Intriga que algumas pessoas tenham as habilitações vocacionadas para o processo de criação literária, ainda que eventualmente não exerç...

O signo da insanidade na criação literária

Intriga que algumas pessoas tenham as habilitações vocacionadas para o processo de criação literária, ainda que eventualmente não exerçam essa militância, enquanto tantas outras jamais conseguirão transitar no universo dessa concepção, por absoluta ausência de mecanismos criativos, ainda que eventualmente se apropriem e dominem as ferramentas necessárias à manufatura do texto literário.

Então, por que algumas pessoas fazem fluir o veio subterrâneo da desdita literária, mesmo que eventualmente não compreendam inteiramente sua mecânica, enquanto a tais outras
não conseguem extrair o minério verdadeiramente literário, ainda que possam dispor de maquinário apropriado para sua prospecção? No máximo, conseguem obter o cascalho onde existe também ali o precioso metal da criação.

O que, na verdade, distingue estas pessoas daquelas outras? Ainda que possa parecer pretensioso, se olharmos bem de perto, será possível verificar como aqueles tocados pela habilitação literária apresentam, via de regra, um comportamento de anormalidade, que os coloca num plano marginal em relação aos demais, e impressiona que esses agentes, flagrantemente em minoria, existam como uma exceção a uma regra de normalidade.

Vamos atentar para o que diz Fernando Pessoa (Aforismos e Afins, 2006):

“A loucura, longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana. Não ter consciência dela, e ela não ser grande, é ser homem normal. Não ter consciência dela e ela ser grande, é ser louco. Ter consciência dela e ela ser pequena é ser desiludido. Ter consciência dela e ela ser grande é ser gênio.”
Parece, inclusive, dialogar com o que verseja Arthur Rimbaud (Uma temporada no inferno, 1997), em Delírios II, A alquimia do verbo: “Acabei por considerar sagrada a desordem de meu espírito.” Não seria essa desordem precisamente a anormalidade, ou o registro da mesma loucura admitida por Fernando Pessoa? A desordem (loucura) que diferencia o escritor dos demais. Rubem Fonseca certamente reforçou a ideia quando afirmou: “Escrever é uma forma socialmente aceita de loucura" (ao receber o Prêmio Literário Casino da Póvoa – Portugal, em 2012).

Essa loucura compreendida como algo dotado de uma especial qualidade inerente ao criador literário, mesmo no sentido “dichter” atribuído por Sigmund Freud que, numa tradução livre, seria o “criador de ficções”, também compreendido como uma “singular personalidade”,
ou “aquele capaz de perturbar intensamente com sua obra”, conforme interpretação de Edmundo Gómez Mango (Freud com os escritores, 2013 ).

E se igualmente dermos crédito ao que postula Roland Barthes (2008), e é temerário não dar, “a narrativa (compreendida aí como uma das manifestações da criação literária) começa com a própria história da humanidade; não há, não há em parte alguma povo algum sem narrativa”, então precisamos aceitar a ideia de que sempre houve tais pessoas, digamos, que são exceção à regra, mas tão imprescindíveis à formatação da escalada humana. E a verdade é que, acreditando no belo tratado de Jean Jacques Rousseau, “Ensaio sobre a origem das línguas” (2010), devemos crer que “os primeiros motivos que fizeram falar o homem foram as paixões, suas primeiras expressões foram tropos... a princípio, falou-se somente em poemas, só se começou a raciocinar muito tempo depois”.

Era preciso ter quem produzisse essas metáforas numa linguagem compreensível pelos seus. Seria a tradução livre dos sentimentos, na forma de poesias rudimentares, como forma arcaica da linguagem. Neste caso, podemos afirmar que se trata de um imperativo da aventura humana a produção de exceções como elemento de chancela do sentido mais íntimo da alteridade? O que a humanidade seria sem essas pessoas exceção às demais? Sem elas seria possível admitir a evolução humana,
tal qual postulou Charles Darwin (A origem das espécies, 2004)?

E aqui é importante pontuar como, sendo “anormais”, aqueles que tenham desenvolvido a capacidade de se incorporar à força da seleção natural. Para Darwin, “todos os seres vivos estão lutando, por assim dizer, para se apoderar de cada lugar na economia da natureza”. Quem a natureza estaria selecionando? Os normais ou as exceções?

É curioso como o processo de seleção natural tenha reservado um lugar de excepcionalidade para estes homens modelo exceção, quase uma espécie à parte e, paradoxalmente, estabeleça para eles um espaço minoritário e, ao mesmo tempo, imprescindível. Porque se eles parecem fazer parte de um processo evolutivo, dinâmico e marginal, também se estabelecem como absolutamente necessários ao fator humano, tanto que nunca houve e jamais haverá um povo que não tenha narrativas. E para que as narrativas existam, será preciso que alguém potencialmente diverso elabore. E sempre haverá uma horda de outros homens para ouvir, porque certamente não serão capazes de compreenderem-se como humanos, sem o concurso daqueles que abrem os caminhos no bosque de sua aventura na terra. “Um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não existem num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a direita de determinada árvore num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o tempo todo”.

É o que professa o escritor Umberto Eco, em “Seis passeios pelos bosques da ficção” (1994). E podemos compreender o bosque sendo de fato a obra tal como o autor apresenta ao leitor para ser palmilhada, com todas as suas trilhas, encruzilhadas, armadilhas. Está na obra de Jean Bertrand Pontalis e Edmundo Gómez Mango (Freud com os escritores, 2013): “O escritor é capaz de recuperar, na língua, a vida secreta do sonho”.

E novamente Freud (O poeta e a fantasia, 1958): “Quando o poeta nos põe em presença de divertimento (sua obra) ou nos conta aquilo que costumamos definir como seus sonhos diurnos pessoais, sentimos um elevado prazer, que flui certamente de numerosas fontes. Como o poeta o consegue é o seu mais íntimo (e intransferível) segredo.” Neste sentido, podemos inclusive tomar de empréstimo o que advoga Antônio Cândido, em “A literatura e a formação do homem” (1972): “O leitor, nivelado ao personagem pela comunidade do meio expressivo, se sente participante de uma humanidade que é a sua, e deste modo, pronto para incorporar à sua experiência humana mais profunda o que o escritor lhe oferece como visão da realidade”. É também digno de registro o que persevera Cândido (1972):

“Ninguém pode viver um dia sequer sem fantasiar, ainda que isto se manifeste como jogo de loteria, deva- neio, construção ideal ou anedota... a literatura é a forma mais rica e mais complexa de manifestação da fantasia.”
Este arrazoado em conjunto parece sinalizar que somente o homem acometido dessa “loucura”, no caso especial do escritor, é capaz de promover a usinagem das palavras com a matéria da universalidade por ser ele, com essa insanidade, vetor de estranhamentos que desencadeiam mudanças profundas nos semelhantes e, por consequência, no mundo, porque está em si o germe que o devora a si próprio e, ao mesmo, concebe o futuro das gentes.

Sob essa perspectiva, não haverá escritores sãos. Apesar de que nem todos os insanos serão escritores, parece óbvio. Sigmund Freud, aparentemente, consolida esta assertiva, quando professa em “O poeta e a fantasia” (1958): “Pode-se afirmar que o homem feliz jamais fantasia, mas o insatisfeito sim”. Insatisfeito no sentido de incompleto, insano, acometido dessa loucura, digamos,
sagrada, como anunciou Rimbaud. E Freud compreende a fantasia como o elemento que encapsula de afetos o processo de criação literária, como de resto, a criação artística. Diz Sigmund (1958): “O poeta (escritor) suaviza o caráter egoísta do sonho noturno por meio de modificações e ocultações e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, proveniente da exposição de suas fantasias.”

Eis o que sinaliza o escritor argentino Ernesto Sabato (O escritor e seus fantasmas, 2003), quando fala do "fanatismo" do autor com respeito ao seu processo de criação literária: “É preciso ter uma obsessão fanática, nada deve antepor-se a sua criação, deve sacrificar qualquer coisa a ela. Sem esse fanatismo nada de importante pode ser feito.”

O próprio Sigmund Freud se expressa, em outro momento (ao receber o Prêmio Goethe, Frankfurt, 1930), numa rendição ao processo criativo que identifica no autor de Fausto: “Goethe sempre valorizou altamente Eros, nunca tentou minimizar seu poder, seguiu suas expressões primitivas e mesmo licenciosas com não menor atenção do que suas manifestações mais sublimadas”.

Massaud Moisés (Criação literária: poesia, 2003) se refere de um modo particular ao território onde o poeta (escritor) garimpa o seu trabalho criativo, que remete a um processo igualmente insano. Ele se reporta a um “reino de caos, anarquia, alogicidade, de sensações vagas, difusas ainda não verbalizadas, impermeável ao mundo exterior, salvo na medida em que abriga os arquétipos, analogias profundas entre o inconsciente individual e coletivo”.

“Em termos de criação estética, a experiência literária é, antes de tudo, superação da fúria, do desprezo e do desespero. O ímpeto de Tânatos, seduzido pela angústia, pelo vazio e pela perda, impulsiona o sujeito insatisfeito à agressividade reparadora, da qual resulta a criatividade”. Está em (Des)encontros com o tempo: semioses da fantasia literária”, de Hermano de França Rodrigues (2013).

“O sonhador oculta cuidadosamente aos outros suas fantasias, porque tem motivos de se envergonhar delas... se as comunicasse, não produziria com tal revelação prazer algum..." Novamente Freud (O poeta e a fantasia, 1958), que arremata esclarecendo em definitivo: “Em compensação, quando o poeta nos põe em presença de seu divertimento... sentimos um elevado prazer... Como o poeta o consegue é seu mais íntimo segredo.”

A diferença está fortemente evidenciada. O escritor trabalha com a mesma matéria com que mineram os seus semelhantes. Mas, apenas ele, o autor, é capaz de transformar essa matéria em prazer estético e estranhamento. O homem “comum” não tem essas habilidades, e não terá como aprender. Sua sina é ser leitor, ou nada. Há, portanto, uma profusão de pistas que levam ao desespero da condição humana como sua realidade imanente.

Mas, somente aqueles realmente acometidos do mal da dor do mundo serão capazes de traduzir em obra o que se inscreve na contemporaneidade e na alma de uma gente. Eles são possuídos pelo “espírito” da fantasia. Mas, enquanto os homens comuns usam a fantasia como simples devaneio, os criadores a utilizam como combustível para mover a fornalha da concepção literária.

Josef Israels, Séc. XIX
Um demônio do qual não se escapa, e do qual só se sobrevive expondo as vísceras de sua angústia tão pessoal e, simultaneamente, tão universal, através de sua expressão mais legítima que a manifestação literária permite como ho-locausto e como salvação.

Esse encadeamento de assertivas, aparentemente, sinaliza na direção do autor, enquanto criador de narrativas, como o sujeito tocado por uma “anormalidade” darwinianamente necessária e que parece remeter ao seu próprio desespero e à necessidade de uma expressão reparadora, capaz de mitigar o seu sofrimento. Sem esses elementos intrínsecos à sua natureza, certamente não terá, como o fogo entregue por Prometeus aos humanos, o engenho para a criação literária, na verdadeira acepção da urdidura na cumplicidade com a palavra. Se ele é neurótico, psicótico ou perverso, talvez seja apenas uma questão de semântica.

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