Gosto de garimpar frases nas redes sociais. Aqui e acolá, me deparo com algumas que não dizem nada, mas que são repetidas à exaustão ...

Inania verba

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Gosto de garimpar frases nas redes sociais. Aqui e acolá, me deparo com algumas que não dizem nada, mas que são repetidas à exaustão por aqueles que as acham lindas e maravilhosas. O fato é que estas frases, na realidade, não resistem a uma análise. Uma delas é a sábia e suprema lição de que o retrovisor do carro é menor do que o para-brisa, porque devemos sempre olhar para a frente e não para trás. Ora, estes itens de segurança de um veículo foram produzidos com intenção pragmática, utilitária, não filosófica. O retrovisor é menor porque ele nos ajuda a dirigir defensivamente, buscando-o sempre que se faz necessário, não é para ficarmos olhando para ele definitivamente. Já o para-brisa protege-nos contra o vento,
Yomare
daí o seu nome, e contra a chuva, fazendo-nos ter um desempenho mais seguro, diante do conforto que nos oferece. Se ele fosse menor do que o retrovisor, nada veríamos e os desastres aconteceriam continuamente. O leitor poderá arguir ser a frase metafórica. Ainda assim é muito ruim.

O problema se torna maior, quando a frase é proveniente, não de uma pretensa filosofia de vida, como a que acabamos de ver, mas de um pensamento doutrinador. O doutrinado a aceita sem reservas e a repete como se estivesse dizendo a verdade mais verdadeira. Como o doutrinado, em geral, não raciocina, ele chancela a verdade que foi obrigado a aceitar, criada pelo doutrinador, que o manipula. Por ele ter comprado caro uma ideia, ele não quer se livrar dela, não quer questioná-la. O doutrinado a vê condizente com as (in)conveniências de suas ideias limitadas de alguém obrigado a aceitar o que lhe ditam.

O leitor deve estar bem acostumado a ler nas redes sociais uma destas frases: “Eu faço parte dos x milhões que não votaram no candidato y”. É preocupante, muito preocupante que alguém passe a repetir isto, sem um mínimo de visão crítica sobre o que está dizendo. Há pelo menos três problemas nessa frase: um problema de sofisma, um problema de lógica matemática e um problema de aritmética simples.

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Amr Taha
A doutrinação política, ainda que limitada, é inteligente, porque dirigida a mentes carentes. O que se cria como verdade, mesmo sendo mentira, é absorvido por essas mentes, preenchendo as suas carências, que são muitas. Dentre elas, a de raciocínio, mesmo que muitos levantem a bandeira da leitura e da educação. Pelo que passam a repetir, ouso dizer que estas pessoas não leem e se leem não procuram entender o que foi lido. A leitura que se quer é qualitativa, envolvendo, lógico, a compreensão e a interpretação. A leitura que muitos fazem, comumente, é quantitativa, e, muitas vezes, sequer envolve a compreensão mais básica.

Voltemos à frase e façamos uma pequena análise do que ela representa. Para uma melhor compreensão, vamos dar um número redondo aos eleitores e um nome aos candidatos. Assim, a frase ficará:
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Septimiu
“Eu faço parte dos 90 milhões de eleitores que não votaram em José”.

O primeiro problema é que estamos diante de um sofisma. Dá-se a impressão de que 90 milhões de pessoas não votaram em José e, num universo de 140 milhões de eleitores, José foi eleito com 50 milhões de votos, um absurdo para um sistema democrático! Ao mesmo tempo, incute-se no incauto doutrinado que Severino, rival de José, teria tido 90 milhões de votos. Todos sabemos que num sistema eleitoral como o brasileiro, submetido à democracia e ao republicanismo, vence quem tem a maioria dos votos: 50% mais um, no primeiro turno, ou qualquer maioria, até a de um único voto, no segundo turno, caso não seja atingida a maioria absoluta já no primeiro turno. Temos, portanto, um sofisma que, na realidade, revela uma mentira deslavada com que se convenceu o ingênuo doutrinado e se quer convencer as pessoas que não entendem como se realiza o processo eleitoral. Estas mentiras são propagadas aos quatro ventos por aqueles mesmos que dizem ser contra as fake news...

O segundo problema está na lógica matemática, envolvendo elementos diferentes. Todos sabemos que 30 bananas, 15 mamões e 5 laranjas, não resultam em 50 frutas, mas em cinquenta unidades envolvendo 3 frutas. Os 40 milhões que votaram em Severino estão contando, maldosamente, os nulos, brancos e as abstenções, como votos contrários a José. Ora, os votos brancos e nulos são exatamente o que são: brancos e nulos, não foram a favor de Severino, nem contra José. Foram, numa forma de protesto, contra os dois.
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Marco Bianchetti
As abstenções têm, na prática, o mesmo significado dos votos brancos e nulos, apenas algumas pessoas não se deram o trabalho de ir à cabine de votação. Não se pode, portanto, computar a favor de Severino ou contra José esses votos e as abstenções, porque são unidades diferenciadas.

Por último, temos um problema de aritmética básica, aquela das quatro operações, sem as quais não se chega à álgebra ou a níveis mais avançados de matemática. Vence quem tem o número maior de votos válidos: José teve 50 milhões; Severino, 40 milhões. Numa subtração simples, José teve 10 milhões de votos a mais. Não há mistério algum, nem precisa calcular o valor de x ou extrair a raiz quadrada ou fazer média ponderada.

Acrescento ainda que o sofisma inicial é tão frágil que se poderia utilizar contra o doutrinador e os doutrinados, que o acharam a oitava maravilha do mundo. Alguém poderia dizer: “Eu faço parte dos 100 milhões de pessoas que votaram contra Severino”. Se isso acontecesse, iriam dizer que era fake news, por que só o adversário do doutrinador e do doutrinado é que mente. Eles e os que eles seguem como fiéis rafeiros são puros como Lúcifer antes da queda.

Como dizia Millor Fernandes: “Democracia é quando eu mando em meu vizinho; quando meu vizinho manda em mim, é ditadura”.

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  1. Ramalho Leite31/7/22 12:14

    Para alguns Milton não precisa traduzir mas para o público em geral precisava dizer o significado de Inania verba ( palavras vazias). O texto é primoroso, como sempre os da sua lavra e sobretudo didático, onde transparece o professor. Foi minha primeira leitura hoje. Ab

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