Estilo é o que tem ponta. Estilete que corta com um lado e acerta, quando se excede com o outro. Na cera do tempo que endurece para ganha...

Para tudo há um peso, uma medida e uma visão distorcida

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Estilo é o que tem ponta. Estilete que corta com um lado e acerta, quando se excede com o outro. Na cera do tempo que endurece para ganhar a pedra definida, o papel definitivo, passa por variações de intenção e temperatura até chegar à luz dos olhos de quem não sabe ao certo, através dos séculos, quem firmou primeiro aquilo, que nos desconcerta.
Armando Freitas Filho[1]

Considerações sobre vanguardas e tradição poética

É instigante tentar discutir o “arquivamento”, por parte das vanguardas, da poesia parnasiana e romântica. Esse tema me foi proposto pelo poeta e filósofo Hilton Valeriano. Vejamos, inicialmente, os argumentos[2] utilizados para afirmar o distanciamento entre as vanguardas e a tradição. Procuro enumerá-los objetivamente para já incitar a reflexão dos leitores:

  • Imposição de paradigmas estéticos, sobretudo o oriundo do concretismo.
  • Obsessão pela inovação.
  • Ruptura com toda a tradição poética.
  • Perda do senso estético: uma poesia voltada apenas para o experimentalismo linguístico. Ausência de conteúdo temático, recusa do lirismo e das múltiplas manifestações do belo. Poesia vazia em dimensão semântica.
  • Como consequência direta da Semana de Arte Moderna inúmeras gerações de estudantes utilizaram material didático voltado para os preceitos do Modernismo com nítida depreciação do Parnasianismo.

Com esses argumentos tão poderosos em mão, refleti muito, consultei meus guardados e acabei escrevendo o texto que se segue. Já antecipo possíveis imprecisões que advenham da falta de distanciamento e de solidez teórica. 

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Não quero “chover no molhado”, mas vamos lá!...

O Movimento Modernista cumpriu um papel fundamental na evolução da poesia. Não quero enumerar prós e contras, vicissitudes, vieses, mas digo que se ganhou muito em liberdade, em uma linguagem mais nossa, brasileira; ganhou-se com o surgimento de uma geração de poetas excepcionais. É aí que se inicia, no meu entendimento, um problema que é recorrente na história humana. Muitos entendem que os homens (vamos extrapolar um pouco) estão em constante processo de evolução, ascensão. Fico com o paleontólogo Stephen J. Gould que diz que isso não ocorre [3]. Existem momentos, existem homens que se destacam. Existem as evoluções tecnológicas, científicas ...Mas os problemas, as redundâncias, os caminhos tortos, a incoerência, persistem – e se somam. E por que não estender essa observação para a poesia?

Sigamos...

Veio então o Concretismo que se estabeleceu como o novo ícone a perseguir. Não sou um adepto de antolho da proposta concretista. Mas, por várias questões, “bebo” da fonte em meus escritos. Embora não tenha me aprofundado conceitualmente na proposta dos irmãos Campos e de Décio Pignatari (para citar os cânones nacionais) podemos dizer que esta geração foi uma visionária,
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compondo muito bem com a nova Ordem Mundial.

É incontestável como nesse momento de imagem, mídias múltiplas, velocidades, a poesia que advém desta vertente encontra espaço para fácil difusão. Como trabalho com pesquisa e costumo guardar artigos científicos antigos, posso dizer o mesmo dos artigos e regras para publicação atual: textos rápidos, concisos, sintéticos...

E o que isso tem a ver com a verdadeira ojeriza (melhor seria dizer desconhecimento e desinteresse) existente em relação à poesia parnasiana e romântica? Será necessário restringir aos movimentos literários do século XX e aos seus seguidores o crédito de tanta indiferença, como o querem os poetas que cultuam a poesia que respeita a tradição? Estes encontram-se corretos em sua insatisfação para com seus contemporâneos? Não creio que seja tão simples. Vou tentar enumerar o que penso:

1 Aspectos históricos. Não podemos deixar de contextualizar, de lançar mão de textos clássicos que sinalizaram, já no final do século XIX, o fim do romantismo. Em 1879, Machado de Assis dizia:

“esse dia, que foi o Romantismo, teve as suas horas de arrebatamento, de cansaço e por fim de sonolência, até que sobreveio a tarde e negrejou a noite”. 

Machado de Assis tentou explicar esse desdém no ensaio A Nova Geração [4], atribuindo-o a dois fatores:

a. não se produzia mais poesia romântica de qualidade — aquele “ lirismo pessoal [...] era a mais enervadora música possível, a mais trivial e chocha”, que “chegara efetivamente aos derradeiros limites da convenção, descera ao brinco pueril, a uma enfiada de coisas piegas e vulgares”; e

b. o desenvolvimento das ciências modernas havia provocado o aparecimento de ideias e sentimentos incompatíveis ou muito diferentes daqueles da geração anterior – “ há uma tendência nova, oriunda do fastio deixado pelo abuso do subjetivismo romântico e do desenvolvimento das modernas teorias científicas”.

Sei que esse posicionamento é típico do fascínio do homem diante do Racionalismo e do Materialismo que bancaram tantas transformações na virada do século passado. Mas, como disse, as questões existenciais, a alma, plena de fascínio e sortilégios, o caos e o absurdo clamam pela poesia ...

2 Um século de verdadeiro desprezo, de argumentos depreciativos, convincentes, por vezes sofismáticos; de fatos históricos que modularam, induziram gerações a distanciar-se (não podemos ignorar a crueza dos eventos e das justificativas para o afastamento dos poetas) dos preceitos do parnasianismo e do romantismo.

3 A falta de comprometimento com a poesia. Não necessitamos ter como objetivo primário compor poemas com métrica e rima. Não, realmente não necessitamos. Mas aquele que encara a escrita com seriedade deveria percorrer, ao menos com olhar e reflexão, o caminho dos seus predecessores. É muito interessante... Admiramos os romances escritos ao longo dos séculos. Lemos Cervantes, Goethe, Balzac, Vitor Hugo, Leopardi, Flaubert e assim por diante. Mas consideramos “menos” ler os poetas parnasianos e românticos... No mínimo um contrassenso. Não esqueçamos Drummond: poesia é coisa séria...

4 Todos podem se expressar. Todos podem compor seus poemas... Bom seria termos um mundo de poetas e leitores de poesia!... Mas... Agora entro em território poeirento e polêmico. São muitos os que escrevem “poemas”. Aqueles que se expressam através de poemas. Seus pares os admiram; são seus leitores... Não sei se estou certo, mas lanço aqui uma hipótese que me ocorreu e é um verdadeiro paradoxo: a grande maioria dos que escrevem poemas (escritores ocasionais, confessionais, situacionais) são despreparados para tal (E não estão nem aí!), querem apenas externar sentimentos. E o fazem utilizando rimas melosas — com lirismo piegas. Um pseudorromantismo que colabora para o descrédito por parte daqueles que efetivamente se dedicam à elaboração de seus poemas. Poemas feitos com fôrma rasa e mal besuntada incomodam, fazem “doer” os ouvidos. Não devemos esquecer que o Romantismo do século XIX também não se imiscuiu da responsabilidade de uma confrontação, de rompimento com o legado conservador da tradição. Nada diferente fez o Modernismo e as gerações subsequentes. Isso é inerente às vanguardas. Mas, depois, as águas se acalmam, ficando um sobrenadante muito considerável da tradição que não devemos deixar ser arrastado para a profundeza do esquecimento. Como bem disse o poeta Rommel Werneck, que cultua a poesia tradicional [5]:

”A poesia não é a poesia de ontem ou a poesia nova, simplesmente é a poesia de sempre para sempre.”

5 Mas cabe um complemento para o que disse acima. O movimento modernista foi um habeas corpus, “ascendeu uma luz de esperança nos olhos de inúmeros sujeitos doidos para ser poetas, mas sem muito traquejo para manejar as formas” com bem disse Glauco Mattoso em recente texto publicado no Portal Cronópios[6]. E é isso o que vejo: embora existam indivíduos que compõem seus poemas seguindo preceitos tão românticos quanto modernistas, sempre predominaram (mesmo hoje esse grupo é expressivo) os que primam pela rima. Entretanto não posso ser passional a esse respeito. Está claro que o aconchego da ausência de regras, que adveio do Modernismo, tem seduzido cada vez mais essa imensa legião de indivíduos, certamente bem intencionados, mas sem preparo (e agora acomodados por encontrarem-se ladeando os preceitos vigentes em nossos tempos para o fazer poético) para a composição de bons poemas. Segundo Deleuze [7]:

“O que é grave, não é atravessar o deserto, tendo a idade e a paciência para isso; grave é para os jovens escritores que nascem no deserto, porque correm o risco de verem sua empreitada anulada antes mesmo que aconteça.”


“Para tudo existe um peso” 

O peso dos tempos, das gerações, das editoras – da mão forte do capital. Peso que muitas vezes não combina com poesia, mas interfere na coletividade. Felizmente também existem aqueles que empreendem esforço, horas de estudo, dedicadas a poesia parnasiana e romântica. Que o façam bem feito. Mas sem idéia revanchista ou vislumbrando nas outras Escolas verdadeiros antípodas.

A pluralidade de opiniões é uma característica humana. Vivemos uma globalização que pode ser empobrecedora, monótona, uniformizadora (se assim o permitirmos). E manter vivas todas as tendências é sinônimo de riqueza e respeito à língua e à linguagem.

Dar voz aos novos, estimular os novos (e suas experimentações linguísticas) e, sobretudo, deixar claro que a ruptura pura e simples com a tradição, sem discernimento do tanto de relevante que trazemos grudado aos calcanhares, é uma atitude desprezível. Repensar sempre — mas com bases sólidas.

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Deixo um fragmento do texto “A função social da poesia” [8], escrita por TS Eliot, que não deve ser ignorado: 

“É verdade que o sentimento religioso varia naturalmente de País para País, e de época para época, assim como o faz o sentimento poético; o sentimento varia, mesmo quando a crença, a doutrina, permanece a mesma. Mas esta é uma condição da vida humana, e é da morte que estou apreensivo. É igualmente possível que o sentimento pela poesia e os sentimentos que são o material da poesia possam desaparecer em todos os lugares: o que talvez ajude a facilitar aquela unificação do mundo que, para o bem deste, algumas pessoas consideram desejável.”


"Para tudo existe uma medida"

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Quando li o ensaio em que Poe [9] descreve a fórmula que utilizou para escrever “O Corvo” não acreditei. Mas restou uma certa tristeza... Seria esse efetivamente o caminho? Uma fórmula leva ao poema? Seria o ritmo pré-estabelecido, a medida, aquilo que faria um poema perfeito — seria essa a chave da emoção? Ou seria o “ranço” que trago contra o poema com métrica e rima que pairou como uma sombra e me faz subdimensionar o que já valorizo inconscientemente?...

Será realmente verdade essa história de 1% de inspiração e 99% de transpiração? Não estão insistindo demais em trazer os números para a poesia? Uma tolice dizer do esforço extremo para se compor o poema? Sei que também os extremos fazem parte da estatística. Uso este aforismo que escrevi para dizer que tanto aqueles que transpiram demais e se inspiram demais também fazem parte do universo dos poetas; mas não acredito que representem a maioria absoluta de nós.

Ora, e onde se encaixariam os outros loucos em potencial?


"Para tudo existe uma visão distorcida"

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Gosto do final deste aforismo. De certa forma me liberta; desarma meus potenciais críticos na medida em que assumo poder estar distorcendo os fatos... Mas lembrem-se: pode também ser perfeitamente distorcida a imagem daqueles que se lançam em uma batalha contra a poesia que prescinde de métrica...

Lembremos — e isso eu digo sempre — da nossa irrelevância relativa. Não sejamos imediatistas; não façamos parte dos tantos que se deixam contaminar pelo “poder da comunicação”, como bem diz Foucault[10]. Façamos nosso trabalho — isto é o que verdadeiramente importa. É necessário “ressuscitar os mortos” e, quando não mais existirmos diante de tanta leitura e colagens, quando o processo de desconstrução estiver completo, quando nos tornarmos sombra (e não devem ser muitos os que se propõem empreender esse percurso), quem sabe não nos deparemos, lúcidos – ou totalmente malucos —, com nosso estilo de compor poemas.

Quem sabe seja a esperança uma simples questão de instinto de sobrevivência? E estejamos lutando uma batalha perdida, injusta, absurda? Não foi sempre esse o grande mote para os poetas?

Bato com força na água porque acredito no poder da onda. Não sou, em definitivo, adepto da calmaria, mas considero que travar uma “guerra justa” nada acrescenta ao futuro da poesia.

Penso sinceramente que o poeta deve buscar na poesia um legado sem tragédia.

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