Hefestos, constrangido, prende Prometeu; Poder vigia implacavelmente o trabalho; Violência apenas acompanha o desenrolar dos fatos, sem...

A Insídia do Poder

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Hefestos, constrangido, prende Prometeu; Poder vigia implacavelmente o trabalho; Violência apenas acompanha o desenrolar dos fatos, sem proferir palavras ou realizar qualquer ação; Prometeu, acorrentado, lamenta o seu destino trágico. Eis o que poderia ser uma síntese do Prólogo de Prometeu acorrentado, tragédia de Ésquilo.

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Estendendo-se ao longo de 127 versos, o Prólogo nos mostra três personagens atuando em cena – Poder, Hefestos e Prometeu – e uma personagem simbólica, Violência, apenas referida, que não atua, mas observa, em silêncio, o desenrolar da ação, nesse instante inicial da peça. Poder e Violência são divindades do séquito de Zeus, filhos de Estiges, que sempre residem com Zeus (Teogonia, 383-401).

O mito de Prometeu tem em Ésquilo o que se pode chamar de texto canônico, servindo, portanto, de padrão para qualquer outro poeta que deseje emular o tragediógrafo. Conforme o concebido por Ésquilo, o mito era composto de uma trilogia – Prometeu acorrentado, Prometeu liberto, Prometeu porta-fogo – e de um drama satírico – Prometeu acendedor do fogo. Prometeu acorrentado foi o único texto que nos chegou.

Embora Ésquilo (século V a. C.) seja o autor canônico do mito de Prometeu, não podemos esquecer que três séculos antes dele, Hesíodo (século VIII a. C.) já havia se referido ao mito em dois de seus poemas mais conhecidos – Teogonia (versos 507-616) e Trabalhos e Dias (versos 42-89). A diferença está no fato de que, em Ésquilo, o mito é a essência, o cerne de um painel trágico, envolvendo, como vimos, 4 textos. Em Hesíodo, o mito, tratado episodicamente, expressa a hýbris
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ou descomedimento de Prometeu, com relação ao ludíbrio a que ele submete Zeus, tendo como consequência uma punição para si e para os homens, que deixarão a Idade de Ouro rumo à degradação da Idade de Ferro, segundo o mito das raças humanas, em Trabalhos e Dias (versos 106-201).

Ésquilo, um inovador da tragédia, aumentou de um para dois os personagens em cena, chegando no referido Prólogo a colocar 4, sendo um deles silencioso como uma sombra. Dividido em duas partes, o Prólogo apresenta um diálogo inicial entre Poder e Hefestos (versos 1-87) e, em seguida, o lamento de Prometeu (versos 88-127), que se aproxima de um kommós (κομμός), um treno (θρῆνος), um canto de luto e de dor, expressando uma extrema emoção, com o personagem lamentando o quanto é infeliz e miserável. Por estar acorrentado a uma escarpa da Cítia, Prometeu não tem como golpear o próprio peito, como aconteceria comumente no desenrolar da ação em que ocorre o kommós. Conforme nos ensina Aristóteles (Poética, 1452b), esse canto pode ser efetuado pelo Coro, que é um personagem coletivo, ou pelos personagens em cena. No caso específico, o lamento de Prometeu abrange, de forma sintética, mas não menos com menos sofrimento, páthos (πάθος), as punições que ora sofre e aquelas que antevê, pelo fato de que, como diz a etimologia do seu nome, Prometeu tem ciência dos fatos antes de eles se efetuarem (πρό, antes; μαντάνω, ter ciência, ter conhecimento).

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Como é normal acontecer, a peça inicia no meio dos acontecimentos (in medias res), num momento imediatamente posterior às duas lutas travadas por Zeus, na Teogonia – a Titanomaquia (versos 617-721) e a Tifeumaquia (versos 820-880) –, cruciais para que ele, tendo libertado os irmãos do jugo do pai, Cronos, seja aclamado por eles como o libertador. Sendo o mais jovem dos filhos de Cronos, Zeus se torna o mais velho; sendo irmão, torna-se o pai, razões suficientes para ser exaltado com o epíteto de Pai dos homens e dos deuses (Ζεὺς πατὴρ ἀνδρῶν τε θεῶν τε, verso 643), o que define o seu poder de divindade maior, organizador do Universo e a sua condição de deus cósmico – toda teogonia se torna uma cosmogonia – apesar de concentrar grande poder para si, após a sua vitória na Titanomaquia. É o que se depreende da fala de Hefestos a Poder (ἅπας δὲ τραχὺς ὅστις ἂν νέον κρατῆει, verso 35):

Todo áspero é quem, novo, detém o poder.
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No âmbito da Teogonia, o mito de Prometeu precede a luta pelo poder, titanomaquia, deixando subentendida a sua ajuda a Zeus, na luta contra os titãs, sendo o principal Cronos, pai de Zeus, e os demais tios. Um deles, Jápeto, é o pai de Prometeu. Como a Teogonia trata da origem dos deuses, a punição aos homens e os males que eles sofrerão, em consequência da falta de discernimento (σωφροσύνη) de Epimeteu, diante de Pandora e de seu vaso (não, não é uma caixa!), é incidental. Em Trabalhos e Dias, como poema que trata dos homens, o mito de Prometeu e Pandora introduz o mito das raças humanas, com o intuito de estabelecer a diferença entre o descomedimento em relação aos deuses e o descomedimento do homem em relação ao seu semelhante,
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gerando a injustiça e a degradação. Ambos os poemas são didáticos na sua especificidade: a genealogia dos deuses (Teogonia) e a corrupção dos valores, com a injustiça resultando na mais terrível degradação, a ponto de as divindades Pudor e Nêmesis deixarem a Terra e retornarem ao Olimpo (Trabalho e Dias).

Ésquilo já não tem a preocupação didática que se encontra em Hesíodo. Ele constrói uma peça para representar o mito da civilização, revelando o momento exato entre a natureza e a cultura. Prometeu é um mito civilizador, tendo no fogo a materialização da cultura, que pode ser definida como tudo aquilo que foi modificado pelo homem, permitindo-lhe sair do estado de ser natural para o de ser social. O poder de criar, que é retirado do manuseio do fogo, põe na mão do homem a responsabilidade pelo seu destino. Prometeu, no entanto, revela que essa liberdade não é gratuita. E o preço exigido é sentir na pele que não existe poder ou estrutura hierárquica de poder que prescinda da violência e da opressão para se manter no topo. É aí que entra, nos 11 versos iniciais do Prólogo, a força da peça, condensando o seu sentido em poucos versos e revelando o modo insidioso, através do personagem homônimo, como o poder age.

Introduzo o fragmento inicial da peça, em nossa tradução, como elemento essencial para o comentário do Prólogo:

Poder (Κράτος) Eis-nos no solo, chegamos à terra longínqua, ao caminho Cítio, em direção a um deserto intransponível: Hefestos, a ti é necessário te preocupares com as ordens que o pai te enviou: sobre estes rochedos de escarpamentos elevados, manter subjugado este celerado em entraves de laços adamantinos, que não se podem romper, pois tua flor, o fogo brilhante de utilidade a todas as artes, tendo roubado, ofereceu aos mortais; certamente de tais qualidades de erro com relação aos deuses, é preciso dar-lhe justiça, de maneira que ele seja instruído a suportar o poder absoluto de Zeus e cesse a atitude de amigo dos homens.

A Cítia longínqua, um deserto sem humanos, é onde Prometeu será aprisionado por Hefestos, a mando de Zeus, sob a vigilância de Poder, de fala e modos arrogantes, e de Violência, divindade silenciosa, mas atenta ao serviço. A prisão se fará com laços adamantinos, impossíveis de romper. Prometeu é punido pelo roubo do fogo brilhante, doando-o como presente aos mortais.

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Poder mostra-se insidioso ao fomentar no seio de um Hefestos constrangido, a semente da disputa, que poderia levar o deus faber a realizar seu trabalho sem constrangimento: Prometeu não só roubou o fogo, roubou a flor (ἄνθος) de Hefestos, o fogo útil a todas as artes (παντέχνου πυρὸς σέλας, verso 7), com o qual tudo ele pode construir, nas suas forjas. Ao fomentar a discórdia, Poder justifica a ação violenta de uma prisão excessiva.

Todo o seu discurso segue a linha da insídia, desdobrando-se em ordens, provocações, ironia e escárnio, chamando a atenção, por exemplo, para o fato de que Prometeu outorgou, aos mortais, honras além do que é justo (βροτοῖσι τιμὰς ὤπασας πέρα δίκης, verso 30). A ironia se concentra na punição por um ato de filantropia (φιλανθρώπου, versos 11 e 28) e amizade (φιλότητα, verso 123) aos mortais. Diante disso, sendo escarnecido por Poder, Prometeu não pode se esquivar da necessidade da punição. Lembremos que necessidade (ἀνάγκη) é
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termo de peso na cultura grega e ainda mais na tragédia, por expressar o sofrimento imprescindível à fabulação. É desse modo que a palavra aparece três vezes, no Prólogo (versos 16, 72 e 105). Como diz Prometeu, “a força da necessidade é inelutável” (τὸ τῆς ἀνάγκης ἔστ’ ἀδήριτον σθένος, verso 105).

Ressaltemos um dos momentos do diálogo estabelecido entre Poder e Hefestos (versos 12-87), em que se observa um recurso comum na tragédia, que se chama de esticomitia, uma espécie de diálogo rápido, verso a verso, entre dois personagens, expressando um acalorado confronto (versos 36-87), entre as duas divindades, Poder, que pressiona para a prisão de Prometeu ser bem realizada, com cadeias adamantinas, de que ele não possa escapar, e Hefestos, sempre constrangido, por ter sido instado a realizar um trabalho que, em outra circunstância, ele não ousaria fazer, não fosse a necessidade de obedecer a Zeus. Desse confronto surge uma precisa definição de poder, ora da boca de Hefestos, ora da boca do próprio Poder: sempre impiedoso e cheio de audácias (αἰει γε δὴ νηλὴς σὺ καὶ θράσους πλέως, verso 42); a língua soa semelhante à forma (ὁμοῖα μορφῆι γλῶσσά σου γηρύεται, verso 78); expressando arrogância e áspera cólera (αὐθαδίαν/ὀργῆς τε τραχυτῆτα, versos 79-80).

A fala final de Poder é o auge do sarcasmo com que essa divindade discricionária se dirige a Prometeu, ironizando a etimologia do seu nome:

Com falso nome, as divindades Prometeu te chamam: pois a ti mesmo é preciso previsão por qual maneira serás libertado deste engenho.
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As lições de Ésquilo são perenes. A peça retoma alegoricamente o mito para tratar de situações ambíguas que a democracia vivia na pólis. Mas ela não se restringe ao mundo grego de sua criação e representação. Transcendendo o tempo e o espaço, Prometeu acorrentado nos revela que não importa o tempo, não importa o lugar, o poder auxiliado pela violência só se exerce com punições excessivas, provenientes de leis monocráticas, que lhe garantam fixar-se no topo da hierarquia. A lição jamais deixará de ser atual.

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  1. Lições eternas os gregos nos deixaram. O poder nas mãos de jovens é sempre áspero. E nas de alguns velhos também. Sempre aprendendo, Milton. Obrigado. Francisco Gil Messias.

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  2. Obrigado, Gil, pela leitura e pelo comentário. O poder é inebriante, para velhos e novos.

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