Na primeira vez em que fui a Aix-en-Provence, no sul da França, admirei-me com os pregos de bronze, com aproximadamente 10 cm de diâmetro, marcando os passos de Paul Cézanne pela cidade. Das outras vezes, sem a surpresa primeira, mas com grande contentamento, voltei a seguir os passos do célebre pintor impressionista, que tantas vezes pintou a Sainte-Victoire, montanha das cercanias, e se tornou, talvez, o mais notável dos filhos daquela cidade.
Le cabanon des carrières de Bibémus: uma das casas onde Cézanne residiu em Aix-em-Provence.
Em 2022, retornei a Paris, para passar 15 dias. Não era só para fazer nova visita à cidade onde morei durante um ano, mas sobretudo pelo prazer de fazer um mapeamento dos lugares onde o grande escritor Victor Hugo viveu. Embora tivesse andado bastante, a tarefa foi das mais fáceis, tendo em vista que muitos dos espaços habitados pelo genial autor de Os Miseráveis estavam devidamente identificados, com placas legíveis e bem cuidadas, algumas assinalando, inclusive o período em que ali o escritor vivera. A memória preservada, nos casos de Paul Cézanne e Victor Hugo, facilita o trabalho do pesquisador e encanta o turista que, fortuitamente, descobre onde viveram e por onde passaram o pintor e o escritor.Aproveitando o ensejo de Victor Hugo, vemos como o escritor, em seu primeiro grande romance, Notre-Dame de Paris (1831), traduzido entre nós como O Corcunda de Notre-Dame, chama a atenção para a necessidade de preservação da famosa catedral.
Victor Hugo, 1802—1885 / Imagem: Carjat, S.XIX, via Wikimedia.
“Si nous avions le loisir d’examiner une à une avec le lecteur les diverses traces de destruction imprimées à l’antique église, la part du temps serait la moindre, la pire celles des hommes, surtout des hommes de l’art. Il faut bien que je dise des hommes de l’art, puisqu’il y a eu des individus qui ont pris la qualité d’architectes dans les deux derniers siècles.”
“Se nós tivéssemos tempo para examinar, uma a uma, com o leitor, as diversas marcas de destruição imprimidas à antiga igreja, a parte do tempo seria a menor; a pior, as dos homens, sobretudo dos homens de arte. É preciso que eu diga claramente homens de arte, visto que, nos dois últimos séculos, houve indivíduos que se apropriaram do atributo de arquitetos.”)
Notre-Dame de Paris, no século XIX / Fonte: LoC / PD
Degradação, lixo, entulhos, calçadas obstruídas, carros estacionados nos dois lados da rua, estreita para os tempos atuais; um tesouro arquitetônico abandonado, deixado ao sabor da voragem do tempo, revelando o desleixo, o descaso, nas ruínas que se multiplicam ao longo da via.
Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!
Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos
Tinham aspectos de edifícios mortos,
Decompondo-se desde os alicerces!
Augusto dos Anjos viveu em vários lugares. No engenho Pau-d’Arco, onde nasceu e transcorreram sua infância e adolescência, no duplo limite das cidades de Espírito Santo e Sapé; no Recife, eventualmente, nos períodos de seleção para a Faculdade do Recife, a fim de formalizar ali o curso de Direito; aqui, na Paraíba, o então nome de nossa capital; no Rio de Janeiro, cidade em que publicou o seu único livro, Eu, em 1912, onde foi “nomeado professor de Geografia, Corografia e Cosmografia para uma das turmas suplementares do Ginásio Nacional” (carta à mãe, datada de 29 de abril de 1911. VIDAL, 1967, p. 189), conhecido como o famoso Colégio Pedro II. Finalmente, o poeta viveu em Leopoldina, Minas Gerais, onde foi diretor do Grupo Escolar Ribeiro Junqueira e morreu, em 1914.
Casa onde Augusto dos Anjos residiu e faleceu, em Leopoldina, Minas Gerais / Fonte: Almanaque Arrebol
Augusto dos Anjos, 1884—1914 / Fonte: Wikimedia, DP
A respeito dos deslocamentos de Augusto dos Anjos, diz Francisco de Assis Barbosa, em “Notas biográficas” (ANJOS, 1971, p. 302):
“Até 1908, até pois os 24 anos, Augusto dos Anjos viveu no engenho Pau d’Arco, de onde se afastava periodicamente, para breves estadas na Paraíba ou no Recife. Fez todos os exames preparatórios no Liceu Paraibano e todo o curso na Faculdade de Direito, no regime que então se denominava ‘exame vago’, facultado aos alunos que não tivessem frequência regular, condicionando-os à arguição de toda a matéria e não apenas do ponto sorteado.”
Reside, aí, a reclamação que o poeta faz, em carta datada de 27 de fevereiro de 1903, enviada à mãe, do Recife (VIDAL, 1967, p. 135):
“Hoje, pretendo inscrever-me.
Não fi-lo, há mais tempo, porque preciso estudar alguns pontos de que não fiz aí estudo regular. É que caem para exame todos os pontos exigidos pelo programa, e eu não esperava por essa surpresa tão desagradável.”
Não fi-lo, há mais tempo, porque preciso estudar alguns pontos de que não fiz aí estudo regular. É que caem para exame todos os pontos exigidos pelo programa, e eu não esperava por essa surpresa tão desagradável.”
Para este nosso livro, delimitamos, como campo de interesse, o estudo do período em que o poeta viveu aqui na capital, entre 1908 e 1910. Não tivemos a intenção de inovar nada. As informações já existiam, só se encontravam dispersas em vários livros e estudos, cujo foco não era mapear os lugares por onde o poeta passou ou se estabeleceu, razão por que elas se repetem. O que fizemos foi uma leitura seletiva, para realizar a
Dos vários textos consultados, destacamos os de Ademar Vidal, o de Raimundo Magalhães Júnior e o de José Américo de Almeida, mas sabemos da importância dos escritos de Órris Soares, Humberto Nóbrega, Francisco de Assis Barbosa, Horácio de Almeida, De Castro e Silva, Walfredo Rodriguez, entre outros.
O livro de Ademar Vidal, O outro eu de Augusto dos Anjos (1967), tem a suma importância de ter sido escrito por alguém que privou da intimidade do poeta por um ano inteiro, entre 1909 e 1910, como um especial aluno particular, na preparação para o curso de Madureza. Além disso, ali se encontram as cartas de Augusto dos Anjos à mãe, Sinha Mocinha, documentos fundamentais para estabelecer o roteiro de sua permanência nesta cidade de João Pessoa, facilitando o mapeamento dos lugares por onde morou e por onde andou. As cartas foram publicadas várias vezes, por pessoas variadas, mas a primazia de publicação cabe a Ademar Vidal, pelo fato de tê-las recebido das mãos de Sinha Mocinha, após a morte do poeta. Ressalte-se, ainda, a existência das várias notas explicativas que elas trazem.
O livro de Raimundo Magalhães Júnior, Poesia e vida de Augusto dos Anjos (1977), é, sem dúvida a biografia mais minuciosa que se tem do poeta, contribuindo bastante para o nosso trabalho, ao fornecer informações que permitem confrontações. Já a conferência de José Américo – “Augusto dos Anjos, o homem e o poeta” –, inserida no livro
“Ei-lo pulando de uma casa para outra, nas ruas da Capital, no beco do Carmo, na Rua Direita, na Rua Nova, na Rua Padre Lindolfo.”
Tentar decifrar os locais específicos dos vários endereços do poeta é como tentar pôr ordem no caos. Haveria duas possibilidades para ajudar na organização: a existência de documentos fotográficos da época – alguma coisa pode ser vista, mas não tudo, em Walfredo Rodriguez (Roteiro sentimental de uma cidade), e uma apurada investigação nos arquivos da Prefeitura para se constatar a mudança de numeração e identificar as moradas de Augusto dos Anjos. O descaso com a memória, com frequência jogada no lixo, impõe, contudo, muitas dificuldades ao pesquisador.
Arte da capa do livro Ei-lo pulando de uma casa para outra, nas ruas da Capital ▪ ilustração gentilmente cedida pela editora Ideia.
Quem sabe até este esforço consiga sensibilizar o empresariado paraibano a investir na Academia Paraibana de Letras, Casa de Augusto dos Anjos, com o intuito de melhorar e ampliar o memorial do poeta, com a aquisição, por exemplo, de um volume da editio princeps do Eu.