O célebre álbum de John Lennon foi inicialmente lançado nos EUA em 9 de setembro de 1971 e no Reino Unido em 8 de outubro do mesmo ano. Aq...

Imagine, cinquenta anos

O célebre álbum de John Lennon foi inicialmente lançado nos EUA em 9 de setembro de 1971 e no Reino Unido em 8 de outubro do mesmo ano. Aqui no Brasil, imagino que tenha chegado em fins de 1971 ou em começos de 1972. Eu estudava no Liceu à época e fui apresentado ao disco por um colega de classe, o carioca Bráulio, filho de um capitão do exército que então prestava serviço em quartel de nossa cidade.

Bráulio e seu irmão Lúcio revolucionaram o velho Liceu, literalmente. Ambos eram longilíneos, altos e usavam cabelo “black power” e calças justas de boca-de-sino, tudo novidade no ambiente ainda muito
Ducal
conservador e provinciano da João Pessoa daqueles tempos. Não eram negros, ressalvo, mas até mesmo alourados, o que tornava seus cabelos ainda mais surpreendentes. Esses irmãos causaram verdadeira sensação entre os alunos, adolescentes de ambos os gêneros, por razões distintas, evidentemente. Os meninos (seriam já rapazes?), além de impactados pelas esdrúxulas figuras daqueles alienígenas, certamente sentiram a potencial concorrência que eles podiam fazer (e fizeram) junto às meninas (seriam já mocinhas?); estas, certamente também impactadas pelo visual dos novatos, abriram um pouco a guarda para eventuais investidas românticas dos mesmos, como costumava acontecer na província nessas situações, em que a novidade dos estrangeiros tinha o seu peso e a sua atração.

Os irmãos eram boa gente. Simpáticos e sem nenhuma arrogância, logo se enturmaram no colégio, sem dificuldades. Não tinham sotaque forte e isso certamente contribuiu para o fácil relacionamento deles com todos, já que sua carioquice não se tornava explícita demais. Aproximei-me mais de Bráulio, o mais velho, que estudava na minha classe, passando a frequentar sua casa em Manaíra, bem próxima à beira-mar, principalmente para estudarmos juntos.

CC0
Num desses dias, acho que pela manhã, Bráulio mostrou-me o LP que acabara de comprar. Era Imagine, de John Lennon, compositor e cantor que eu conhecia apenas dos outros álbuns dos Beatles, mas ainda não em sua carreira solo. Ele pôs o disco para tocar em sua vitrola e foi assim que ouvi aquelas canções maravilhosas pela primeira vez. Sem dominar o inglês, para poder traduzir a letra, ative-me às melodias, principalmente no caso de Imagine, Jealous Guy e Oh My love . Estas três canções, por sua beleza um tanto triste, melancólica, me encantaram de cara. Sabia que depois voltaria a elas, com mais calma e tempo. Não sabia, claro, que naquele momento estava conhecendo uma das canções mais importantes e célebres não só do século XX, mas de todos os tempos.

Imagino que meu amigo deva ter comprado o disco na Eletropeças, então a melhor e mais sortida loja da cidade nesse ramo. Ou, quem sabe, tenha comprado no Rio, numa viagem rápida de que não lembro. Nessa mesma época, recordo a inauguração do Hotel Tambaú, um marco incontornável em nossa orla, caminho habitual da residência do amigo, onde passei momentos memoráveis. Vivia-se então os primeiros passos do crescimento urbano de João Pessoa, com a explosão do mercado imobiliário nos bairros praianos, início do processo de verticalização que tanto mudou a face da cidade até então bem tranquila.

Matheus J. Silva
Uma curiosidade: Bráulio apaixonou-se pela menina mais bonita da classe, mas a paraibaninha não se encantou com o carioca exótico, desmentindo, portanto, a lenda segundo a qual os forasteiros sempre levam vantagem sobre os nativos. Já Lúcio, o irmão, saiu-se bem melhor: conquistou uma das beldades mais cobiçadas da praia. Mistérios do amor, certamente.

Mas voltemos a Imagine. Como se sabe, não foi propriamente um álbum de rock, no sentido agitado e dançante da palavra. A canção que deu título ao álbum era um manifesto pela paz no mundo, em plena guerra fria. Uma composição melodicamente bela e calma, bem de acordo com a letra séria, filosófica e política – um verdadeiro manifesto pacifista para um planeta sob constante ameaça de destruição nuclear. Ali John Lennon se revelava como a cabeça pensante dos Beatles, muito além da revolução juvenil do iê-iê-iê. Era a maturidade plena.

Dei-me conta de que tudo isso está fazendo cinquenta anos, veja só. Meus caminhos, sem que eu o quisesse, desencontraram-se com os de meu amigo Bráulio. Perdemo-nos de vista, o que lamento bastante. Mas sei que ele não voltou para o Rio. Ficou aqui, como muitos, enlaçado pelo trabalho e pelo coração, legítimo pessoense adotivo. Sou-lhe grato pela amizade, pelo acolhimento em sua casa e por muitas outras coisas, inclusive por ter me apresentado a Imagine, álbum e canção que têm me acompanhado pela vida. Jealous Guy faz parte de minha trilha musical para sempre.

Ogutier
Meio século se passou. John Lennon morreu estúpida e violentamente, na contramão de seu hino de paz. O mundo continua sendo o que sempre foi, cenário de guerras e injustiças. A cidade cresceu e mudou, não sei se para melhor. O Hotel Tambaú está fechado e decrépito. Eu e meu amigo ficamos grisalhos. A menina bonita da classe já deve ser avó. Mas Imagine continuará encantando as gerações sucessivas pelos tempos afora, sempre atual e jovem, como clássico que é.

E continuamos a imaginar como seria vivermos do jeito que Lennon sonhou antes do sonho acabar.


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