Há um grande trecho de minha infância que permanece entre brumas. Não sei. Parece que não quero abrir a caixa do coração… No entanto, quanto mais a velhice se instala, mais alguns fragmentos parecem nítidos, como se fossem retirados da névoa do passado. Dizem que não se deve olhar para ele. Mas lá estão os segredos do hoje e o possível conserto do amanhã.
Muito tempo eu passava sozinha, depois da morte de meu pai. Minha mãe — com forças tiradas do coração em ferida — cuidava de trazê-lo à última morada na aldeia, depois que ele morreu em Coimbra.
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Depois, colocava — como podia — comida aos animais, pois meu irmão começara a trabalhar depois da escola.
Acontece que, assim que eu terminava de varrer a varanda, instalava-se numa cadeira de balanço, que dava para o caminho de pedra, uma estranha senhora que eu não conhecia.
Perguntei quem era, muitas vezes. Sempre ouvi a mesma resposta:
— Criança, tu vais precisar de mim.
Essas palavras, repetidas dezenas de vezes, eu a ninguém as dizia. Minha mãe mal a via, e meu irmão, sempre com lágrimas nos olhos, dizia que eu de nada sabia. Contudo, o sentido da morte de meu pai eu compreendia... De um jeito muito estranho... mas compreendia.
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— Lá está a pequena bastardinha. Pensa que vai ganhar alguma coisa.
Naquela época, eu não sabia o que significava bastarda. Tentei indagar de meu irmão, e a resposta foram lágrimas.
Até que, um dia, a aldeia estava agitada. Todos à porta. Mas não era festa. Era um enterro.
Meu pai voltava, já no caixão, para a terra.
Corri para a rua — antes, reparei na senhora já instalada na cadeira, de onde tudo via.
Tentei seguir aquele cortejo. Fui escorraçada pelos meus outros irmãos. Até o padre pediu que eu voltasse para casa. Afinal, minha mãe não se casara com meu pai.
Sem entender nada, mas chorando muito, subi as escadas. Podia ouvir minha mãe aos prantos no quarto. Enquanto isso, aquela senhora pegou-me no colo — não sei por quantas horas — e só dizia:
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Ali fiquei, coberta por uma manta em que ela me agasalhou, enquanto o vozerio se diluía em direção ao cemitério.
Creio que, naquela cadeira, fiquei a noite inteira.
De manhã, minha mãe, com o rosto feito só de sofrimento, veio buscar-me e perguntou a razão de eu estar ali.
— Mãe, aquela senhora fez-me adormecer.
Ela nada entendeu.
Eu também não.
Porque não sei quem ela era. E ela nunca mais apareceu.
Por fotografias muito escassas, creio que era Maria dos Anjos, uma de minhas avós falecidas. Eu não conheci nenhuma delas em vida.





















