Hefestos, constrangido, prende Prometeu; Poder vigia implacavelmente o trabalho; Violência apenas acompanha o desenrolar dos fatos, sem proferir palavras ou realizar qualquer ação; Prometeu, acorrentado, lamenta o seu destino trágico. Eis o que poderia ser uma síntese do Prólogo de Prometeu acorrentado, tragédia de Ésquilo.
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O mito de Prometeu tem em Ésquilo o que se pode chamar de texto canônico, servindo, portanto, de padrão para qualquer outro poeta que deseje emular o tragediógrafo. Conforme o concebido por Ésquilo, o mito era composto de uma trilogia – Prometeu acorrentado, Prometeu liberto, Prometeu porta-fogo – e de um drama satírico – Prometeu acendedor do fogo. Prometeu acorrentado foi o único texto que nos chegou.
Embora Ésquilo (século V a. C.) seja o autor canônico do mito de Prometeu, não podemos esquecer que três séculos antes dele, Hesíodo (século VIII a. C.) já havia se referido ao mito em dois de seus poemas mais conhecidos – Teogonia (versos 507-616) e Trabalhos e Dias (versos 42-89). A diferença está no fato de que, em Ésquilo, o mito é a essência, o cerne de um painel trágico, envolvendo, como vimos, 4 textos. Em Hesíodo, o mito, tratado episodicamente, expressa a hýbris
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Ésquilo, um inovador da tragédia, aumentou de um para dois os personagens em cena, chegando no referido Prólogo a colocar 4, sendo um deles silencioso como uma sombra. Dividido em duas partes, o Prólogo apresenta um diálogo inicial entre Poder e Hefestos (versos 1-87) e, em seguida, o lamento de Prometeu (versos 88-127), que se aproxima de um kommós (κομμός), um treno (θρῆνος), um canto de luto e de dor, expressando uma extrema emoção, com o personagem lamentando o quanto é infeliz e miserável. Por estar acorrentado a uma escarpa da Cítia, Prometeu não tem como golpear o próprio peito, como aconteceria comumente no desenrolar da ação em que ocorre o kommós. Conforme nos ensina Aristóteles (Poética, 1452b), esse canto pode ser efetuado pelo Coro, que é um personagem coletivo, ou pelos personagens em cena. No caso específico, o lamento de Prometeu abrange, de forma sintética, mas não menos com menos sofrimento, páthos (πάθος), as punições que ora sofre e aquelas que antevê, pelo fato de que, como diz a etimologia do seu nome, Prometeu tem ciência dos fatos antes de eles se efetuarem (πρό, antes; μαντάνω, ter ciência, ter conhecimento).
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Todo áspero é quem, novo, detém o poder.
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Ésquilo já não tem a preocupação didática que se encontra em Hesíodo. Ele constrói uma peça para representar o mito da civilização, revelando o momento exato entre a natureza e a cultura. Prometeu é um mito civilizador, tendo no fogo a materialização da cultura, que pode ser definida como tudo aquilo que foi modificado pelo homem, permitindo-lhe sair do estado de ser natural para o de ser social. O poder de criar, que é retirado do manuseio do fogo, põe na mão do homem a responsabilidade pelo seu destino. Prometeu, no entanto, revela que essa liberdade não é gratuita. E o preço exigido é sentir na pele que não existe poder ou estrutura hierárquica de poder que prescinda da violência e da opressão para se manter no topo. É aí que entra, nos 11 versos iniciais do Prólogo, a força da peça, condensando o seu sentido em poucos versos e revelando o modo insidioso, através do personagem homônimo, como o poder age.
Introduzo o fragmento inicial da peça, em nossa tradução, como elemento essencial para o comentário do Prólogo:
Poder (Κράτος)
Eis-nos no solo, chegamos à terra longínqua,
ao caminho Cítio, em direção a um deserto intransponível:
Hefestos, a ti é necessário te preocupares com as ordens
que o pai te enviou: sobre estes rochedos
de escarpamentos elevados, manter subjugado este celerado
em entraves de laços adamantinos, que não se podem romper,
pois tua flor, o fogo brilhante de utilidade a todas as artes,
tendo roubado, ofereceu aos mortais; certamente de tais qualidades
de erro com relação aos deuses, é preciso dar-lhe justiça,
de maneira que ele seja instruído a suportar o poder
absoluto de Zeus e cesse a atitude de amigo dos homens.
A Cítia longínqua, um deserto sem humanos, é onde Prometeu será aprisionado por Hefestos, a mando de Zeus, sob a vigilância de Poder, de fala e modos arrogantes, e de Violência, divindade silenciosa, mas atenta ao serviço. A prisão se fará com laços adamantinos, impossíveis de romper. Prometeu é punido pelo roubo do fogo brilhante, doando-o como presente aos mortais.
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Todo o seu discurso segue a linha da insídia, desdobrando-se em ordens, provocações, ironia e escárnio, chamando a atenção, por exemplo, para o fato de que Prometeu outorgou, aos mortais, honras além do que é justo (βροτοῖσι τιμὰς ὤπασας πέρα δίκης, verso 30). A ironia se concentra na punição por um ato de filantropia (φιλανθρώπου, versos 11 e 28) e amizade (φιλότητα, verso 123) aos mortais. Diante disso, sendo escarnecido por Poder, Prometeu não pode se esquivar da necessidade da punição. Lembremos que necessidade (ἀνάγκη) é
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Ressaltemos um dos momentos do diálogo estabelecido entre Poder e Hefestos (versos 12-87), em que se observa um recurso comum na tragédia, que se chama de esticomitia, uma espécie de diálogo rápido, verso a verso, entre dois personagens, expressando um acalorado confronto (versos 36-87), entre as duas divindades, Poder, que pressiona para a prisão de Prometeu ser bem realizada, com cadeias adamantinas, de que ele não possa escapar, e Hefestos, sempre constrangido, por ter sido instado a realizar um trabalho que, em outra circunstância, ele não ousaria fazer, não fosse a necessidade de obedecer a Zeus. Desse confronto surge uma precisa definição de poder, ora da boca de Hefestos, ora da boca do próprio Poder: sempre impiedoso e cheio de audácias (αἰει γε δὴ νηλὴς σὺ καὶ θράσους πλέως, verso 42); a língua soa semelhante à forma (ὁμοῖα μορφῆι γλῶσσά σου γηρύεται, verso 78); expressando arrogância e áspera cólera (αὐθαδίαν/ὀργῆς τε τραχυτῆτα, versos 79-80).
A fala final de Poder é o auge do sarcasmo com que essa divindade discricionária se dirige a Prometeu, ironizando a etimologia do seu nome:
Com falso nome, as divindades Prometeu
te chamam: pois a ti mesmo é preciso previsão
por qual maneira serás libertado deste engenho.
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