abril 17, 2020
Ele veio qual capim numa fresta de asfalto. Saiu verdejante em meio à brutalidade daquelas pedras pretas, sob o caustic...
Ele veio qual capim numa fresta de asfalto.
Saiu verdejante em meio à brutalidade daquelas pedras pretas, sob o causticante calor que só o asfalto produz e suporta. Saiu como vida que se vinga da propensa morte, desafiando mesmo os textos sagrados que pregam terra fértil para semeadura. Verdejou porque buscava o Sol, desejava a luz, seu alimento único.
Assim é como eu te vejo. Algo raro, mas não perecível. Sinto em ti uma espécie de seiva que me nutre e me refresca o tempo árido da vida.
Assim é o amor entre amigos. Não é o ardor da falta, o medo do não ter. É um devir sempre-ter, melhor, sempre-ser.
O amor entre amigos é rizomático. Eclode em terrenos inusitados e ludibria a razão. Mil palavras quisesse eu agora tê-las no encontro do branco papel e a marca indelével da tinta para dizer sobre o amor entre amigos.
Talvez fosse o devir-amizade um labirinto. Portas e entradas-saídas que talvez nunca delas se saia. Mas não é espanto e nem gaiola. É um ritornelo, um eterno vir-a-ser de tantos sentidos e afetos sempre-ditos, jamais-ditos. Nas alamedas nunca se enluta o amor, pois que brota sempre. Emerge em espaços de encontros. O amor-labirinto é o sempre-encontro.
Talvez fosse o devir-amizade um chuva fina e molhadeira. Daquelas que caem sei lá de onde, em forma de gotículas quase invisíveis, mas que nos ensopam quase à alma. Chuvinha mansa e criadeira. Sem trovoadas e raios rasgando horizontes. Não. Nada de trovejos. Apenas um zunido de coisas que nascem, como se o som dos brotos rasgando a terra pudesse ser ouvidos na sua sinfonia de vida que nasce. O amor-chuva fina é o ato da criação.
Talvez fosse o devir-amizade um eco. Repetições de últimas frases, às vezes desconexas e vãs. Aqueles de buracos abissais, de cânions que nem se sabe onde findam. Aqueles das catedrais góticas, de sons que ricocheteiam seus arcos. O som depois dos mantras nos sagrados templos. O amor-eco é o som do que já foi dito.
Talvez fosse o devir-amizade uma ponte. Quando se dá este encontro entre um Eu e um Outro, diluem-se ambos. Perco-me de mim no outro. Encontro meus vazios no outro. Dispo-me na apresentação ao outro, a este outro que talvez seja um Eu reconfigurado. Reflexo de mim, despido de mim, pois no encontro amoroso, cedo o que me torna eu mesmo em nome de um nós, de um enovelamento de si sobre o outro. Entre o Eu e o Outro nada mais resta que só o vazio. Mas há a ponte, o intermédio. O amor-ponte é a nudez dos afetos.
Reviro caixas em busca de cartas que nunca escrevi. Reviro-me à noite, insone e ensopado de suores que nem me pertencem. Assunto o dia vago, buscando sei-lá-o-quê.
Que me falte o pulso dos homens.
Que me falte o pulsar das mulheres.
Mas não me faltem os amigos.
Que afoguem os mares de sonhos.
Que me traguem os vinhos mais raros.
Que, enfim, se abram minhas eclusas e que eu, taciturno e pálido dentro das vazias noites, me escorra em rios de corredeiras sem mares.
Mas que não me falte o devir-amizade. Amor-amigo é amor que nunca seca.
Adriano de Léon é doutor em ciências sociais e professor E-mail
abril 17, 2020
abril 12, 2020
Um vírus me trouxe o inverno. Em menos de um mês, sem chover, trovejar, céu claro e sol forte, uma tormenta caiu como grossas camadas...
Um vírus me trouxe o inverno.
Em menos de um mês, sem chover, trovejar, céu claro e sol forte, uma tormenta caiu como grossas camadas de neve e gelo sobre mim. Portas fechadas. Ligações esparsas e, muitas vezes, movidas aos acordes da carência dos outros.
Estes também isolados em seus medos invernais. Tediosos de filmes, páginas de livros mal lidos naquela hora de afogamento. Reinventando o mesmo, o si mesmo, o mais mesquinho de si. Outros se mascarando, como sempre quiseram, sob o domínio de um medo que nem bem conhecem. Temem não o vírus, presente no planeta mesmo antes do homem. Temem o outro. Este outro possível portador, como os medievos temiam a peste negra, como os europeus temiam a gripe espanhola, como os africanos temiam o ebola, como os americanos temiam o antraz. Temer o outro passou a ser nossa segurança. Além disto, mais que temer o outro, perder o sentido de solidariedade que seria um traço humano diante das tragédias que a vida anuncia.
Peguei minha toalha e fui ao banho. Permiti as águas correrem e talvez me saciarem, quem sabe me limparem deste infecto mundo. Os felpos de algodão engoliam as gotas d´água sobre minha pele, tal qual um vírus a uma célula. Meus cabelos ainda molhados e desgrenhados à luz do espelho que sempre me vigia, faziam com que finos rios de água escorressem ainda sobre minha face. Nela, percebi minhas rugas. Leitos de rio de sabedoria da pele. Dobras da minha subjetividade que uns chamam velhice. Dentro daqueles sulcos havia rios. O que era antes liso, minha pele juvenil, foi erodida pelo tempo, senhor máximo da vida. Estes secos rios de pele e dobra desenharam em mim um outro. Um outro que sou eu e de quem gosto.
Bem que eu poderia ser seduzido pelas mágicas fórmulas da juventude a qualquer preço. Por cremes e ácidos preenchedores, atenuantes, revitalizadores, e cirurgias correcionais. Não. Este é meu corpo no seu tempo. Evocar um corpo que superou o tempo é viver uma caricatura de si mesmo. Não quero portar máscaras nenhumas.
Ao pensar nisto diante da minha imagem, esbocei um sorriso. Um sem números de outras rugas e marcas apareceram do nada. Eram parte do meu sorriso. Ri mais ainda. Ri demasiadamente. E quanto mais ria, mais dobras, mais marcas, mais sombras, mais vigor, apareciam. Meus riachos e ribeirinhos de marcas eram também minha doçura diante dos diários apocalipses. Feito isto, chorei. Muitas marcas se foram, como que dissolvidas no sal das lágrimas. Feito terra arada quando chove, que nada mais se vê a não ser a fina lâmina d´água que vivifica o chão sulcado. Meus castanhos olhos se inundaram de borbulhantes fontes. A água escorria pelas colinas das maçãs do meu rosto, pelo vale profundo margeando as narinas, desaguando ora no abismo da minha boca, ora escorrendo no precipício do meu queixo.
Ali, água, células, bactérias e vírus se juntavam em rodas de vida. Ali, naquele momento, nada os diferenciava como as vãs nomenclaturas da Ciência que vive da separação classificatória.
Suspirei por um segundo. O espelho se enevoou com o vapor da minha respiração. Desapareci por um tempo por entre o véu quente que soprou entre meus lábios. Por um instante quis me devolver à imagem do espelho. Podia desanuviar o borrão. Não o fiz. Aquele também era eu. Um eu entre nuvens, um eu que se via esfumado e talvez distorcido. Lentamente minha imagem reapareceu. Lentamente meu rosto ressurgiu com seus sulcos e planícies de pele. Havia tantos eus naquela imagem... Sou um eu caleidoscópico, múltiplo e dinâmico.
Terminei o ritual e fui à janela. Outros tantos ali trancafiados. Outros tantos além isolados. Isolados dos outros. Isolados de si.
Adriano de Léon é Professor de Ciências Sociais (João Pessoa-PB).
adrianodeleon77@gmail.com
abril 12, 2020