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A sinfonia começa com um solo de fagote, lento e sombrio . Reconheço o padrão musical que desde o barroco serviu como um símbolo do l...

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A sinfonia começa com um solo de fagote, lento e sombrio . Reconheço o padrão musical que desde o barroco serviu como um símbolo do luto. Notas musicais murmurando sobre a finitude. Penso em meu pai, que há dezoito anos deixou a vida.

Acaricio a memória com os risos seus, tão ricos. A música responde. Torna-se rápida, com violinos nervosos e fanfarras. A vida transborda, mas não demora a se desvanecer – como na minha memória que já não separa a saudade áspera das lembranças macias. Violinos e violoncelos de repente gemem, ternos, cantando a existência do meu amado. Os instrumentos de sopro ecoam, delicadamente, a honrada vida que teve.

You got me in between the devil and the deep blue sea. George Harrison O dia surge carregado de nuvens cinzas. Uma chuva fina m...

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You got me in between the devil and the deep blue sea.
George Harrison

O dia surge carregado de nuvens cinzas. Uma chuva fina me impede de sair de casa em Montreal. Ligo o computador e uma chusma de notícias pesadas invade meus olhos com histórias de corrupção, prisões e escândalos. Leio-as. É osso do ofício me manter informada. Seleciono poucas manchetes e fico apenas o mínimo necessário nas leituras chocantes.

Do outro lado do minúsculo apartamento em que vivemos, sinto que Tchekhov me chama. Olho para o livro e releio um de meus contos favoritos:

No mais famoso diálogo d'A República, de Platão, Sócrates induz Glauco e Adimanto a imaginarem uma caverna onde humanos estão preso...

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No mais famoso diálogo d'A República, de Platão, Sócrates induz Glauco e Adimanto a imaginarem uma caverna onde humanos estão presos desde a infância. Suas pernas e pescoços estão acorrentados, de modo que só enxergam o que está diante deles.

Na caverna há uma entrada pela qual chega a luz de uma fogueira acesa na colina que se ergue por trás dos acorrentados. Entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada, na qual há um pequeno muro.

“Quando eu não mais existir. Quando tudo o que fui tiver se convertido em pó, tu, minha única amiga, que eu amei tão ternamente e tão...

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“Quando eu não mais existir. Quando tudo o que fui tiver se convertido em pó, tu, minha única amiga, que eu amei tão ternamente e tão profundamente, tu, que sobreviverás a mim, não visites meu túmulo. Ali, nada haverá para fazeres. Não me esqueças, mas não me tragas à tua mente em meio aos teus afazeres, alegrias e necessidades. Não quero perturbar o curso da tua quieta vida. Mas, nas horas de solidão, quando aquela tímida tristeza te visitar, pega um dos nossos livros favoritos e procura neles as páginas, as linhas e as palavras que costumavam – lembras? – trazer doces e silenciosas lágrimas aos olhos de nós dois, simultaneamente. Lê, fecha teus olhos e estende tuas mãos ao teu ausente amigo. É um conforto para mim, agora, pensar que um leve toque então alcançará as tuas mãos. Tu, a quem eu amei tão ternamente, tão profundamente”.

Às vezes acho que os grandes artistas pesam menos que o restante das pessoas. Ou você nunca notou como Horowitz desliza seus dedos sob...

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Às vezes acho que os grandes artistas pesam menos que o restante das pessoas. Ou você nunca notou como Horowitz desliza seus dedos sobre o teclado? Como se tamborilasse ou fizesse carícias...

E Baryshnikov, que de repente deixa o chão, abre asas e se lança no espaço – pássaro claro – subvertendo a gravidade? Há bailarinas que mal tocam o solo, sílfides, e a Mitsuko Uchida, cuja alma se esconde em algum lugar luminoso tão logo ela pousa as mãos sobre o piano.

Há 21 anos, morreu George Harrison. Dos quatro Beatles, o guitarrista teve a trajetória mais espetacular. Vindo de uma família muito ...

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Há 21 anos, morreu George Harrison.

Dos quatro Beatles, o guitarrista teve a trajetória mais espetacular. Vindo de uma família muito pobre, aos 17 anos tornou-se uma das maiores celebridades do planeta. Entrou no túnel de delícias do mundo material com sua carteirinha de milionário aos 20 anos e emergiu do outro lado como um homem que resumia seu propósito na vida a uma busca incansável para responder a três perguntas: quem sou eu, por que estou no mundo e para onde vou.

Cuida de ti do teu coração das tuas horas As areias do tempo já escorrem Relógio de água Ritmo de vida Tempo E um dia, ao olhar no e...

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Cuida de ti do teu coração das tuas horas As areias do tempo já escorrem Relógio de água Ritmo de vida Tempo

E um dia, ao olhar no espelho, eu as descubro. Rugas cheias de profundidade e histórias. Fazem par perfeito com os cabelos que se fazem fios de inverno. Olho para elas com algum carinho e nenhum medo. São o retrato do que experimentei, são o pergaminho em que escrevi o relato da minha vida.

Sentada em um banco da rua Sete, vejo a brisa fria do outono desfolhar os dentes-de-leão no gramado. A luz incendeia as folhas das árvo...

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Sentada em um banco da rua Sete, vejo a brisa fria do outono desfolhar os dentes-de-leão no gramado. A luz incendeia as folhas das árvores. É uma tarde esplêndida, indiferente ao rugido de inquietação que ecoa pelas esquinas do mundo.

Tomo o caule do dente-de-leão entre os dedos e o examino, sem arrancar. Tão frágil. Qualquer sopro pode desfazer o elaborado desenho.

Decidi começar uma vida de crimes. Já me vejo retratada por Gloria Perez em alguma novela futura, as redes sociais ardendo, psicólogos ...

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Decidi começar uma vida de crimes. Já me vejo retratada por Gloria Perez em alguma novela futura, as redes sociais ardendo, psicólogos opinando, amigos envergonhados e William Bonner, com ar tão grave, a ler um editorial sobre o fim da inocência. Se apanhada, eu, criminosa não arrependida, direi que a culpa é dessa tal poesia que entra pelos olhos da gente, instala-se sem a menor cerimônia e nos faz amar os que estão mortos há tempos. Gente que se tornou estátua.

“Ce chien est à moi”, disaient ces pauvres enfants. “C’est là ma place au soleil”, Voilà le commencement et l’image de l’usurpation de...

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“Ce chien est à moi”, disaient ces pauvres enfants. “C’est là ma place au soleil”, Voilà le commencement et l’image de l’usurpation de toute la terre – Blaise Pascal.  

Outro dia me encontrei numa praia de Pacífica recolhendo conchas, pedras miúdas, pedacinhos de corais. Enchia os bolsos, coletando fragmentos do mundo para pôr, secos e limpos, na janela que se abre para os verdes de um jardim que me acostumei a chamar de meu. E nada como o mar não cultivado para me pôr em estado de filosofia, descobrindo razões para pensar nas tolices despercebidas do meu cotidiano.

Por que haverias tu de esquecer o amor? É o que te pergunto enquanto, mergulhada no silêncio ameno da tarde, penso em ti após ler a t...

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Por que haverias tu de esquecer o amor?

É o que te pergunto enquanto, mergulhada no silêncio ameno da tarde, penso em ti após ler a tua mensagem.

Dizes que abres as tuas gavetas de alma e não gostas do que encontras. Talvez por isso eu perceba a tua tristeza.

Falas que tuas atitudes, palavras e ações mostram orgulho, autoritarismo, prepotência, intolerante juízo e, em alguns momentos, até uma certa maldade. Lamentas as mágoas, culpas, raivas e rancores

Uma das vantagens de se morar num lugar que tem as quatro estações bem marcadas é ter uma voz constante a advertir sobre a passagem do...

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Uma das vantagens de se morar num lugar que tem as quatro estações bem marcadas é ter uma voz constante a advertir sobre a passagem do tempo e, em consequência, sentir-se permanente alertado sobre o que realmente importa na jornada. No começo da primavera deste ano eu me fiz a solene promessa de passar a maior parte do tempo de vida que me resta em contemplação. Não que me faltem problemas – choro e ranger de dentes fazem parte do cardápio de todo vivente – mas à medida que envelheço, me dei conta que já não tenho tempo e energia a gastar com quem fermenta e piora as dificuldades naturais da vida. E isso inclui a mim mesma, pois, espiando direitinho nas gavetas da minha alma, encontrei uma tendência para criar armadilhas para consumo próprio.

Foi numa tarde de primavera que as vi pela primeira vez. Vermelhas, amarelas, roxas, brancas e laranjas, estendiam-se como aquarela até...

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Foi numa tarde de primavera que as vi pela primeira vez. Vermelhas, amarelas, roxas, brancas e laranjas, estendiam-se como aquarela até onde a vista alcançava, ao longo da baía de San Francisco.

Os acontecimentos me espreitam nas dobras destes dias longos. E com seus dedos compridos andam a fazer de marionete os sentimentos meus...

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Os acontecimentos me espreitam nas dobras destes dias longos. E com seus dedos compridos andam a fazer de marionete os sentimentos meus. Ontem, vi um passarinho morrer. Sem aviso, a morte o pôs sob seu manto de grama verde. Parecia muito calma, quase indiferente, mas notei que recolheu o corpo do pássaro com gestos gentis e murmúrios doces. Lembrei de um poema de Schiller, Nänie, cujo primeiro verso, “Auch das Schöne muß sterben”, se traduz como “Mesmo o belo deve morrer”. Embora real e filosófica, a frase não elimina o luto. Sob este, tem-se a impressão de que há mais silêncio, mais deserto. Como se toda luz adormecesse.

Nänie é uma palavra que significa “pesar” e se refere à deusa romana dos ritos funerários, Nenia. O poema é uma lamentação sobre a inevitabilidade da morte que alcança a todos,

Estou na varanda e Mochi, o gato, acompanha com a cabeça os movimentos dos passarinhos na árvore. Direita, esquerda, alto, baixo. Está...

Estou na varanda e Mochi, o gato, acompanha com a cabeça os movimentos dos passarinhos na árvore. Direita, esquerda, alto, baixo. Está hipnotizado, louco de desejo de pegar um pássaro. Cada movimento das aves é um fio que o faz se mexer como se fosse marionete. O silêncio da manhã é rompido por um riso curto. Eu me volto, nada vejo. Estou só. Mas eu a sinto, uma presença invisível que me espia. Ouço o seu respirar na minha nuca. Os lábios se aproximam dos meus ouvidos. Ela sussurra: “Não desdenhe do gato. Você é igual. Quem lhe controla?”.

Não pertenceu à biblioteca dos reis e dos aristocratas, não ele. Jamais teve rica encadernação, letras douradas, nome na lista dos expe...

Não pertenceu à biblioteca dos reis e dos aristocratas, não ele. Jamais teve rica encadernação, letras douradas, nome na lista dos experts. Mas na minha estante humilde, de madeira sólida e aparência sóbria, ele reinou. Meu livro de carne e osso, meu exemplo de páginas nobres, no qual os conselhos brilhavam em letras firmes, parágrafos de risos longos e generosidade de ideias.

— Mãe, vamos ver a exposição do Chagall? O convite do filho – duplamente especial por ser ele um artista – chegou como sopro de ar fresc...

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— Mãe, vamos ver a exposição do Chagall?

O convite do filho – duplamente especial por ser ele um artista – chegou como sopro de ar fresco num dia em que a comédia humana se exibia em episódios cada vez mais despudorados nas redes sociais. E era Chagall! Eu jamais havia visto um quadro dele ao vivo. E isso, bem sei, muda tudo. Sem falar que é o pintor judeu por excelência e eu ansiava por sentir a alma judaico-russa transbordando nas telas.

Nem sempre a democracia é inspiradora, nobre ou grandiosa. Ela tem suas cavernas e obscuridades. Idealizá-la é devaneio. É mais que ...

Nem sempre a democracia é inspiradora, nobre ou grandiosa. Ela tem suas cavernas e obscuridades. Idealizá-la é devaneio.

É mais que óbvio lembrar que concorrer a uma eleição é se submeter à vontade da maioria, que nem sempre coincide com a nossa. Paciência, é assim que a política funciona. Esta é a natureza da democracia que dizemos valorizar.

A quinta sinfonia de Gustav Mahler bem expressa a turbulenta alma de um artista. Tudo nela fala dos paradoxos emocionais de Mahler e da ...

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A quinta sinfonia de Gustav Mahler bem expressa a turbulenta alma de um artista. Tudo nela fala dos paradoxos emocionais de Mahler e da maioria de nós, os que fazemos da arte o nosso pão e o nosso refúgio.

Mahler escreveu sua quinta sinfonia durante os verões de 1901 e 1902. Em fevereiro de 1901, ele havia sofrido uma grande hemorragia que quase lhe custou a vida. O compositor passou um longo tempo se recuperando em sua vila à beira de um lago no sul da Áustria.

Às vezes o amor simplesmente acontece. Manso, ele te encontra numa rua sem asfalto, em tarde de sol. De repente, tudo brilha e refulge ao ...

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Às vezes o amor simplesmente acontece. Manso, ele te encontra numa rua sem asfalto, em tarde de sol. De repente, tudo brilha e refulge ao teu redor. Ele te faz rir, desarmado. Um instante depois te atira numa espiral que converte a vida em turbilhão. Um frenesi de gozo e lágrimas regado a sangue escaldando e que te faz escutar algo feroz rugindo no teu peito a ponto de espalhar dor e sal, mel e água de rosas no teu espírito atemorizado. Não tão simples e nada manso, afinal. Amor, dizem. De quem falo neste texto? De mim, de ti, dos Beatles ou de Get Back, o documentário de Peter Jackson? De todos nós, por certo, já que “Get Back” me fez escrever sobre os Beatles com um olho fixo nas impurezas e no esplendor que movem a nossa humanidade. Um filme que contém todo o deleite, a tensão, as ásperas lutas e a graça da existência.