Lá na parte de baixo do nosso mapa, o inverno é bem diferente do daqui de cima. É seco, umidade do ar muito baixa e as temperaturas fazem ...

O tricô de Dona Nalva

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Lá na parte de baixo do nosso mapa, o inverno é bem diferente do daqui de cima. É seco, umidade do ar muito baixa e as temperaturas fazem espremer o filete de mercúrio abaixo dos 15 graus. Não raro chegam próximas de zero e até abaixo disso

Lá é tempo de seca, raramente chove. Em alguns pontos é fumaça empestando o ar nas cidades e no campo. Elas vêm das queimadas nos pastos e em capões arbustivos que não resistiram à falta d'água. Os reservatórios mínguam a espera das chuvas da primavera. Fora essas contrariedades, quando as fumaças dão uma trégua, as manhãs são azuis, a neblina teima um pouco em não subir como quisesse agasalhar nossas preguiças,
mas passado um tempinho elas se vão e o sol aparece tímido, generoso e acolhedor.

No sol dessas manhãs é que minha mãe gostava de ir para o quintal. Deixava à disposição duas cadeiras. Uma era para ela tomar acento, na outra, os novelos coloridos de lã e as agulhas. Passava horas ali, até que suas panelas reclamassem a presença daquela artesã junto ao fogão e à pia de louças. À tardinha retornava às agulhas e aos novelos.

Guardo com muita ternura a lembrança de Dona Nalva tricotando. Ela sabia muito dessa arte, era ligeira no manuseio daquelas duas pequenas lanças. Muitas vezes a vi comentando consigo mesma: vou usar “ponto arroz” nesse cachecol, nessas luvas “ponto barra”. E por aí ia, cada peça um ponto diferente. Nem me recordo quantos mais.

Para nós eram tempos difíceis, dinheiro curto que mal dava para o essencial. Algumas vezes eram insuficientes para as necessidades mais básicas, mas não tão parcos que não pudéssemos nos agasalhar nos frios que iam do fim de maio ao começo de setembro, porque então podíamos contar com as agulhas e os novelos de Dona Nalva.

Éramos quatro irmãos, uma escadinha. Algumas vezes, roupa que não cabia mais em um podia ser de boa serventia para o que vinha depois. Não com todas as peças, mas com as mais resistentes ao uso, ao desgaste e ao gênero. Ao gênero? Sim, calça que ficava curta para mim, o mais velho, só podia ficar para o terceiro da fila porque o segundo lugar era de minha irmã e isso quebrava a corrente. Mas essas heranças não valiam para os agasalhos porque aí minha mãe fazia questão de renovar nosso vestuário.

Era bonito vê-la tricotando. Aqueles fios de lã iam escorregando dos novelos para submeterem-se à parceria de dedos e agulhas que em rápidas manobras iam transformando aqueles cordões em meias, blusas, cachecóis, luvas, gorros, pulôveres. Podiam ser peças monocromáticas como as luvas ou com mais de uma cor, dependendo da inspiração de Dona Nalva e dos novelos disponíveis.

Como eram mágicas aquelas mãos. Lembro-me que algumas vezes nos chamava. Pedia a presença do futuro usuário.

— Vem aqui para eu ver como é que está ficando.

Com a peça ainda presa às agulhas, estendia a confecção sobre o “freguês” para ver se as medidas estavam corretas. Sentia orgulho em fazer isso. Essas experimentações podiam vir acompanhadas de um abraço, um beijo, um afago, nunca com indiferença. Dona Nalva sabia também aquecer nossos corações.

De quantos anos lá para trás fui desenrolar o novelo de minhas recordações? Sei lá. Uns sessenta, talvez. Acabei encontrando Dona Nalva, minha primeira heroína. E o que me fez embarcar nessa viagem no tempo? Muito simples, nesses dias, até por aqui a temperatura baixou um pouquinho além do costumeiro nesse tempo das águas. Senti um pouquinho de frio. Fui procurar uma blusa e acabei encontrando essas lembranças. Vi minha mãe com suas agulhas. Consegui até me lembrar de sua voz.

Tempos difíceis, aqueles. Veio a “revolução” de 64. Meu pai feito preso político em um navio ancorado na costa santista, o Raul Soares. Nem naqueles meses, Dona Nalva abandonou suas agulhas. Teve que “trabalhar fora”; então, só trocou o quintal nas manhãs de sol por algum canto da casa naquelas noites frias de temperaturas e de esperanças. Mas soube nos manter aquecidos.

Foi um tempo de resistência. Mas Dona Nalva cansou e numa dessas manhãs azuis de inverno, ela decidiu que viver não era tão importante assim.

Essas foram as reminiscências que me ocorreram nesses dias em que um friozinho de pouca monta andou rondando meus travesseiros. Fui eu quem acabou tricotando. Tricotando palavras e saudades.

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