Em 1899, Ernst Haeckel publicou um dos livros mais importantes de que se tem notícia – Os enigmas do universo –, em que ele expõe a sua...

Haeckel e a Educação

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Em 1899, Ernst Haeckel publicou um dos livros mais importantes de que se tem notícia – Os enigmas do universo –, em que ele expõe a sua maneira de pensar a ciência e os seus postulados científicos, sobretudo aqueles cujos conteúdos partem da Teoria da Evolução da Espécie e da Seleção Natural das Espécies, de Darwin. O livro foi logo traduzido do alemão para o francês, por Camille Bos, e publicado em 1902, ganhando uma divulgação jamais vista para uma obra científica.

Haeckel, claro, contribuiu para o fato de a obra ter-se popularizado, pois era a sua intenção escrever a respeito da ciência, sobretudo o Monismo, com o propósito de que o pensamento científico pudesse ser acompanhado por qualquer pessoa
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que tivesse uma boa formação escolar. Nesse livro, Haeckel apresenta um projeto de educação, que via como necessário e incontornável, em uma Alemanha que já produzira, só na área da anatomia, fisiologia, patologia, embriologia, ótica, à sua época, grandes gênios e destacados cientistas – F. Meckel, J. Müller, C. Gegenbauer, R. Wirchow, Theodor Schwann, Schleiden, E. Brücke, Kölliker, C. S. Baer, R. Mayer, W. Wundt, Zeiss –, sem contar ele próprio. Ainda assim, ele compreendeu que a educação deveria ser para todos, obedecendo a determinados critérios que ajudariam a compor tanto o perfil intelectual e cultural, quanto o perfil físico e o caráter do cidadão. Antes mesmo de detalhar o seu projeto, já no início de seu livro Haeckel expõe o que entende por uma educação (todas as citações foram retiradas da edição fac-similar da Hachette/BNF – Les énigmes de l’univers, traduction de Camille Bos, Paris, Librairie C. Reinwald, Schleicher Frères, Éditeurs, 1902, em tradução nossa):

“O nosso dever essencial é formar a juventude para a razão, educar cidadãos libertos da superstição e isso só é possível por meio de uma reforma oportuna da Escola”
Capítulo Primeiro, Como se estabelecem os Enigmas do Universo, p. 10
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Shubham Sharan
O cientista tem, por sua vez, a consciência de que a educação, sendo a base da sociedade, deve ser abraçada por todos, não apenas pelo Estado. Os ricos deveriam reverter a sua filantropia também para a educação dos jovens, contribuindo, assim, para formação de uma sociedade sólida, cujo fundamento é a razão:

“Todo filantropo deveria, pois, por todos os meios possíveis, impulsionar a fundação de escolas sem confissão, como uma das instituições mais preciosas do Estado moderno em que reina a razão”
Capítulo XVI, Ciência e Crença, p. 348-9
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Tra Nguyen
É no Capítulo XIX, A nossa moral monista, que Haeckel expõe com detalhes o seu modelo de educação para a Alemanha do fim do século XIX, de que destacaremos algumas frases, sem que sejam necessários comentários, por considerá-las autoexplicativas:

“A primeira finalidade a se propor deveria ser a separação completa da Igreja e do Estado. A ‘Igreja livre’ deve existir no ‘Estado livre’, isto é toda Igreja deve ser livre no exercício do seu culto e das suas cerimônias, do mesmo modo na construção dos seus poemas fantasistas e dos seus dogmas supersticiosos – com a condição, todavia, de que não ameace por isso a ordem pública nem a moralidade”
p. 410-11

“Mas, para todos os crentes dessas confissões diferentes, a religião deve permanecer coisa privada; o Estado não deve senão vigiá-la e impedir seus desvios, mas não deve nem oprimi-la nem sustentá-la”
p. 411
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Kenny Eliason
“Este ‘ensino confessional’ é coisa absolutamente privada, é um dever que diz respeito aos pais ou aos tutores, ou antes aos padres e preceptores em quem os primeiros puseram pessoalmente a sua confiança”
p. 411

“A nova Estética monista, edificada sobre o alicerce sólido do conhecimento moderno da natureza – e antes de tudo, da doutrina da evolução – forneceu matéria, nestes últimos trinta anos, a uma literatura muito estudada”
p. 411-12
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Jeswin Thomas
“Quanto à Bíblia, esse ‘Livro dos Livros’, não deveria ser posto nas mãos das crianças senão sob a forma de extratos cuidadosamente escolhidos (sob a forma de ‘Bíblia escolar’); evitar-se-ia, assim, que a imaginação infantil se manchasse com as numerosas histórias impuras e as narrativas imorais de que o Velho Testamento, em particular, é tão rico”
p. 412

“Depois que o nosso Estado civilizado moderno se libertar e a Escola com ele, das cadeias em que a Igreja os mantinha escravos, ele não poderá senão consagrar melhor as suas forças e os seus cuidados à organização da escola”
p. 412
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Thought Catalog
Seguem-se, então, alguns pontos necessários à reforma escolar, de modo a se acompanhar o progresso das ciências, sobretudo as ciências naturais (p. 413-414):

1. Ensino da língua deve acompanhar o estudo da natureza;

2. a natureza será o objeto principal dos estudos; o homem deverá realizar uma ideia justa do mundo em que vive, não se pondo fora da natureza ou em oposição a ela, mas devendo aparecer como o seu produto mais elevado e mais nobre;

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Taylor Flowe
3. estudo das línguas clássicas, com o latim obrigatório e o grego facultativo;

4. estudo das línguas modernas, sendo o inglês e o francês obrigatórios e o italiano facultativo;

5. o ensino da história deve voltar-se mais para a vida intelectual, para a civilização interior do que para a exterior;

6. os grandes traços da doutrina da evolução devem ser ensinados juntamente com a cosmologia; a geologia com a geografia; a antropologia com a biologia;

7. os grandes traços da biologia devem ser apreendidos por todo homem instruído, como a ecologia ou bionomia, a que se juntarão elementos de anatomia e fisiologia;

8. devem ser estudados os grandes pontos da química e da física e a sua validação exata pela matemática;

9. estimular o estudo do desenho do mundo natural, para que os jovens, aprendam a ver bem e a compreender o que viram observando a natureza;

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Erik Mclean
10. educação corporal com ginástica e natação, além de caminhadas, a cada semana, e viagens a pé, a cada ano, durante as férias, pois a contemplação que se oferece nessas oportunidades será de grande valor à formação dos jovens.

Haeckel visava uma educação que não só preparasse para uma profissão ou para a aquisição de certa dose de conhecimentos, mas que tivesse “como finalidade principal, o desenvolvimento do pensamento independente” (p. 414), visto que a boa preparação fornecida pela escola só teria sentido se o desenvolvimento da inteligência fosse empregado para o bem maior de todos. Ainda que haja pontos discutíveis no seu projeto – e é por isto que se chama projeto –, podemos constatar uma visão avançada para a sua época, na concepção de um estado realmente laico, na compreensão de que a ecologia deveria ser estudada e, sobretudo, na convicção de que a pesquisa na área da biologia evolutiva é imprescindível para que possamos nos compreender melhor.

Isto posto, gostaria de me dirigir a todos os que dizem acreditar na Ciência (que está pouco se importando se acreditam ou não nela...); que dizem apoiá-la com todas as forças e que, ao menos nas redes sociais, se dispõem a defendê-la incondicionalmente, para perguntar se já se questionaram sobre a inexistência de um projeto nacional para a Educação, de que a Ciência depende totalmente. Ou se educação é apenas um nome vazio como tantos outros – como democracia, por exemplo –, na boca de quem diz irresponsavelmente o que alguns querem apenas ouvir, nunca arregaçar as mangas em sua construção.

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