Ao ver “Piaf” (“La Vie en Rose”), de Olivier Dahan, com a esplêndida Marion Cottilard, convenci-me de que a genialidade não é dom pra do...

Angústia e genialidade

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Ao ver “Piaf” (“La Vie en Rose”), de Olivier Dahan, com a esplêndida Marion Cottilard, convenci-me de que a genialidade não é dom pra donos de biografia sensata. Claro que ter um corpo frágil e passar a primeira parte da vida com a avó paterna – que trabalhava num bordel – marcou sua personalidade e sua visão do mundo. Ao ler o romance “A Corrida Para o Abismo - O Gênio Caravaggio”, de Dominique Fernandez, concluí que o estado de tensão permanente – causada ou não pelo berço – determina a hipersensibilidade geradora da percepção particular dos indivíduos excepcionais.

A pequenina mexicana Frida Kahlo não teria pintado o que pintou, penso eu, sem a poliomielite que quase a matara quando menina, e – em cima de queda, coisa - as sequelas do violento desastre entre o
ônibus de Coyoacan e o trenzinho de Xochimilco, quando foi traspassada por um ferro que lhe entrou pelo quadril e lhe saiu pela vagina, provocando-lhe dores excruciantes o resto da vida. Pra completar, o casamento doido com o enorme muralista Diego Rivera, ao qual se seguiu uma infinidade de casos amorosos de ambos os lados – o dela incluindo mulheres e Trotsky – assassinado com uma picareta de gelo. Seu desespero constante sempre me lembrou o de Van Gogh, o holandês que - irritado com a rejeição do pai, da Igreja Reformista Holandesa , das mulheres, do mercado de Arte e até pelo venerado Gauguin - cortou a orelha com a navalha e acabou se matando com um tiro. Suas pinceladas nervosas dizem muito do ser humano extremamente agitado que a vida produziu, com ele.

Deus escreve certo – diz o adágio – com linhas... tortas. Daí que o protagonista de meu “rimance” A Engenhosa Tragédia de Dulcineia e Trancoso diz, com ironia, à Compadecida, que deveria ter dado um caderno de caligrafia pro Menino. Que o diga Aleijadinho tendo de
esculpir de joelhos, martelo e cinzel amarrados nos cotos das mãos. Que o diga Tolouse-Lautrec, vítima de uma distrofia poli-hipofisiária que – de queda em queda – o deformaria e o reduziria a um metro e cinquenta e dois de altura. Que o diga Miró, com tal falta de controle motor, que seria incapaz de dar o laço nos sapatos, pelo que acabaria bolando aquele estilo taquigráfico dele, na ânsia de pintar! Que o diga Demóstenes, com tão sérios problemas de dicção, que se exercitaria em longos discursos com a boca cheia de seixos, ante o mar, até dominar o fragor das ondas e ser ouvido com clareza. Que o diga o furioso Beethoven, com sua estúpida surdez. Que o digam Borges e Joyce, caminhando pra cegueira, Sartre cada vez mais estrábico exofórico, Guignard cada vez mais tímido por causa dos lábios leporinos, Stephen Hawking desmantelado pela esclerose lateral amiotrófica!

A radicalização, salvo melhor juízo, é indispensável para que não se fique na timidez formal de uma arte ou na mediocridade de uma ciência que nada inova. Veja o que diz o Apocalipse 3.15:

- “Conheço as tuas obras, sei quem nem és frio nem quente. Assim, porque és morno, vomitar-te-ei.”

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