Perguntei a Burity — na casa do Dr. Paulo Maia, em que o ex-governador, mais o maestro Kaplan, o violinista Yerko Tabilo, o contrabaixista Hector Rossi, o jornalista Luiz Carlos Nascimento e eu nos reuníamos todos os sábados de manhã, para ouvir música erudita — se ele tivesse que levar uma única obra para uma ilha deserta, qual seria?
— O segundo movimento do concerto número 21, para piano e orquestra, de Mozart — respondeu.
Discordamos, eu e Luiz Carlos: melhor que o de Mozart, em nossa opinião, é o também segundo movimento, também andante, mas do Concerto número 5 para piano e orquestra, de Beethoven, por sua mais densa e intensa beleza.
O curioso, nos dois casos: só elegemos o segundo movimento, nenhum dos concertos completos. Quando se fala no máximo que se alcançou, em pintura, no último milênio, vem-nos à mente, de imediato, a do teto da Sistina, com as principais cenas do Gênesis. Mas há uma delas que se destaca entre todas, a da Criação do Homem. E há um detalhe, dela, que se destaca de todo o resto, segundo Fayga Ostrower em seu Universos da Arte:
— Quase se tocando com as pontas do dedo indicador, as mãos de Deus e do Homem estão separadas por um pequeno intervalo.
E ela arremata: "— Glorioso intervalo!Essa eleição se dá em todas as grandes realizações. Quando pensamos nA Corrida do Ouro, de Chaplin, a primeira coisa que “vemos” é Carlitos metendo os dois garfos em pães franceses, tornando-os o par de pernas e sapatos de um Pinóquio que ele põe a dançar sobre uma mesa. Em Guerra e Paz, o que me chega, neste momento, é o Príncipe André Bolkonski caindo baleado em meio à batalha de Austerlitz e, em meio ao caos, em seguida, vendo a enorme paz que há no céu. O que nos marca para sempre, no Las Meninas de Velázquez? O pintor nos olhando enquanto pinta uma tela enorme que vemos por trás, você, espectador, de repente se percebendo como se fosse o rei ou a rainha que lá estão reproduzidos no espelho ao fundo da sala, olhando as retratadas princesa Margarida Teresa, amigas e criadas.
Quando vi o filme England, my England, de Tony Palmer, fui surpreendido pela densa beleza da Música para o Funeral da Rainha Mary, e... “já ouvi isso!” – pensei. Era a trilha de abertura do Laranja Mecânica, de Kubrick, lançado 24 anos antes, ponto alto, também, daquele filme!
Gosto de todos os Concertos Brandenburgueses, de Bach, mas a primeira parte do número 3 é mesmerizante: acho... pura science fiction a série de três tentativas de, circulando-nos, fazer com que entremos numa espécie de buraco negro, o que só vai acontecer – mais ou menos — aos dois minutos e quarenta e oito segundos. Vi isso ampliado na Abertura 1812, de Tchaikóvsky , em que o cerco ao fundo do poço acontece a partir da Marselhesa – Napoleão invadindo a Rússia —, por volta dos 11 minutos e 50 segundos, o vórtice acompanhado de tiros de canhões, enquanto se vai descendo, descendo o som, em círculos, até que se chega ao limite por volta dos 12:35 quando, imediatamente, irrompe a grande alegria cheia de repiques de sinos russos, da vitória. Mozart de novo: a ária A Rainha da Noite é poderosa. Não dá pra esquecê-la em A Flauta Mágica, de Bergman, ou no Amadeus, de Miloš Forman.
Impactante a cena ao som da Cavalgada das Valquírias, de Wagner, nos alto-falantes dos helicópteros americanos atacando cruelmente um vilarejo do Vietnã – como faziam as velhas cavalarias em cima das aldeias dos índios do faroeste — em Apocalypse Now!
Por oposição, lembrei-me agora do Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler – a mais... diáfana composição musical que conheço – dando vida aos momentos mais pungentes do Morte em Veneza, de Visconti.
Cecilia Bartoli arrasa com o solo Sposa son Disprezzata, ária da ópera Bajazet, de Handel. A frase final – la mia speranza – é indescritível.
Bem, a lista é – literalmente – infinita.
Como pôr fim ao tema?
Caramba, existe isto na primeira página de Cem Anos de Solidão, de García Márquez:
— El mundo era tan reciente, que muchas cosas carecían de nombre.
— Primero llevaron el imán. Un gitano corpulento, de barba montaraz y manos de gorrión, que se presentó con el nombre de Melquiades (...) fue de casa en casa arrastrando dos lingotes metálicos, y todo el mundo se espantó al ver que los calderos, las pailas, las tenazas y los anafes se caían de su sitio, y las maderas crujían por la desesperación de los clavos y los tornillos tratando de desenclavarse.
Existe isso, de Affonso Romano de Sant'Anna, em Que País é este?:
Sei que há outras pátrias. Mas
mato o touro nesta Espanha,
planto o lodo neste Nilo,
caço o almoço nesta Zâmbia,
me batizo neste Ganges,
vivo eterno em meu Nepal.
Na Eneida de Virgílio:
— os rios gemiam, repletos de cadáveres.
— a virgem enrubesce como “o lírio branco entre rosas”.
— De súbito, o calor abandonou as entranhas da desventurada, caiu-lhe da mão a lançadeira e desenrolaram-se os fios.
Jorge Luís Borges, tem estas preciosidades em el otro poema de los dones:Gracias quiero dar al divino Laberinto
de los efectos y de las causas
(...) por el firme diamante y el agua suelta,
por el álgebra, palacio de precisos cristales,
(...) por el misterio de la rosa, que prodiga color y que no lo ve,
(...) por las rayas del tigre.
Carlos Trigueiro, no conto Anjo Exterminador, de Confissões de um Anjo da Guarda:
Correu morro abaixo, saltou vala, valeta, pulou muro, mureta, macumba, despacho, farofa, vela de sete dias, garrafa de cachaça, cachorro, gato preto, pinto no lixo, gaiola de curió, pardal esfomeado, arco de barril, virou ali, acolá, subiu, desceu, atalhou, e correu, correu, correu...
No romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa:
— era urco, trouxo de atarracado, reluzia um cru nos olhos pequenos e armava um queixo de pedra, sombrancelhonas. Rosneava curto, baixo, as meias-palavras encrespadas.
E qual a fala que nos vem à memória, quando pensamos em Hamlet e, até, em Shakespeare?— To be or not to be, that´s the question.
Por que?
Porque nos diz que, no monólogo que se segue, o tema é o vital quem somos e para onde vamos. Mas não é só isso. Observe sua musicalidade, acentuada pelo uso dos tês:
To be or noT To be, ThaT´s The quesTion.
Sete deles. Mais do que Euclides da Cunha colocou na mais lembrada frase dOs Sertões:
O serTanejo é, anTes de Tudo, um forTe.
O uso certo de aliterações torna os textos importantes inesquecíveis, como se vê no famoso caqueado de San Juan de La Cruz:
— un no sé qué que quedan balbuciendo.
Ou nestes vês de Lorca:
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
Shakespeare jamais diria sua frase Ser ou não ser se fosse francês:
— Être ou ne pas être. La question est là.
Ou italiano:
— Essere o non essere, questo è il problema.
Mas se Hamlet, lido, tem esse grande achado, quando visto tem outro: a cena em que o príncipe medita com o crânio do bufão Yorik na mão. São tão fortes os dois lances – o do monólogo e esse, do cemitério — que geralmente os leigos os supõem juntos.
Já a primeira imagem que nos vem de Dom Quixote, é a dele – pirado – carregar a cavalo, lança em riste, contra o moinho de vento, em que vê um gigante feroz.
Quantos conhecem o oratório Messias inteiro, a que pertence o Aleluia de Händel? Quantos conhecem toda a ópera O Guarani, de Carlos Gomes, cuja abertura ou protofonia está no programa de tudo quanto é de concerto popular?
Repetindo: Sempre há uma parte maior que o todo, na obra de arte. Às vezes até comprometendo o resto, pela queda de nível, como fazem os fortíssimos trinta minutos iniciais de O Resgate do Soldado Ryan, em que Spielberg não consegue sustentar a premissa, como acontece, também, com Anticristo, onde a solução de von Trier foi a de repetir e completar, no final, a bela sequência do início, toda em esmeradíssima câmera lenta valorizada pela maravilhosa peça para soprano Lascia ch'io pianga, ária, por sinal, que faz com a ópera Rinaldo, de Handel, de que é parte, o mesmo que a célebre A Rainha da Noite com a A Flauta Mágica, o mesmo que a Cavalgada das Valquírias faz com A Valquíria, de Wagner, como quem diz:
— The rest... is silence.