Intriga que algumas pessoas tenham as habilitações vocacionadas para o processo de criação literária, ainda que eventualmente não exerçam essa militância, enquanto tantas outras jamais conseguirão transitar no universo dessa concepção, por absoluta ausência de mecanismos criativos, ainda que eventualmente se apropriem e dominem as ferramentas necessárias à manufatura do texto literário.
Então, por que algumas pessoas fazem fluir o veio subterrâneo da desdita literária, mesmo que eventualmente não compreendam inteiramente sua mecânica, enquanto a tais outras
O que, na verdade, distingue estas pessoas daquelas outras? Ainda que possa parecer pretensioso, se olharmos bem de perto, será possível verificar como aqueles tocados pela habilitação literária apresentam, via de regra, um comportamento de anormalidade, que os coloca num plano marginal em relação aos demais, e impressiona que esses agentes, flagrantemente em minoria, existam como uma exceção a uma regra de normalidade.
Vamos atentar para o que diz Fernando Pessoa (Aforismos e Afins, 2006):
“A loucura, longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana. Não ter consciência dela, e ela não ser grande, é ser homem normal. Não ter consciência dela e ela ser grande, é ser louco. Ter consciência dela e ela ser pequena é ser desiludido. Ter consciência dela e ela ser grande é ser gênio.”
Essa loucura compreendida como algo dotado de uma especial qualidade inerente ao criador literário, mesmo no sentido “dichter” atribuído por Sigmund Freud que, numa tradução livre, seria o “criador de ficções”, também compreendido como uma “singular personalidade”,
E se igualmente dermos crédito ao que postula Roland Barthes (2008), e é temerário não dar, “a narrativa (compreendida aí como uma das manifestações da criação literária) começa com a própria história da humanidade; não há, não há em parte alguma povo algum sem narrativa”, então precisamos aceitar a ideia de que sempre houve tais pessoas, digamos, que são exceção à regra, mas tão imprescindíveis à formatação da escalada humana. E a verdade é que, acreditando no belo tratado de Jean Jacques Rousseau, “Ensaio sobre a origem das línguas” (2010), devemos crer que “os primeiros motivos que fizeram falar o homem foram as paixões, suas primeiras expressões foram tropos... a princípio, falou-se somente em poemas, só se começou a raciocinar muito tempo depois”.
Era preciso ter quem produzisse essas metáforas numa linguagem compreensível pelos seus. Seria a tradução livre dos sentimentos, na forma de poesias rudimentares, como forma arcaica da linguagem. Neste caso, podemos afirmar que se trata de um imperativo da aventura humana a produção de exceções como elemento de chancela do sentido mais íntimo da alteridade? O que a humanidade seria sem essas pessoas exceção às demais? Sem elas seria possível admitir a evolução humana,
E aqui é importante pontuar como, sendo “anormais”, aqueles que tenham desenvolvido a capacidade de se incorporar à força da seleção natural. Para Darwin, “todos os seres vivos estão lutando, por assim dizer, para se apoderar de cada lugar na economia da natureza”. Quem a natureza estaria selecionando? Os normais ou as exceções?
É curioso como o processo de seleção natural tenha reservado um lugar de excepcionalidade para estes homens modelo exceção, quase uma espécie à parte e, paradoxalmente, estabeleça para eles um espaço minoritário e, ao mesmo tempo, imprescindível. Porque se eles parecem fazer parte de um processo evolutivo, dinâmico e marginal, também se estabelecem como absolutamente necessários ao fator humano, tanto que nunca houve e jamais haverá um povo que não tenha narrativas. E para que as narrativas existam, será preciso que alguém potencialmente diverso elabore. E sempre haverá uma horda de outros homens para ouvir, porque certamente não serão capazes de compreenderem-se como humanos, sem o concurso daqueles que abrem os caminhos no bosque de sua aventura na terra. “Um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não existem num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a direita de determinada árvore num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o tempo todo”.
E novamente Freud (O poeta e a fantasia, 1958): “Quando o poeta nos põe em presença de divertimento (sua obra) ou nos conta aquilo que costumamos definir como seus sonhos diurnos pessoais, sentimos um elevado prazer, que flui certamente de numerosas fontes. Como o poeta o consegue é o seu mais íntimo (e intransferível) segredo.” Neste sentido, podemos inclusive tomar de empréstimo o que advoga Antônio Cândido, em “A literatura e a formação do homem” (1972): “O leitor, nivelado ao personagem pela comunidade do meio expressivo, se sente participante de uma humanidade que é a sua, e deste modo, pronto para incorporar à sua experiência humana mais profunda o que o escritor lhe oferece como visão da realidade”. É também digno de registro o que persevera Cândido (1972):
“Ninguém pode viver um dia sequer sem fantasiar, ainda que isto se manifeste como jogo de loteria, deva- neio, construção ideal ou anedota... a literatura é a forma mais rica e mais complexa de manifestação da fantasia.”
Sob essa perspectiva, não haverá escritores sãos. Apesar de que nem todos os insanos serão escritores, parece óbvio. Sigmund Freud, aparentemente, consolida esta assertiva, quando professa em “O poeta e a fantasia” (1958): “Pode-se afirmar que o homem feliz jamais fantasia, mas o insatisfeito sim”. Insatisfeito no sentido de incompleto, insano, acometido dessa loucura, digamos,
Eis o que sinaliza o escritor argentino Ernesto Sabato (O escritor e seus fantasmas, 2003), quando fala do "fanatismo" do autor com respeito ao seu processo de criação literária: “É preciso ter uma obsessão fanática, nada deve antepor-se a sua criação, deve sacrificar qualquer coisa a ela. Sem esse fanatismo nada de importante pode ser feito.”
O próprio Sigmund Freud se expressa, em outro momento (ao receber o Prêmio Goethe, Frankfurt, 1930), numa rendição ao processo criativo que identifica no autor de Fausto: “Goethe sempre valorizou altamente Eros, nunca tentou minimizar seu poder, seguiu suas expressões primitivas e mesmo licenciosas com não menor atenção do que suas manifestações mais sublimadas”.
“Em termos de criação estética, a experiência literária é, antes de tudo, superação da fúria, do desprezo e do desespero. O ímpeto de Tânatos, seduzido pela angústia, pelo vazio e pela perda, impulsiona o sujeito insatisfeito à agressividade reparadora, da qual resulta a criatividade”. Está em (Des)encontros com o tempo: semioses da fantasia literária”, de Hermano de França Rodrigues (2013).
A diferença está fortemente evidenciada. O escritor trabalha com a mesma matéria com que mineram os seus semelhantes. Mas, apenas ele, o autor, é capaz de transformar essa matéria em prazer estético e estranhamento. O homem “comum” não tem essas habilidades, e não terá como aprender. Sua sina é ser leitor, ou nada. Há, portanto, uma profusão de pistas que levam ao desespero da condição humana como sua realidade imanente.
Mas, somente aqueles realmente acometidos do mal da dor do mundo serão capazes de traduzir em obra o que se inscreve na contemporaneidade e na alma de uma gente. Eles são possuídos pelo “espírito” da fantasia. Mas, enquanto os homens comuns usam a fantasia como simples devaneio, os criadores a utilizam como combustível para mover a fornalha da concepção literária.
Josef Israels, Séc. XIX
Esse encadeamento de assertivas, aparentemente, sinaliza na direção do autor, enquanto criador de narrativas, como o sujeito tocado por uma “anormalidade” darwinianamente necessária e que parece remeter ao seu próprio desespero e à necessidade de uma expressão reparadora, capaz de mitigar o seu sofrimento. Sem esses elementos intrínsecos à sua natureza, certamente não terá, como o fogo entregue por Prometeus aos humanos, o engenho para a criação literária, na verdadeira acepção da urdidura na cumplicidade com a palavra. Se ele é neurótico, psicótico ou perverso, talvez seja apenas uma questão de semântica.