Não existe a favela idílica de Antonio Conselheiro. O Rio Vasa Barris, imortalizado por Euclides da Cunha, transbordou suas sobras de home...

Crônica dos desalojados

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Não existe a favela idílica de Antonio Conselheiro. O Rio Vasa Barris, imortalizado por Euclides da Cunha, transbordou suas sobras de homens da Canudos sobre os morros do Brasil, e elas escorreram das encostas aos manguezais e sarjetas. E não poderiam poupar a ilha do Mel.

Eles, resíduos da desigualdade, figuras abjetas que perturbam nossa visão multimidiática de prazeres, mortos vivos estagnados nas esquinas, queiramos ou não, integram nossa terceiramundaneidade. Mas eles se reinventam em subversão aos valores burgueses. E fazem arte...

Digo isso para celebrar a obra que, seguindo os passos do penico de Duchamp, imortalizado como o marco artístico mais influente do século XX, vi ser criada ─ e talvez passe totalmente despercebida dos demais ─ hoje cedo na Avenida Leitão da Silva. Prometo escrever rápido e tentar voltar ao local para uma foto histórica...

Um indivíduo para o qual "não há mais caminho, só uma pedra", após tomar um banho em alguma casa abandonada, atravessou a rua e pendurou sua cueca tampando a placa de sinalização que nos diz: proibido retornar.

Vi o jovem ─ porque ele era bem jovem ─ sem camisa, com cabelos molhados, saltando diante do poste tentando encaixar a cueca. Vi-o dar também alguns passos para trás, como a admirar o resultado final de sua intervenção urbana ─ definitivamente uma obra do inconsciente urbano.

Ele terá escolhido o tema da placa ou foi algo aleatório? Apenas colocou sua cueca branca, recém-lavada, para secar? Não creio. São muitos os muros, as placas, as latas de lixo que se prestariam a esse propósito. E ele atravessou a rua e buscou um poste no canteiro central...

Fecho então com a hipótese que respaldo na atitude postural de aprovação que percebi no jovem desconhecido: ele estava fazendo arte. Não vou dizer que pensou no sentido da placa nem nas implicações psicossociais de sua intervenção, mas agiu de forma consciente: quis transgredir.

A elite econômica e cultural mandou subir o piano para o morro da Mangueira, construiu UPPs, fez obras assistenciais que, ora aqui, ora ali, até que foram efetivas, mas não cuidou dos seus iguais marginalizados com a devida atenção e respeito.

Acaso ou não, a escolha da placa nos leva a refletir sobre a imposição que modula a sociedade pós-moderna. Se, para uns, no sentido primevo da placa, a mensagem implícita serve como moduladora de atitudes morais e éticas, prevenindo acidentes automobilísticos, para os desprovidos pode refletir o intangível. A maior morte em vida é a impossibilidade, e é disso que também pode tratar a placa.

A cueca branca, limpa, bandeira de paz possível, ou viseira de todos nós sobre como conduzimos nossa sociedade?

São tantas placas, é tanta desigualdade, que será necessário que multipliquemos tanto os desprovidos para que nos tampem as placas? Mas são poucos os artistas e muitos os embrutecidos. E nós criamos os monstros dentro do Mundo. Nossa indiferença à cueca branca faz aumentar o sangue que começou a escorrer nos primórdios de nossa história e nos chega da chacina distante, nos rincões da Bahia, naquele final do século XIX. Para o jovem da cueca, a arte efêmera permitiu um legado sem tragédia. Mas até quando também para ele isso será possível?

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  1. Muito boa a reflexão. Porém, a foto da placa com a cueca fez falta para complementar o texto.

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    1. Quando voltei para fotografar ele tinha retirado a cueca...

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