs: a descoberta de PC Farias escondido em Londres, as revelações da CPI do Orçamento e a estreia musical da nossa Renata Arruda. Como se vê, tudo a cara desse Brasil que, passados mais de trinta anos, ainda se parece bastante com aquele de 1993. Mazelas e avanços de um país que persiste em não ser o que pode ser.

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Nevita Franca Gerardo Rabello
Bem consideradas, essas cartas são um verdadeiro luxo, no melhor sentido da palavra. Não duvido de que sejam únicas, pois é muito pouco provável que tenham existido ou que existam um rapaz e uma mãe a manter uma correspondência de tão alto nível intelectual. E pensar que tão refinados epistológrafos pertenciam e pertencem à nossa aldeia, leva-nos a confirmar que o espírito sopra soberanamente onde quer.

Como observou Hildeberto Barbosa Filho no prefácio, essas cartas “pertencem também a todos aqueles que podem se espelhar nas vivências emotivas e nos múltiplos saberes que elas nos ofertam.” Sim, de fato é assim. E é por isso que as recomendo com ênfase. E agradeço aos ilustres missivistas por partilhá-las conosco.

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  1. Obrigado, Leo.

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  2. Gil, amigo querido: Agradeço de coração seu comentário tão sensível sobre as Cartas de Berlim. Sua leitura só enriquece o diálogo em torno do livro; e é um valioso incentivo para continuar escrevendo com a mesma entrega. Um vigoroso e afetuoso abraço. Nevita

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