O nome cardinal vem do adjetivo latino cardinalis, que significa “principal”, donde a expressão cardinales numeri, isto é, “números pri...

Funções do numeral cardinal

O nome cardinal vem do adjetivo latino cardinalis, que significa “principal”, donde a expressão cardinales numeri, isto é, “números principais, que servem de base a outros”. É da palavra cardinalis, latina, que vêm o substantivo cardeal para designar o prelado religioso e o adjetivo que designa os pontos principais de orientação (pontos cardeais).

Um gramático ensina que se deva dizer “anos sessentas”, flexionando-se o numeral cardinal. A ideia básica é a de que, se dizemos que há dois sessentas no número 6060, então devemos também dizer “anos sessentas”, já que a dezena se
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repete a cada ano: 1961, 1962, etc.. O argumento não é convincente, e a lição carece de respaldo documental, uma vez que não existe usuário culto da língua (escritor, filólogo, linguista) que pluralize o cardinal depois do nome.

O numeral cardinal tem basicamente duas funções semânticas e duas funções sintáticas, dependendo de sua posição em relação ao substantivo. Se vem antes do nome, o numeral cardinal participa da natureza do pronome indefinido, mas é quantificador determinado, e sua função semântica é de numerativo (na terminologia de Halliday e Hasan, no livro Cohesion in English, London: Longman, 1976, p. 40-41). Sintaticamente, é um adjunto adnominal. Nessa função, alguns numerais cardinais se flexionam, como um, dois e os terminados em –entos. Ex.: duas casas, duzentas obras. Mas, variando ou não, o numeral cardinal, na função semântica de numerativo e na função sintática de adjunto adnominal, é sempre um determinante do nome.

Quando vem posposto ao nome, porém, o numeral exerce função semanticamente classificatória e sintaticamente apositiva (aposto especificativo) e é invariável: prédio dois, casa um, apartamento cento e um, revólveres 38, calibre 45, anos sessenta.

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Em seu emprego isolado, isto é, como núcleo de um sintagma nominal, o numeral cardinal também funciona como um pronome indefinido, como um quantificador determinado. Cf.: “Pedro, José, Maria e Clara não voltaram ainda. Os quatro saíram cedo, todos com pressa.” Segundo Halliday e Hasan, p. 147 e ss. da obra citada, só existe elipse nominal quando o nome elidido é recuperável anaforicamente, e um termo periférico do nome elidido assume a função nuclear. Assim, o termo “os quatro” da frase acima, sujeito de “saíram”, não pressupõe a elipse de nenhum substantivo e equivale ao emprego de “todos”, sujeito da oração seguinte.

Quando se diz “prova dos noves”, “os oitos”, “os cincos”, o numeral passa a ser substantivo (derivação imprópria) e flexiona-se em número. Como substantivo, o numeral cardinal pode exercer uma função nuclear (de sujeito, de predicativo, de objeto direto,
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de objeto indireto, de complemento nominal) ou uma função periférica (de adjunto adnominal ou de aposto). Assim, por exemplo, temos: “Os quatros que ele desenhou parecem noves”, “Gostei dos oitos que ele desenhou” etc.

Em sua função classificatória, o numeral cardinal é invariável porque é um aposto especificativo, como em “professores adjuntos quatro”. Os termos que exercem a função de apostos especificativos pospostos ao fundamental, normalmente não se flexionam, como, por exemplo, sequestros relâmpago, desvios padrão, operários padrão, comícios monstro, vestidos laranja, tons pastel, elevadores Nacional, contas fantasma, cópias xerox, etc. Esses apostos às vezes se confundem com palavras compostas, como em: bananas-maçã, canetas-tinteiro, mangas-rosa, salários-família, em que o segundo elemento não varia por restringir a significação do primeiro ou por indicar-lhe destinação ou fim (como em navios-escola). Se o segundo elemento não restringe a significação do primeiro, ambos geralmente variam, como em: cartas-bilhetes, cirurgiões-dentistas, decretos-leis, etc. No caso do numeral, se ele exerce função classificatória (de aposto especificativo), só o fundamental varia: revólveres trinta-e-oito ( e não “trintas-e-oitos”), anos sessenta (e não “anos sessentas”). Se o aposto especificativo não for um numeral cardinal, ele pode confundir-se com um adjunto adnominal e flexionar-se, como em Casas Pernambucanas (Cf.: Casas Aurora, Livrarias Santana, Lojas Pet, Óticas Visual, etc.). Atente-se para o fato de que em nenhuma língua neolatina o numeral cardinal posposto ao nome se flexiona. Cf. “les années soixante”,
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“los años sesenta”, etc. Não há, pois, nenhuma razão para pleitear que o numeral posposto ao nome se flexione em português. Em italiano, o século pode ser designado pela centena que o caracteriza, como, por exemplo, “l'ottocento”, que indica o séc. XIX.

Equivocam-se, portanto, os que pleiteiam a flexão do numeral cardinal posposto ao nome. A única exceção se dá com o nome “página” (ou “folha”). Com “página”, no singular, o cardinal posposto fica sempre invariável; com “páginas”, no plural, o cardinal posposto pode flexionar-se em gênero: “à página dois”, “a páginas duas” (Cf. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. p. 207.) Essa concordância excepcional do cardinal posposto ao nome origina-se talvez da analogia com a expressão “a folhas tantas”, “a páginas tantas”.

A função classificatória também é exercida pelo pronome possessivo. Quando digo “meu livro”, estou dizendo que possuo o livro. Mas, quando digo “meu avião sai às 10h”, ou “minha poltrona no cinema é par”, não estou indicando posse, mas classificando.
José Augusto Carvalho, mestre em linguística pela Unicamp e doutor em letras pela USP, é autor da Gramática superior da língua portuguesa (Brasília: Thesaurus, 2011) e De língua e linguística (São Paulo: Cajuína, 2022), entre outros livros sobre língua portuguesa.

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