Ao anunciar que ministraria um curso sobre o romance Os miseráveis, de Victor Hugo (iniciei-o, desde o dia 16 de agosto passado), com aulas aos sábados, no horário das 09h às 12h, no auditório Celso Furtado da Academia Paraibana de Letras, muitas pessoas demonstraram interesse em fazer a inscrição. Algumas outras perguntaram se o curso não teria uma opção on-line. Respondi que a filmagem e a transmissão do curso, para um dos canais da web, exigiriam recursos de que a nossa Academia não dispõe.
Há, no entanto, uma razão maior que a falta de recurso; razão que se impõe. Sou professor dos tempos antigos, em que a ministração de cursos exigia a minha presença na sala de aula, diante de meus alunos, aquilo que se chama hoje de “aulas presenciais”, termo que se cunhou e se popularizou após o advento da tecnologia da informática. O contato com as pessoas, em ambiente real, me fascina. Aulas on-line, o meu calo durante a famigerada pandemia, não estão na minha lista das cem mil melhores coisas da vida.
As aulas virtuais sempre me pareceram, e ainda me parecem, muito assépticas, muito limpinhas (em alguns casos, muito caóticas...), com muitos recursos de imagem que estimulam, de modo demasiado, a visão, em detrimento da reflexão. Por serem um tanto lineares, as aulas on-line agem, a meu ver, como uma poda na criatividade do binômio ensino-aprendizagem. Elas não se encaixam na magia da sala de aula, onde os debates acontecem, onde os lampejos surgem e o professor passa a pensar em algo que não havia pensado, enquanto preparava a sua aula, na solidão de seus estudos.
Fonte: NL/Nor
A aula presencial é tudo, menos linear, por mais que o professor a tenha preparado, tenha feito esquemas didáticos, tenha cronometrado o tempo de que deveria dispor. Em lugar da linearidade absoluta, a aula presencial pode ser definida como alguns momentos de linearidade, que sustentam o fio do pensamento, recebendo a intercessão constante de fluxos de consciência alimentados por vários fatores, que vão do interesse dos que ali se encontram, com perguntas, dúvidas, contribuições ao tema, mas, sobretudo, por aquilo que o professor consegue captar
Cornell Univ.
a partir do olhar dos seus alunos ou estudantes, conduzindo-o, quase sempre, a novas reflexões sobre o tema, aprimorando a sua compreensão. Em um ápice, muitas vezes, o esquema pronto sofre desvios que o renovam. Esta espécie de faísca, de centelha mágica, só me parece possível com a energia que percorre a sala de aula, sendo impossível de se reproduzir em uma aula on-line. Quem é professor sabe exatamente do que falo.
O romance Os miseráveis é, sem dúvida, o maior libelo contra a injustiça, espicaçando, a cada momento, a emoção do leitor, procurando retirá-lo da letargia em que vive. Traduzir isto virtualmente não vejo como interessante ou como provocador, nos diversos sentidos que a palavra provocação possa ter.
Ler Victor Hugo é estar diante de uma epopeia. E quando digo “diante”, não devemos imaginar a inexistência de um narrador como mediador, mas nos deixar levar pelo drama que se desenrola das cenas que tomam forma sob os nossos olhos... e ouvidos. Victor Hugo é aristotélico, o Aristóteles da Arte poética, sobretudo, que entende a tragédia ser gênero superior à epopeia, por causar um impacto direto no espectador. Posso afirmar, com a maior das convicções, que não há leitores de Victor Hugo. É mais do que isto. Há espectadores que se sentem inflamados com a centelha de sua narrativa, de sua linguagem culta, enfática, reiterativa, em direção a uma gradação de sentidos e da ratificação do despertar das emoções. Assim é que encontramos, recorrentemente, construções como as demonstradas abaixo, no diálogo entre o bispo Monsenhor Bienvenu e G., o revolucionário convencional (Os miseráveis, Parte I, Livro 1, Capítulo 11, p. 38):
Henry Krauss (Monseigneur Myriel/Bienvenu), em "Os Miseráveis", 1934, Dir. Raymond BernardYT
Ou com relação a Jean Valjean, no momento em que acorda para roubar o bispo, que lhe deu o acolhimento negado por todos os habitantes de Digne. Trata-se do capítulo “O homem despertado”, título dúbio, por mostrar uma primeira hesitação no personagem, que, após acordar, se dispõe a cometer uma injustiça e uma ingratidão contra quem o acolheu fraternalmente (I, 2, 10, p. 80):
“Au milieu de cette méditation hideuse, les idées que nous venons d’indiquer remuaient sans relâche son cerveau, entraient, sortaient, rentraient, faisaient sur lui une sorte de pesée.”
“No meio dessa meditação ignóbil, as ideias que acabamos de mostrar remoíam, sem descanso, seu cérebro, entravam, saíam, entravam novamente, realizavam sobre ele uma espécie de pressão.”
Harry Baur (Jean Valjean), em "Os Miseráveis", 1934, Dir. Raymond BernardYT
Considero, portanto, uma diminuição do impacto estético da sua narrativa, a transformação de Os miseráveis em aulas on-line. Victor Hugo não é para a tela de um computador ou de um celular. Não é para pixels. Hugo é para células, nervos, músculos, sangue; Hugo é para gente, para pessoas, que sucumbirão ao páthos e à estesia de suas frases, de seus aforismos, de sua erudição, de sua linguagem escoimada, de sua emoção incontida de homem político, de combatente aguerrido contra a injustiça, sem, contudo, transbordar para a emoção barata, para o pieguismo. Hugo é a firmeza da convicção, somada à riqueza da expressão linguística, em núpcias mais do que apropriadas.
A ausência de um público vivo gera grande prejuízo, por faltar ao professor o éblouissement, esse maravilhamento comparável ao do Monsenhor Bienvenu diante de Deus (I, 1, 13, p. 46); é Jean Valjean sem a luz
Gaby Triquet (Cosette), em "Os Miseráveis", 1934, Dir. Raymond BernardYT
que lhe incendeia a consciência, cuja chama é originada do perdão que o bispo Bienvenu lhe concedeu (I, 2, 13, p. 91-92); é, enfim, a pequena Cosette, de pés nus, as roupas em farrapos, obrigada a ir buscar água, na escuridão da noite de inverno, sem o maravilhamento diante da bela boneca, por ela chamada La Dame, em exposição em uma barraca natalina, e que ela crê, pelas roupas e pela beleza dos cabelos, ser mais feliz do que ela (II, 3, 4, p. 305).
Chama que só poderia ser acesa pela grandeza de Victor Hugo. De escritor das fileiras de Lamartine, passa a líder incontestável do Romantismo francês; de jovem ousado, apostando escrever um romance em um mês (Bug-Jargal), ao escritor amadurecido, autor de obras monumentais como Os miseráveis, A legenda dos séculos e Noventa e três; de deputado constituinte, eleito para a Assembleia Nacional, em 1848, a último bastião da liberdade francesa – as liberdades individuais e a liberdade de expressão –, opondo-se, desde cedo, às arbitrariedades e à opressão de Napoleão III, Napoléon, le petit, como ele o chamava, com uma voz potente ecoando no exílio e do exílio, por quase 20 anos (Frank Laurent, “Préface”, in: HUGO, Victor Écrits politiques. Paris: Le Livre de Poche, 2001, p. 26):
“Victor Hugo en face de Napoléon III, c’est la République en face de l’Empire.”
(Victor Hugo confrontando Napoleão III, é a República confrontando o Império.)
Victor Hugo (1802—1885), romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista e estadista francês
Vejo os recursos on-line como meio, como uma opção a mais, não como uma finalidade em si mesma. No entanto, enquanto puder resistir, lançarei mão de todas as oportunidades para o tradicional e prazeroso contato com as pessoas, sobretudo, quando se trata do ensino, da transmissão e aquisição de conhecimento, belo processo de mão dupla, que no dizer de Enjolras, o mais aguerrido dos revolucionários da Sociedade dos Amigos do ABC, é a luz, luz de que tudo se origina e para onde tudo retorna (“Lumière! Lumière! tout vient de la lumière et tout y retourne”, V, 1, 5, p. 941).