O convite do filho – duplamente especial por ser ele um artista – chegou como sopro de ar fresco num dia em que a comédia humana se exibia em episódios cada vez mais despudorados nas redes sociais. E era Chagall! Eu jamais havia visto um quadro dele ao vivo. E isso, bem sei, muda tudo. Sem falar que é o pintor judeu por excelência e eu ansiava por sentir a alma judaico-russa transbordando nas telas.
Era o dia 9 de março de 2017. Passeamos pela vizinhança do museu, admirando as amplas avenidas, os hotéis de luxo, galerias e lojas de grife. Meio Nova York, meio Paris. Um vento gelado varria as calçadas da cidade. Varria, não: chicoteava.
GólgotaMarc Chagall ▪ 1912
Chegamos ao Museu de Belas-Artes de Montreal no fim da tarde. Era o primeiro dia da mostra, que trazia, entre os trabalhos expostos, algumas das mais conhecidas obras do artista, como Gólgota, Auto-retrato com Sete Dedos, Nascimento e Violinista Verde. Havia, além das pinturas a óleo e gravuras, as ilustrações de Chagall para as fábulas de La Fontaine; os desenhos dele para os figurinos da ópera Aleko, de Sergei Rachmaninoff; e um enorme conjunto de trabalhos para os teatros judeus na Rússia, com marionetes, maquetes, cenários e panos de boca.
Um presente extra: os painéis do teto da Ópera Garnier em Paris, que pela primeira vez estariam expostos detalhadamente. É uma das realizações mais importantes de Chagall, mas, obviamente, não pode ser retirada, tem raras representações em livros de arte e só pode ser contemplada a uma certa distância.
Assim, a exposição trouxe um filme que permitia ver o teto em seus menores detalhes. Nele, a representação da música de 14 compositores que inspiraram o pintor – Mozart (A Flauta Mágica), Bizet (Carmen), Beethoven (Fidelio), Debussy (Pelléas e Mélisande), Ravel (Daphnis e Chloé), Verdi (La Traviata), Berlioz (Romeu e Julieta), Stravinsky (O Pássaro de Fogo), Tchaikovsky (O Lago dos Cisnes) e Wagner (Tristão e Isolda). Projetado em uma grande tela circular, o filme dava a ilusão de estar na Ópera Garnier. E não havia como ver a profusão de cores sem lembrar do que disse o próprio Chagall sobre a obra: “Eu queria pôr no alto, como um espelho em um ramalhete de sonhos, a criação de atores e músicos. Cantar como um pássaro, sem teoria ou método, rendendo homenagem aos grandes compositores de óperas e de ballets.”
Marc Chagall ▪ 1887—1985Karsh
Em cada pintura ele deixou pedaços de sua alma judaica. Há uma paleta de cores frescas e cândidas nas telas a evocar a infância na aldeia de Vitebsk. Estão lá os casamentos e festas tradicionais, os tefilins, kipás e talits, a música klezmer e cada símbolo do Judaísmo cuidadosamente depositado na tela. É um mundo de alegria, povoado por figuras voadoras,
ViolinistaMarc Chagall ▪ 1913
Tudo isso traduz a saudade que estrangulou, durante toda a vida, esse artista tão sensível, tão poeta. Há em várias telas a imagem sombria ou quase transparente do judeu errante, sem lugar, eterno imigrante, escorraçado na terra alheia e alvo de toda sorte de preconceito. O pintor passou a existência como estrangeiro. Depois que deixou sua terra natal, na atual Bielorrússia, viveu na França adotiva e nos Estados Unidos, sempre visitante, sempre exilado. De sólida e familiar, apenas sua herança judaica. Chagall se apegou a ela nos seus 67 anos de produção artística.
Naquele gelado março de 2017, entrei na última sala da exposição. Um aposento circular. No centro dele, um violino dominava a cena. Cravejado de pedras preciosas, trazia no verso uma estrela de David incrustada. Repousava, solene, dentro de um quadrado de vidro à prova de balas. Em torno dele, as enormes telas da época em que Chagall viveu em Nova York. Tempos sombrios, de nazismo, de medo e incertezas. A paleta perdeu as cores vibrantes e a dor do artista tornou-se palpável. Anjos e fios de fé misturaram-se a memórias e a uma esperança medrosa.
Relógio com Asa Azul1949
Aproximo-me. Relógio com asa azul é o nome do quadro. Foi pintado após a morte de Bella Rosental, musa e mulher amada, namorada de infância, pedaço da aldeia, também judia. Talvez tenha sido a tremenda solidão do artista ou o lamento de um violino enchendo a sala, mas ali, juntos, eu e Chagall choramos a morte de Bella.
Não será este o objetivo final de toda arte: compartilhar a alma alheia por alguns instantes?