Para quem leva a sério ou, pelo menos, vê sentido em saber onde pisa, a qualidade de seu chão e do seu povo, suas potencialidades naturais...

Irineu de todos os tempos

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Para quem leva a sério ou, pelo menos, vê sentido em saber onde pisa, a qualidade de seu chão e do seu povo, suas potencialidades naturais e históricas, nada como se deter, uma vez ou outra, nas Notas sobre a Paraíba de Irineu Joffily. Não há melhor companhia, sobretudo para quem não se sente ou nunca se sentiu muito firme e seguro no presente.

Nesse aspecto – o de possuir história de acervo seguidamente enriquecido – temos pouco a nos queixar, mesmo diante de pujanças materiais e culturais de outros patrícios seccionados em sua naturalidade, províncias e estados, como o vizinho Pernambuco e os da hegemonia do ouro,
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Engenho Capim Assu ▪ Fonte: Brejotur
do café e da moderna e pós-moderna riqueza industrial. Quanto mais ouro e mais café, mais contingenciados na economia e na cultura do empório comprador.

Meninote, aprendi me arranhando em cima do burro e por entre enfieiras de agave, a dependência de quem planta das matrizes que ditam o preço. Vi meu pai desfazer-se de sua grande obra, construída de roçado em roçado até chegar a bueiro de engenho, porque o Seridó já não descia por Pocinhos atrás de nossa rapadura. Não era mais senhor do seu engenho, mesmo vivendo sem grande diferença de comodidade e conforto dos seus dez ou doze moradores. Vi meu colega Roosevelt, herdeiro do mais orgulhoso dos coronéis, debruçar-se desolado na banqueta empoeirada do seu belo engenho, o Capim Assu onde nasceu Pedro Gondim. Brejo, cariris e sertões já não gastavam o seu produto, rendido pelo açúcar de rico, bem triturado e branco. Sem ais nem lágrimas, já homens, choramos juntos. É em cima disto que mais nos aproximamos da verdadeira história.

Há um depoimento do coronel José Rufino de Almeida, recolhido em pequena brochura por seus filhos Alice e Antônio Augusto, que guardo na estante ao lado de Casa-Grande & Senzala do mestre Gilberto Freyre. Aos meus ouvidos de menino brejeiro ninguém era mais coronel do que ele em tradição, prestígio social e relativo poder econômico. No entanto, na hora em que o interesse externo disponibilizou seu mercado para o sisal,
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Engenho Beatriz ▪ Fonte: Brejotur
o grande coronel caiu na real: “Ajudada pelo homem a agave dizimou os grandes exércitos da cana de açúcar e encurralou os remanescentes nas grutas e vales onde ainda hoje (1948) lutam sem possibilidade de vitória. Ocupando as posições estratégicas, as encostas e altos, e tendo o homem como um forte aliado, a agave cada vez mais aperta o cerco (...) e em vão luta a cana de açúcar já derrotada”. E reproduz, em capítulo de vívida sociologia, as condições de pobreza e decadência, o modus vivendi do “senhor de engenho”, desde as paredes estioladas da casa-grande à intimidade vulgaríssima da mesa e dos aposentos: “Aparelho sanitário, já se sabe, era o capão de mato nas traseiras da casa, e o papel higiênico a natureza se encarrega de distribuí-lo por ali mesmo”.

O livro de Joffily, ditado pela vivência sofrida da terra e do homem, quanto mais passa o tempo mais se torna apaixonante. De uma necessidade apaixonante foi a expressão espontânea, reincidente do meu entusiasmo pelas “Notas” de Irineu Joffily, de vigor sempre renovado a fugir do traçado e pomposo estilo europeu.

Por sugestão de aula do professor Milton Delone, do efêmero Ginásio Castro Pinto, seguidor rigoroso da gramática de Eduardo Carlos Pereira, eu tinha quebrado a cabeça com a leitura de Alexandre Herculano, “o maior vulto das letras lusitanas do século XIX”. Degluti à farta e mesmo com entusiasmo, além das “Lendas e Narrativas”, a grave e severa “História de Portugal”. Foi tão farto o banquete que vivi meu instante de nariz pra cima, enjoando-me dos Rocha Pombo da história oficial brasileira. Ainda dei colher de chá a Alfredo D’Escragnolle Taunay,
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apesar de indicada para o curso colegial, concisa, precisa de linguagem, primeira abordagem de matiz econômico do país chegada às minhas mãos.

Torpedeado nessa iniciação, dei com as “Notas” de Irineu Joffily na estante preciosíssima do velho Bertino do Carmo Lima, um contador que lia Marx, recorrendo a ele sempre que o imperialismo do presente produzisse a necessidade de interpretação à luz do marxismo. E não somente vi ou li o livro de Joffily, como saí com ele, levando-o na cabeça e nos peitos, arrostando o sol e a areia quente dos caminhos e veredas da paixão do autor.

Meio século depois, já setentão, quando Dorgival Terceiro Neto, de sua casa de fazenda de Taperoá, mostrou-me o Pico gigante, rival do Jabre, que se ergue à pouca distância dali, lembrei-me da esforçada e temerária subida de Joffily, do seu voo de águia, para ver de cima, como vira antes no cimo do Jabre, o descortino de serras, águas e terras daquele acidentado mapa natural da Paraíba. Hoje, de helicóptero, não se tem desses desejos.

Passando ao livro, ao seu modo de ver e transmitir, é preciso notar que nisto o paraibano antecipou-se a João Ribeiro e Capistrano. Estes, já com suas concepções, ainda não haviam dado a graça do seu enfoque “fora da pompa e grande estilo” seguido até então.
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Irineu Joffily ▪ Fonte: Paraíba Criativa
O sergipano com sua História do Brasil (1900), o cearense com os “Capítulos de História Colonial” – 1907, enquanto Joffily, em capítulos sequenciados no Jornal do Comércio, do Rio, onde se exilara, se antecipava em seu olhar para dentro, em tratar com “olhar interno” a nossa formação, “as feições e fisionomias próprias derivadas do colono, do índio e do escravo negro.”

Descrita a terra, percorrida e avistada de cima e ao sopé da Borborema; conhecido o sertanejo de rédeas livres tão bem montado quanto o fazendeiro, o brejeiro quase sempre segurando as rédeas do senhor de engenho, Joffily nos conduz a ser pessoa da história, a nos ver nela, a buscar a consciência da nossa identidade.

Página a página, passo a passo, nos incorpora a seu sertanismo em busca de uma única riqueza, a de sabermos quem somos. Como jornalista, advogado, homem público e lavrador da pesquisa histórica, é a essa a busca que ele se entrega. Sustentada de seu bolso num jornal de conscientização e defesa da terra paraibana. E sem tirar os olhos do mundo, como se vê da sugestão feita ao contemporâneo Pedro Américo: “Pinte a Paraíba, homem! Pinte Areia!” tão angustiante que a iniciativa de um homem só, José Fernandes de Andrade, individual, privada, não pôde esperar pela das instituições públicas, tudo fazendo para reeditá-la.

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  1. Irineu Joffily é daqueles paraibanos que se tem a honra e o prazer em dizer: eu sou conterrâneo dele.

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  2. Gonzaga,
    Você continua insuperável.

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  3. Quem com o ferro fere, com este será ferido.
    Basta este brocado, para entendermos o que aconteceu com o brejo paraibano e outras áreas de nosso interior, em especial, também, com essa mesma agave, hoje derrotada pelo gigantismo petrolífero.
    Mas, como a roda da fortuna não é estática, já começam a aparecer os primeiros sinais de derrocada desse monstro que ameaçava engolir a todos, trazendo de volta aquilo que natureza nos dá com tanta largueza.
    Quem sabe, em breve voltaremos a ver os tapetes brancos que faziam a alegria do nosso alto sertão, as bandeiras desfraldadas de nossos canaviais e as espadas em riste, nos campos sisaleiros dos nossos rincões.

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