Não apenas me disseram onde eu encontraria aquele infeliz, mas, ainda, que mesa de bar ocupava. Éramos jovens quando, felicíssimo, com ...

Uma bela troca

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Não apenas me disseram onde eu encontraria aquele infeliz, mas, ainda, que mesa de bar ocupava. Éramos jovens quando, felicíssimo, com um riso de orelha a orelha, ele me fez conhecer a posterior razão do seu padecimento: uma morena bonita com olhos de onça. Ninguém, antes nem depois dela, causou-me tão má impressão no ato das apresentações.

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Antonio, o garçom, assim que me viu, apontou-me com o queixo o canto mais escuro do recinto. Não poderia fazê-lo com as mãos ocupadas na entrega de garrafas, copos e caldos a um grupo de fregueses. A música na Jukebox não deixava dúvida quanto à encomenda. Falo daquela maquininha de consensos movida a fichas para tocar discos quantas vezes quisessem os pagantes. Tudo automatizado e disposto à visão do usuário pela fachada transparente, iluminada e colorida. Bastava inserir a ficha e escolher a canção identificada por título e número para que um braço mecânico retirasse o disco da prateleira e o depositasse no prato giratório. Outro braço, munido de agulha, ali pousava como uma pluma, suavemente, nas ranhuras de vinil.

Máquina de consensos, sim, porque nunca vi uma briga decorrente do volume, ou de escolhas e repetições daqueles discos, uns bolachões com doze canções, seis de cada lado. Aquilo tinha um nome: “LP”, sigla em inglês para “Long Play”. Riam, crianças. Doze músicas num mesmo prato já foi coisa de longa duração. Respeitem, contudo, a dor dos analógicos.


Ali entrei quando o mineiro Altemar Dutra cantava aos quatro ventos os versos do cearense Evaldo Gouveia: “Sentimental eu sou, eu sou demais. Eu sei que sou assim porque assim ela me faz”. Não sei quantas vezes aquela plateia à beira da embriaguez havia escutado aquilo, pacientemente.


É de Millôr Fernandes de quem sempre me lembro quando ponho minhas vistas e meus temores em textos e imagens das guerras modernas, estas que, agorinha mesmo, põem a humanidade em risco sério de extermínio. Millôr, na fase áurea da boemia, disse algo assim: “Nunca vi uma guerra provocada por um bando de bêbados”. As guerras, de fato, são coisas dos homens de bem, dos que pregam em palanques e tribunas a decência, a correção, a justiça.

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Pois bem, deitado o infeliz não estava no recanto que o garçom me indicou. Mas ali jazia semimorto, com os olhos cerrados, o tronco dobrado e a cabeça sobre a mesa. A seu lado, havia um copo cheio, outro limpo e uma garrafa com uísque já consumido pela metade. Antonio trouxe-me apenas o gelo, de vez que eu já dispunha dos restos de um Cavalo Branco e do copo não usado por aquela em vão esperada.

Servi-me, cutuquei-o três vezes sem que ele reagisse. Em seguida, bati com força no tampo da mesa a ponto de chamar a atenção de um casal vizinho. Ele abriu os olhos e, tomado pela surpresa, ergueu-se para um abraço caloroso, sincero, precisado.

“Ninguém, a não ser você, conseguirá trazer meu menino para casa. Faça isso”, suplicara por minha ajuda, momentos antes, Dona Marta, tão logo eu punha os pés no seu alpendre. Aquela mãe sofrida apelava, então, para a amizade que estreitamos eu e seu filho. Ela não tinha dúvida de que o primogênito fora vítima de catimbó, de feitiçaria braba. Garantiu: “A condenada coou o café dele na calcinha”.

Aperreio de mãe não merece desfeita, de modo que engoli o riso. Mas, segui dali até o bar do meu garçom preferido com João Bosco e Aldir Blanc na cabeça. Digo melhor: com o samba que ambos compuseram na melhor fase de suas parcerias. É música que fala de desavenças, de contrapontos, de arengas ferrenhas ao longo da vida em comum. “Ela coou café na calça pra me segurar”, queixou-se o personagem de Aldir e João na hora do pedido judicial do divórcio. Esse coitado vivia no inferno. A companheira mudava de estação na hora do jogo do Flamengo, deixava salgar o feijão requerido e mandava o cobrador esperar na sala pelo pagamento da dívida do casal. Um pulinho no bar resultava em dez noites de jejum, as cuecas tinham a reza do bruxo e – a gota que entornou o copo – a danada ganhou dinheiro no Jogo do Bicho depois de sonhar com ele e apostar no burro.

Acontece que o cotidiano e os problemas disso decorrentes não afastaram meu amigo daquela por quem sofria nem das namoradas antes tidas. Coração mole, fidelíssimo, extremamente pegajoso, ele se apaixonava à toa. As meninas começavam a dele fugir, rapidamente, antes de maiores convivências.
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“Quem aguenta flores e cartões toda semana?”, perguntara-me a penúltima, ao me contar da separação ocorrida sem grandes traumas.

Mas a moça dos olhos de onça o despedaçou. Afastava-se quando lhe dava na telha e o chamava de volta nas precisões de um cartão bancário cuja senha possuía. Ele apenas percebeu o tamanho da encrenca em que se metera quando a vendedora da loja perguntou-lhe se havia gostado da camisa e da calça compradas com pagamento em parcelas pela portadora ocasional do tal cartão. “Aquele conjunto é a sua cara”, comentou a lojista. Era a cara de Fernando, nome fictício como os demais, por razões óbvias, que agora dou a um amigo em comum.

O coração mole adoeceu. Isolou-se por uns dias e, depois disso, passou a beber sem medo do volume nem da ressaca. Naquela tarde, ao cabo de duas doses, eu o convidei para um barzinho novo, recém-instalado nas redondezas. Desviei o caminho e o pus na cama. Entreguei-o aos bons cuidados de Dona Marta.

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Foi no Recife que ele teve nos braços a namorada seguinte, menina prendada, de bons costumes e dona de um coração tão bobo quanto o dele. “Nascidos um para o outro”, contou-me Creuza (nome verdadeiro), antes que eu conhecesse a boa moça. Passado algum tempo, meu amigo, outra vez envolvidíssimo, aceitou o evangelho por insistência da amada. E, sem o menor constrangimento, largou os companheiros de bar, eu entre estes. Mas, pensando bem, acho que fez uma boa troca.

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  1. Saboroso texto, Frutuoso. Tão brasileiro e tão universal. Essa de coar o café na calcinha é ótima. Realmente, é feitiço para acabar com o sujeito. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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