Mostrando postagens com marcador Francisco Gil Messias. Mostrar todas as postagens

Conta-se que quando Guimarães Rosa finalmente decidiu marcar a data de sua posse na Academia Brasileira de Letras pediu logo ao então presi...


Conta-se que quando Guimarães Rosa finalmente decidiu marcar a data de sua posse na Academia Brasileira de Letras pediu logo ao então presidente Austregésilo de Athayde uma banda de música para tocar na entrada do Petit Trianon. Diante do surpreso interlocutor, Rosa tratou de explicar. É que em Cordisburgo, sua cidadezinha natal, lá no interior de Minas, sem banda de música não havia festa. Por isso ele queria a banda, para seus conterrâneos saberem que havia festa em sua entrada na imortalidade. Athayde, claro, atendeu ao inusitado apelo e assim, também dessa forma, a modesta Cordisburgo fez-se presente na noite gloriosa.

Não é saudosismo reconhecer que o mundo mudou muito em apenas algumas décadas
Pois bem. Como Rosa e como tantos, também sou do tempo (epa!) em que a banda de música fazia parte da festa. A sua simples presença tocando uns dobrados já conferia importância à solenidade (não se falava ainda em evento), fosse ela qual fosse. Menino e rapazote, aquilo me causava forte impressão. Para mim, os acordes marciais davam autoridade e prestígio aos atores do acontecimento, muitos deles, só agora sei, desprovidos de qualquer mérito. Mas, aos meus olhos infantis e adolescentes, a banda tocando era sinal de que o momento era histórico (ou quase).

Isto sem falar nas retretas. Assisti a muitas na Praça João Pessoa. Era um acontecimento, naqueles começos dos anos 1960, em que a cidade ainda era pura aldeia, sem quaisquer sinais dos ares cosmopolitas que viriam depois e que hoje às vezes nos deixam em dúvida, sem saber se progresso é uma coisa boa ou não. As bandas eram normalmente as da Prefeitura e da Polícia Militar, raramente a do 15º RI, e todas me pareciam ótimas, afinadíssimas e garbosas.

praca joao pessoa
Praça João Pessoa
A Praça João Pessoa era então o coração cívico-social da província. O Palácio, o Tribunal e “A União” abraçando preguiçosamente as famílias, os namorados e os simples curiosos que para ela convergiam nas frescas noites domingueiras de nunca mais. Ali passeavam não só os corpos, os olhares, mas igualmente os sonhos e os pensamentos de uma gente que ainda se conhecia de nome e de vista. Tinha vida a praça que realmente era do povo, tão diferente do que é atualmente, espaço esquecido, quase morto.

Não é saudosismo reconhecer que o mundo mudou muito em apenas algumas décadas. Muitas coisas, muitos costumes desapareceram num piscar de olhos. Por exemplo, os comícios, a beleza dos desfiles dos colégios no dia da independência, os jogos estudantis mobilizando a cidade, o corso no carnaval, os “assustados” no Astréa e no Cabo Branco, a Festa da Mocidade, na Lagoa, e a própria Festa das Neves, na General Osório, hoje mera lembrança do que já foi. As bandas certamente devem ter ido junto no mesmo vendaval destruidor, imagino.

praca joao pessoa
Bandas de música da nossa aldeia, onde estais? Nunca mais as vi nem ouvi. Ainda existem? Se sim, raramente aparecem em público. Sua ausência é sinal de que burramente nos sofisticamos, e também de que já não fazem mais festas como antigamente.

Cordisburgo tinha razão.



Francisco Gil Messias é cronista e ex-procurador-geral da UFPB

Li e reli o texto de Gonzaga Rodrigues “Carta para um amigo”, publicado recentemente neste blog. De início, até vibrei, achando que o croni...

gonzaga rodrigues francisco gil messias alagoa nova escritor

Li e reli o texto de Gonzaga Rodrigues “Carta para um amigo”, publicado recentemente neste blog. De início, até vibrei, achando que o cronista adotara o espaço virtual criado e generosamente disponibilizado pelos Romero, Carlos e Germano. Estaria então, pensei, de alguma forma suprida a sua sentida ausência nas folhas de “A União”. Mas depois percebi que não era o momento para se comemorar, pois Gonzaga afirmava não ter se decidido a respeito. Estava ele ainda a refletir sobre isso (e tantas coisas mais), numa tentativa de se “reacomodar para esse fim de viagem, que começou pela ‘sopa’ de Mestre Chico de Alagoa Nova e não foi além das linhas da Bonfim de Severino Camelo”.

A propósito, a certa altura de seu texto Gonzaga pergunta: “Que vou fazer mais em jornal?”, e a gente sente, com um nó no peito, que a indagação é mais ampla – e mais funda. Na verdade, o cronista, do alto de suas oito décadas de estrada, parece dizer-nos, com um certo fastio: Que vou fazer mais nesta vida?, o que nos deixa quase sem palavras para responder.

Sim, porque o que podemos nós, pobres mortais da planície, dizer, em tal contexto, a alguém que já viu tudo, leu tudo, refletiu tudo, sofreu tudo, enfim, viveu tudo em oitenta anos de rica e plena existência? Seria muita audácia de nossa parte, creio eu. Se ao menos eu lhe fosse pessoalmente mais próximo, ou apenas mero companheiro das lides jornalísticas, boêmias e literárias ... Fosse um Nathanael Alves redivivo, um Marinho Moreira Franco, ou qualquer um dos raros que têm o privilégio de chamá-lo de “neguim”...

gonzaga rodrigues escritor paraiba alagoa nova
Gonzaga Rodrigues
Mas não é esse o caso, pois sou simplesmente um leitor e admirador do filho de Dona Antonina, sem nenhum direito a atrevidas intimidades e a descabidos aconselhamentos. Sendo assim, respeitosamente emudeço diante do desabafo do mestre. Mas não sem antes arriscar-me a afirmar que o compreendo e respeito, face os últimos aborrecimentos que o atingiram. Mas, de qualquer modo, quem somos nós para aquilatar – e penetrar - as mágoas dos nossos semelhantes?

O que sei e o que posso asseverar é que o cronista maior (sem demérito dos demais) ainda tem muito o que fazer em jornal e na vida. Ao que sei, e graças aos deuses ou ao Deus único, sua saúde é boa, assim como sua disposição, não sendo, pois, chegada ainda a hora do recolhimento, salvo o imposto temporariamente pelo vírus.

Deixemos então Gonzaga atravessar em paz seu deserto pessoal, esse Mar Vermelho tardio e inesperado. Deixemo-lo reacomodar-se objetiva e subjetivamente perante o mundo e a vida. Sem nenhuma pressa. Pois que confiamos haver ainda muita viagem pela frente, mesmo que seja apenas em torno da aldeia ou, quem sabe, do seu quarto.


Francisco Gil Messias é ex-procurador-geral da UFPB
E-mail

A história se sabe. Mozart possuía o gênio, Salieri apenas o talento. Mozart, sendo gênio, nem se dava conta de sua genialidade, que pa...


A história se sabe. Mozart possuía o gênio, Salieri apenas o talento. Mozart, sendo gênio, nem se dava conta de sua genialidade, que para ele nada custava, por ser absolutamente natural; Salieri, sendo apenas talentoso, ralava para cultivar seu pequeno engenho, e percebia a grandeza do outro, e a invejava, querendo-a, sem esperanças, para si. Mozart gozava seu gênio e ria sem motivo, como um louco; Salieri, cara amarrada, gemia suas limitações e sofria sua angústia em silêncio. Mozart, celebrado universalmente; Salieri, apenas lembrado como um apêndice acidental do outro.

O filme “Amadeus”, como é sabido, retrata a história de ambos os compositores, ressaltando Mozart, é claro, mas oferecendo ao expectador a oportunidade de refletir sobre o drama pessoal de Salieri, sua tragédia, sua maldição. E aí, milagre da arte, a pequenez de Salieri se impõe à nossa atenção, porque é nela que se revela mais nossa humanidade e não na genialidade de Mozart, privilégio de poucos, mais deuses que homens. Admiramos Mozart, mas nos enxergamos em Salieri. Mozart, tão alto, resta distante; Salieri, ao rés do chão, ao nosso alcance.

Pessoalmente, demorei a descobrir Salieri desse ponto de vista. No começo, talvez como todos, ou como a maioria, só tive olhos para Mozart, para sua excepcional aptidão, para seu dom quase divino. Sua luminosidade era tanta que ofuscava tudo e todos ao seu redor, inclusive Salieri, pobre mortal a contemplar o Olimpo, consciente de que não podia entrar naquele reino. Mas felizmente o tempo trouxe, ainda a tempo, a compreensão desse sofredor e, com ela, a identificação com sua dor tão humana. Salieri finalmente conquistou um lugar no altar de minhas devoções.

A genialidade, sabemos, é bela e extasiante, não há como não admirá-la como um prodígio sobre-humano. Mas por ser um dom, uma graça, é como se ela fosse de certo modo gratuita, revelando-se quase sem esforço por parte de quem a possui. E, paradoxalmente, essa gratuidade diminui sua grandeza, porque esta, cremos, só é verdadeiramente valiosa quando conquistada com esforço e não apenas recebida, como o maná que caía do céu para os judeus no deserto.

Hoje aprecio melhor Mozart e Salieri. Mozart diminuído? Jamais. Apenas Salieri tornado maior do que inicialmente imaginei. Do mesmo modo, muitas outras coisas e pessoas com o tempo aprendi a compreender e avaliar melhor. Relativizando para melhor ajuizar e encontrando por baixo do corriqueiro, do trivial, riquezas ocultas, insuspeitadas. Mozart está às vistas, Salieri precisa ser descoberto. Mozart é um super-homem, Salieri é nosso irmão.


Francisco Gil Messias é ex-procurador-geral da UFPB e escritor E-mail E-mail

Estava a reler o belo romance do suíço Pascal Mercier “Trem noturno para Lisboa” (tradução de Kristina Michahelles, Editora Record) e me de...


Estava a reler o belo romance do suíço Pascal Mercier “Trem noturno para Lisboa” (tradução de Kristina Michahelles, Editora Record) e me detive, à página 213, na inquietação e na angústia que assaltaram o personagem Jorge, no meio da noite, quando tomou consciência de que não haveria mais tempo para ele aprender a tocar o piano que, num impulso, comprara recentemente. “O piano de cauda – desde essa noite, ele me lembra que existem coisas que eu não vou mais ter tempo de fazer”, diz Jorge, para continuar: “Não se trata de pequenas alegrias insignificantes e prazeres fugidios, como engolir um copo d’água num dia de calor e poeira. Trata-se de coisas que desejamos fazer e experimentar porque só elas podem dar um sentido completo a esta nossa vida muito particular, e porque sem elas a vida permaneceria incompleta, um torso e mero fragmento.”.

Quem já, a partir de certa fase da vida, não experimentou tal desgosto, para não dizer tal tormento? São todos os sentimentos que afloram a partir da consciência da finitude, da brevidade e da precariedade de nossa existência. Simplesmente, de repente, de alguma forma sabemos que não teremos tempo para tudo que desejamos, para tudo que gostaríamos de vivenciar no tempo mais ou menos curto de nossa passagem pelo mundo. Que restarão sempre coisas que não serão feitas, experiências que não serão vividas, ou seja, que o que poderemos degustar da vida será sempre aquém de nossa fome, razão mais do que suficiente para inquietações e angústias. Ou não.

É verdade: ou não. Pois poderia ser de outra forma? Haverá porventura alguma vida plena, totalmente realizada, a ponto de não restar nada a concluir, nenhum desejo e nenhum sonho a satisfazer, alguma frustração, mínima que seja, que é a marca mesma de nossa limitada humanidade?

Alguém falou que deveríamos ter duas vidas: a primeira como ensaio; a segunda pra valer, sem apelação. Concordo. Mas sabendo que ainda assim seria pouco e que na segunda vez, mesmo com todo o suposto aprendizado anterior, ocorreriam erros, omissões e incompletudes. Como se diz, será sempre pouca vida para tanta arte.

O remédio, se remédio há, não pode ser outro senão aceitar com sabedoria e resignação essas tais incompletudes, inevitáveis que são. Aceitemos que sempre haverá um intocado piano na sala de todos nós, “monumento negro ao sonho irrealizável de uma vida plena”.

E o melhor de tudo, suprassumo da sapiência, seria nem mesmo chegar a comprar o tal piano. Saber logo, sem ilusões, e de uma vez por todas, que não teremos tempo de aprender a tocá-lo. Não nessa vida única, sem segunda chance, que nos cabe.


Francisco Gil Messias é ex-procurador-geral da UFPB
E-mail