Ele tinha um nome tão antigo quanto o próprio Natal: José. José e mais nada. A singeleza desse nome resumia o sentido e ...

O bom velhinho

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Ele tinha um nome tão antigo quanto o próprio Natal: José. José e mais nada. A singeleza desse nome resumia o sentido e a dimensão da sua própria vida. Uma vida-José. Não era carpinteiro como o seu homônimo bíblico, mas aposentado do serviço público. E tinha, além do mais, a peculiaridade de ser gordo.

A gordura fora desde sempre a sua marca, e até o ajudara a ser bom. Graças à sua lerdeza física sempre fugira do que, na infância e na adolescência, exigia a matreirice e a agilidade próprias das atitudes erradas ou suspeitas. Nele,
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o peso do corpo era uma espécie de contrapeso da alma, uma âncora moral que o estacionou no recato e na bondade. A gordura era nele, também, um traço de caráter.

Como todo gordo, ria fácil. Mas não disfarçava nesse riso a tristeza de ser doente. É que, junto com o excesso de peso, padecia de diabetes e hipertensão. Mais de uma vez, o médico lhe avisara: “É preciso fazer regime, perder uma parte desses quilos. Ou faz isso, ou morre cedo.”. José ouvia como um devasso a quem um padre dissesse: “Seja virtuoso, meu filho. Pratique o bem.”.

Se o regime era o bem a que devia aspirar, preferia consumir-se na danação das calorias. Comer para ele (e isso foi-se acentuando com o tempo) era não apenas o seu único prazer, como também a única atividade que fazia sentido. E a velhice foi-lhe trazendo a coragem de assumir e aceitar o seu destino. Pode-se dizer que, fora das massas e dos quitutes, só tinha amor pela neta Gabriela – o único quindim que ele degustava com o coração.

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Por muitos anos, José não teve nada a ver com o Natal. Até que um dia, passeando distraído por um shopping center, ele foi descoberto. Caminhava rumo à Praça da Alimentação, que era então o seu bordel gastronômico (embora a renda de aposentado só desse para doces e alguma massa), quando um gerente e dois auxiliares o abordaram. O convite era incisivo e tentador: deveria vestir-se de Papai Noel e circular pelas dependências do shopping, rindo e cumprimentando as pessoas.

Essa era a primeira parte do trabalho. A segunda era deixar-se fotografar durante seis horas, todos os dias, com crianças no colo. José pensou na pressão alta e no diabetes – e, num primeiro momento, chegou a recusar. A roupa vermelha devia ser calorenta, tinha medo de passar mal. Então se lembrou da neta, que um dia lhe pedira de presente natalino uma boneca lindíssima e muito além de suas possibilidades financeiras. Resolveu aceitar o convite. Seria um falso Papai Noel para os outros, mas não para Gabriela, a quem iria dar enfim o presente dos sonhos.

José trabalhou três dias nesse curioso ofício. Vestido com a calça e o jaleco vermelhos, orlados de algodão, parecia um coágulo sanguíneo ambulante. Ensinaram-no a rir como Papai Noel certamente riria – um riso bonachão e
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gorgolejante. Cumprimentava o público e desejava-lhe “Feliz Natal”. Ou fazia simplesmente Rô, Rô, Rô, conforme lhe orientaram, acenando para os compradores em câmera lenta e com uma expressão beatífica no olhar.

Depois vinha a segunda parte do trabalho, que era aguentar os pimpolhos no colo enquanto, a poucos metros, espoucavam os flashes. Uma, duas, três... ele perdeu a conta de quantas fotos tirou. Algumas crianças eram comportadas; outras, no entanto, esperneavam e enterravam os dedos nas suas barbas postiças (ou, o que era pior, nos seus olhos verdadeiros). De noite José chegava em casa suado e com luzes ainda explodindo nos olhos, o que o impedia, por muito tempo, de pegar no sono.

Na noite do décimo quinto dia, cansado e mais magro, ele se sentiu mal. Levaram-no para um hospital público e chamaram a família. Vieram todos, menos Gabriela. José foi piorando da dispneia e morreu sem ter tempo de dar, entre os carinhos vendidos daqueles últimos dias, o único beijo sincero e verdadeiro. E a menina nunca soube que esteve perto, muito perto, de ganhar a sonhada boneca.

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  1. Que tenhamos mais crônicas como esta do gordo José e menos Gabrielas sem uma boneca de Natal. Muito bom texto que reflete a essência da literatura. O gordo também pode ser retratado sem pedantismo e sofisma dos outros tipos de natais. Um viva aos gordos, que todos tenham um ótimo Feliz Natal!

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  2. O Natal sempre chega com surpresas, algumas deveras desagradáveis.
    Há sete anos , passei o Natal hospitalizada, meus rins não quiseram trabalhar , estavam cansados. Fiquei na ala ,Santa Efigênia, junto com uma senhora que esperava uma vaga na psiquiatria .
    Logo o espírito natalino começou a se manifestar, os enfeites foram colocados para lembrar a data. A porta do meu quarto ganhou uma guirlanda. Numa tarde quente, a porta do quarto se abriu, vi uma senhora desconhecida olhando para o interior do quarto. Julguei que ela tinha errado de quarto, aguardei a reação. Ela arrancou a guirlanda da porta e a destroçou em pedaços. Imediatamente eu a identifiquei como a paciente que esperava vaga na psiquiatria. Quando a vi fazendo aquilo, fui acometida por uma risada incontrolável. Toda a tensão me abandonou, eu não conseguia parar de rir.
    No Natal, as surpresas sempre surge. As que ficam guardadas na mente são as melhores
    Meu Papai Noel foi generoso, trouxe-me o riso que estava sumido há quase vinte dias.

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  3. Belo texto, Chico, apesar do triste final. Parabéns e um Feliz Natal. Francisco Gil Messias.

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