Algumas singularidades interlaçam a vida e a obra de Shakespeare e Cervantes, num mesmo tecido de genialidade. Apesar das biografias tão distintas, William e Miguel estabeleceram um marco importante para a constituição do pensamento ocidental, a partir de seus trabalhos. Um pela via da dramaturgia e outro, pelo romance. E impressiona como matizes tão diversos compuseram um mesmo corolário revolto de ideias e pensamentos capazes de influenciar tantos séculos depois.
▪ Wikimedia
O crítico americano Harold Bloom, uma das poucas unanimidades na área da crítica literária, não teve muitas dificuldades para convencer grande parte da inteligência ocidental de que Shakespeare representa a “invenção do humano”, especialmente a partir de personagens como Hamlet, uma das mais destacadas criações da literatura.
Cervantes foi prospectar no mais abissal da alma humana a residência oficial do sonho, tanto quanto Freud descortinaria os segredos mais íntimos do humano, praticamente três séculos depois.
Outra das singularidades é a História oficial registrar 23 de abril como a data da morte dos dois. O que, de fato, não corresponde à verdade. Foi e não foi. A Inglaterra de 1616 ainda seguia o calendário juliano. Como se sabe, em 1582, o Papa Gregório XIII suprimiu os dias 5 a 14 de outubro para adequar os meses às estações do ano. Desta forma, o 23 de abril inglês correspondia ao 3 de maio do calendário gregoriano.
Shakespeare teria na realidade morrido em 3 de maio, fazendo ajuste para o calendário gregoriano. Ou seja, dez dias após a morte de Cervantes. Além do mais, é importante destacar que os biógrafos do espanhol também divergem em relação à data real de seu falecimento, se 23 ou 22 de abril. De qualquer forma, por alguma razão, ficou consagrada, ao longo do tempo, a data comum de 23 de abril.
Miguel de Cervantes Saavedra nasceu em Alcalá de Henares, nas proximidades de Madri, em 29 de setembro de 1547, 17 anos antes de William.
Cervantes tentou a vida como soldado e essa ousadia custou caro, pois terminou ferido na mão esquerda, durante a Batalha de Lepanto, cicatriz que carregou pelo resto da vida. Depois, foi levado para Argel como prisioneiro de guerra, onde permaneceu cinco anos até ser resgatado pela mãe. Depois, trabalhou como funcionário do reino e acabou preso, sob a denúncia de malversação, mas livrou-se da acusação.
Também tentou a vida como dramaturgo, disputando plateias com nada menos do que Lope de Vega, ídolo dos espanhois nas representações teatrais nos famosos currais, que era onde se encenavam as peças da época, especialmente pequenas comédias. Miguel escreveu várias peças, conseguiu a encenação de algumas, mas não teve muita sorte, até publicar Dom Quixote.
O talento de Shakespeare é incontestável. Está no panteão dos gênios. Mas, é evidente que ele dependeu das graças da nobreza para consolidar seu trabalho.
Não há consenso se William e Miguel chegaram a se conhecer. Ou se um conheceu a obra do outro. Mas, há lendas envolvendo esses gigantes das letras. Há biógrafos que advogam um encontro em Valladolid, quando teriam se encontrado, durante a assinatura do tratado de paz entre Inglaterra e Espanha. E também teriam disputado uma mesma mulher. Mas, não há registros confiáveis desse suposto encontro. É mais provável que tenha ficado no mundo do sonho.
Histórias assim, inclusive, ganharam a imaginação das pessoas, a partir de uma obra que, aparentemente, seria uma parceria entre eles. Uma das peças atribuídas a Shakespeare e John Fletcher (que gostava de literatura espanhola), “A história de Cardênio”, tem como protagonista um personagem constante da rica galeria de personagens de Dom Quixote. Cardênio narra para Quixote a sua desventura amorosa após a traição de sua mulher com um nobre. Mas, Shakespeare não cita Quixote na peça.
Mas, William e Miguel, embora utilizem linguagem diversa, foram buscar inspiração em contos populares, fábulas e mitos de seu tempo. Várias peças de Shakespeare tiveram como tropo material de domínio público, que tornou imortal pela genialidade como tratou a substância do imaginário popular, conferindo uma característica singular de atemporalidade, porque utilizou valores universais como amarradura do texto.
Igualmente, é inegável a influência dos contos populares, fábulas e mitos na literatura de Cervantes. Afora as próprias personagens, é impossível não identificar na sua obra o tropo dessa ascendência em seus textos. Alguns dos causos narrados em Dom Quixote tinham essa matriz, novelas curtas, com forte elemento moral, mas fundadas em histórias de sua época. E Cervantes confere imortalidade a esse material difuso graças à sua genialidade.
Outra singularidade, dentre tantas a se destacar: Cervantes teve uma história com a vida militar, como se sabe, mas sua obra não tem a guerra como mote e linha espinhal. Shakespeare, que, em sua biografia, pouco se registra de contato com o militarismo, aparentemente teve mais preocupações com essa temática, muito presente em obras como Macbeth e Rei Lear, para citar apenas dois de seus trabalhos mais importantes.
Lear e CordéliaW. Peters, S.XIX
Sancho Pança e Dom QuixoteA. Decamps, S.XIX
Porque o sonho talvez seja a maior motivação do humano. E sem o sonho não haveria Skakespeare e Cervantes. E sem Skakespeare e Cervantes não haveria o humano tal qual hoje conhecemos.