O engenheiro André Rebouças foi uma das figuras mais destacadas da vida brasileira na segunda metade do século 19. Para Joaquim Nabuco,...

O primeiro engenheiro negro do Brasil e a Paraíba

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O engenheiro André Rebouças foi uma das figuras mais destacadas da vida brasileira na segunda metade do século 19. Para Joaquim Nabuco, “Rebouças foi talvez dos homens nascidos no Brasil o único universal pelo espírito e pelo coração... Pelo espírito teremos tido alguns, pelo coração outros; mas somente ele foi capaz de refletir em si ao mesmo tempo a universalidade dos conhecimentos, e a dos sentimentos humanos”. Uma das principais facetas da vida de André Rebouças foi a sua decisiva participação no movimento abolicionista que culminou com a extinção do trabalho servil no Brasil. A contribuição de Rebouças no esforço para a extinção da escravidão no país
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foi ressaltada por Joaquim Nabuco, um dos principais líderes abolicionistas:

“Rebouças encarnou, como nenhum outro de nós, o espírito antiescravagista [...] Ele não tinha, para o público, nem a palavra, nem o estilo, nem a ação; dir-se-ia assim que em um movimento dirigido por oradores, jornalistas, agitadores populares, não lhe podia caber papel algum saliente, no entanto ele teve o mais belo de todos, e calculado por medidas estritamente interiores, psicológicas, o maior, o papel primário, ainda que oculto, do motor, da inspiração que se repartia por todos... não se o via quase, de fora, mas cada um dos que eram vistos estava olhando para ele, sentia-o consigo, em si, regulava-se pelo seu gesto invisível à multidão.”

André Pinto Rebouças nasceu, em 1838, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, em uma família que, segundo a historiadora Hebe Mattos, se autoidentificava como “de cor”, conforme o uso da época. Sua mãe era uma escrava alforriada e o seu pai, Antônio Rebouças, que era filho de um alfaiate português com uma escrava também forra, era um respeitado advogado autodidata que conseguira ascensão social pelo estudo e que viria a se tornar Conselheiro do Imperador Pedro II. Em 1846, o pai de André Rebouças foi eleito deputado pela Bahia e a família se mudou para o Rio de Janeiro, onde, aos 16 anos de idade, André ingressou na Faculdade de Engenharia. Ao que se sabe, André Rebouças foi o primeiro engenheiro negro formado no Brasil. Após concluir o curso, ingressou na Escola Militar e, depois, juntamente com o seu irmão Antônio (também engenheiro), foi enviado pelo pai à Europa para se especializar nas técnicas mais modernas da engenharia da época.

André Rebouças, esporadicamente, tem o seu nome vinculado à Paraíba por ter sido, em 1871, um dos beneficiários, juntamente com os paraibanos Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque – o Visconde de Cavalcanti — e Anizio Salathiel Carneiro da Cunha (irmão do Barão de Abiaí), com a concessão para a exploração do
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Esboço do Caminho de Ferro Conde d'Eu, na província da Parahyba do Norte
“caminho de ferro Conde d'Eu”, a primeira ferrovia instalada na Província da Paraíba. Em 1864, quase duas décadas antes dos primeiros trens trafegarem no “caminho de ferro Conde d'Eu”, André Rebouças foi encarregado pelo Governo Imperial de analisar obras nas então chamadas Províncias do Norte e foi nesta ocasião que ele esteve, pela primeira e única vez, na Paraíba. Rebouças permaneceu entre os paraibanos por cerca de dois meses e a sua presença era aguardada para analisar várias obras na Província, entre elas a construção de uma nova ponte sobre o rio Sanhauá, conforme se constata de relatório encaminhado à Assembleia, no início de outubro daquele ano, pelo Presidente da Província Sinval Odorico de Moura:

“não tenho por agora, tomado as providencias, que trago em mente, para a consecução de uma bôa ponte naquele lugar, porque aguardo a passagem do engenheiro, Tenente André Pinto Rebouças, que, por ordem do Governo Geral, tem de examinar o estado actual da antiga ponte, o que délla se pode aproveitar e quaes os malles por ela ocasionados ao rio, que intercepta. Esse engenheiro deve estar na Província por estes poucos dias, e creio que dentro em pouco poderei, como pretendo, contractar uma ponte de ferro, com todos os melhoramentos e bôas condições para o publico e para os cofres provinciais.”
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Mapa da província da Parahyba do Norte, no século XIX. ▪ Fonte: Biblioteca Nacional
André Rebouças chegou à Paraíba no dia 16 de outubro e, por uma anotação feita no seu Diário, se tem ideia das precárias condições de hospedagem da capital da Província naquela época: “Apresentei-me ao meio dia ao Presidente Dr. Sinval de Moura [...] Ficou de preparar no Convento de S. Bento [...] um aposento para mim, visto não haver hotel e ser muito difícil encontrar uma casa decente”. Uma das primeiras obras analisadas por André Rebouças na Paraíba foi um “edifício começado para um theatro em frente do quartel do corpo da guarnição”. Neste prédio deveria funcionar o Tesouro Provincial, o paço da Câmara Municipal e as sessões do júri. Rebouças levantou os problemas relacionados com a construção que, segundo ele, eram decorrentes das fundações “que foram estabelecidas sobre um pântano, sem previa solidificação do terreno natural por alguns dos processos, que para casos análogos prescreve a arte de construir”.

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Edifício do Tesouro Provincial da Parahyba do Norte, no Campo do Diogo (atual Praça Pedro Américo). ▪ Fonte: História TJPB
A ponte sobre o rio Sanhauá foi a segunda obra analisada por André Rebouças na Paraíba. O parecer de André Rebouças foi o de que a obra era inadequada ao local. O jornal O Publicador expunha a opinião de Rebouças alertando para as implicações que a construção da ponte traria para o porto do Varadouro que, na época, era “o ancoradouro dos navios mercantes” da Província:

“Na autorisada opinião d’este ilustrado professional, como na de todos os outros que tem vindo á província para examinar a ponte do Sanhauá, essa obra não póde continuar com o plano, segundo o qual tem sido executada. Todos a condemnam como contraria ás regras da sciencia, e, o que mais é, como prejudicalissima aos interesses da navegação, pelo fundado receio de que em futuro não muito remoto venha o porto d’esta cidade a ficar obstruído.”
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Planta da cidade da Parahyba do Norte (atual João Pessoa), no século XIX. ▪ Fonte: BN (adapt.)
Nas caminhadas pela Capital da Província, o olhar atento e perspicaz de André Rebouças identificava as potencialidades da região:

“Á tarde fui com o Presidente ao Sitio do Riacho, onde se pretende estabelecer o novo Matadouro. Por todo caminho vê-se grandes massas de calcareos, que surgem á flor da terra [...] Deus satisfez um dos meus maiores desejos: ver no meu País o calcareo abundante como na Europa. Os calcareos têm a mesma aparência que os calcareos moles empregados na construção civil em Paris”.

André Rebouças também se surpreendia ao se deparar com situações absurdas como aquela de encontrar sementes já imprestáveis destinadas ao plantio e que estavam nos depósitos do governo, sem que a elas tivesse sido dado o devido destino:
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“Fui [...] tomar as dimensões do Tesouro [...] para dar parecer sobre a conveniência da sua demolição. Aí vi barricas com sementes de trigo já inteiramente podres, que mandára vir o Presidente Rohan para ensaiar a cultura na Serra do Teixeira. – Que incrível incuria!”. Vale aqui ressaltar que já fazia quatro anos que Henrique de Beaurepaire Rohan deixara o governo da Paraíba.

Para a professora Angela Alonso, André Rebouças era uma “usina de projetos” e “por onde passava propunha melhorias. O acanhamento do interior inflamava sua índole modernizadora”. E na Paraíba não foi diferente. Rebouças expunha as péssimas condições do porto do Varadouro, “devido aos rios — Parahyba e Sanhauá — que em suas cheias arrastam grande quantidade de areias, que vem entupir o porto e o canal, que o comunica com a barra”, e acrescentava na sua análise que “os bancos e outros embaraços, que apresentava o rio Parahyba, faziam com que muitas vezes os navios de grande calado gastassem 8 e até 9 dias” de Cabedelo à Cidade da Paraíba. E, ao final, questionava: “O que virá a ser desta província se o seu único porto para navios de grande calado se obstruir?!”

E foi a partir deste questionamento que André Rebouças apresentou, para ser submetido à aprovação da Assembleia Provincial, um projeto de “Creação de um porto de commercio transatlantico no Cabedello”. André Rebouças, que tinha um inegável espírito empreendedor, apresentava como condição para viabilizar
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Estuário do rio Paraíba. ▪ BN (adapt.)
o porto de Cabedelo a criação de uma empresa, devidamente autorizada pelo governo imperial, à qual seriam garantidos juros sobre o capital empregado na obra e concedidos direitos de perceber tarifas “pelo transporte, embarque, desembarque e pela armazenagem das mercadorias”, conforme o que seria estabelecido pela Assembleia da Província. O entusiasmo de Rebouças com o porto de Cabedelo era de tal ordem que ele chegou a afirmar no seu relatório que “o porto do Cabedello tal como se projecta será um verdadeiro Liverpool” e concluía:

“É pois de se esperar que nem o governo imperial nem a illustrada assembléa, que hoje decide os destinos da província, recusarão o seu auxilio para a realização de uma empreza, que será por certo o primeiro marco miliário, que plantará a província da Parahyba do Norte na estrada do progresso, que a tem de conduzir á sublime posição, que lhe asseguram a fertilidade do seu solo, amenidade do seu clima e suas admiráveis condições topográficas!”

O projeto apresentado por André Rebouças para o porto de Cabedelo, apesar de aprovado pela Assembleia Provincial, não foi implantado e continuou sendo utilizado o porto do Varadouro com crescente assoreamento e que, pouco a pouco, foi perdendo a sua importância. Somente em 1911, quase meio século depois do projeto que fora elaborado por Rebouças, uma primeira embarcação atracaria, ainda em caráter experimental, no cais do porto de Cabedelo.

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Porto de Cabedelo, Paraíba, no início do século XX. ▪ Fonte: História Docas PB
Durante a sua permanência na Paraíba, André Rebouças apresentou várias sugestões ao governo provincial, entre elas a do “estabelecimento de um telegrafo aéreo entre a Cidade e o Cabedelo” o que, para ele, bastariam duas estações, “uma no Cabedelo e outra junto á matriz da Paraíba”. Rebouças também fez críticas sobre algumas práticas de construção que continuavam a ser adotadas na Paraíba, mas que já haviam caído em desuso. O olhar de André Rebouças foi despertado também para fatos da vida cotidiana dos paraibanos, como a utilização pelos escravos de uma erva que, atualmente, mesmo com o seu consumo legalmente proibido, tem largo uso em todo o país e, quando devidamente prescrita, consegue efeitos medicinais comprovados:

“Os pretos e pretas africanos usam fumar aqui em umas longas cabaças, as folhas de uma planta, que denominam ‘diamba’ e que os embriaga e embrutece completamente; assegurou-me um deles que o ‘diamba’ da Costa d’Africa é tão enérgico que basta algumas fumaças para produzir um delírio frenético, que termina algumas vezes com a loucura.”
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Rugendas, 1825
A presença de André Rebouças na Paraíba não se limitou à Cidade da Paraíba e a Cabedelo. No dia 6 de dezembro, Rebouças viajou a cavalo com destino à cidade de Areia. No dia seguinte, anotou no seu Diário:
NOTA Abdon Felinto Milanez, médico e deputado provincial, foi senador durante o período republicano e, em virtude da sua amizade com o Presidente Floriano Peixoto, foi o responsável pela indicação de Álvaro Machado para Presidência do Estado. Lindolfo José Corrêa das Neves, bacharel e padre, era então deputado geral pela Província da Paraíba.
“Ás 10 horas chegava á cidade do Brejo. A doçura do clima, a pureza do ar, e a bela recepção que me fizeram o Dr. Abdon e o Dr. Lindolfo, apagaram prontamente as impressões dolorosas da viagem”.

O agradável clima de Areia foi objeto de anotações elogiosas no Diário de André Rebouças:

“Fui com Dr. Abdon Filinto Milanez examinar o Poço do Bonito [...] Durante todo o tempo do passeio o céo conservou-se em neblina, correndo uma viração mais fria e agradável que nesse mesmo tempo em Petropolis [...] Escrevo estas linhas ás duas da tarde; o dia está ainda encoberto e parece-me estar passando um dos dias do fim ou do principio de verão em Paris.”
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Brejo d'Areia (atual Areia), Paraíba, no início do século XX.
Apreciador da música clássica, compadre e incentivador do compositor Carlos Gomes, Rebouças foi assistir a uma apresentação no teatro local. Embora tenha considerado a peça muito “mal composta” não deixou de registrar no seu Diário o espírito empreendedor da cidade que já dispunha de um teatro enquanto a capital da Província ainda não possuía nenhuma sala de espetáculos:

“[...] fomos ao Teatro, feito por 60 socios a 5$000 mensais, pequeno edifício bem limpo, com 2 ordens de galeria, plateia, etc. Assim, pois, a cidade do Brejo d’Areia, a 30 leguas do mar, com 60 anos de fundada, tem já um teatro, 10 belos sobrados, e casas abarracadas que competem com as melhores da Paraíba. No Brejo d’Areia, houve ‘iniciativa individual’, e esta cidade nascente teve teatro; a Paraiba espera pelos recursos gerais da Provincia e o teatro começado há 10 anos, permaneceram as paredes entregues ás parasitas até agora.”
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Teatro Minerva, na cidade de Areia, Paraíba,fundado em 1859. ▪ Fonte: GMaps
Após os dias passados em Areia, Rebouças regressou para a Capital da Província. Ao passar por Alagoa Grande, deteve-se entusiasmado com o comércio local:

“A feira de sábado estava em plena atividade. Parecia-me ver a feira de ‘Redon’ na Bretanha [...] Vendia-se com muita animação fumo, farinha, fazendas européas, açúcar, carnes salgadas, etc. Um joalheiro americano, que aí se achava, acabava de vender 20:000$000 de joias [...] A animação do comércio de Lagoa Grande é tal que em 8 dias um comerciante do Recife vendeu 16:000$000 de fazendas [...] Na Lagoa Grande, como no Brejo d’Areia, há indubitavelmente o grande fator de progresso: iniciativa individual.”

Após essa viagem ao Nordeste brasileiro, André Rebouças inicia a fase mais destacada da sua vida, como engenheiro das principais obras públicas do país e como grande empreendedor, além da sua inestimável participação no movimento abolicionista. Por conta das suas atividades profissionais, Rebouças se aproximou do imperador Pedro II de quem viria a se tornar grande amigo.
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André Rebouças em Paris, S.XIX
Mas aquela amizade não era bem vista por muitas pessoas preconceituosas que não aceitavam que um negro privasse do convívio com a família imperial, frequentasse os salões da Corte e chegasse a ser convidado pela Princesa Isabel para dançar com ela em festas. Para a historiadora Hebe Mattos, “o tempo todo a questão racial era usada contra ele, mesmo sendo um homem muito importante”.

Os laços de amizade de André Rebouças com Pedro II se tornaram tão fortes que, quando o imperador foi deposto, ele acompanhou a família imperial rumo ao exílio. Rebouças passou algum tempo entre Portugal e a França escrevendo artigos que eram publicados em jornais da Europa nos quais apresentava propostas de reformas sociais que ele julgava necessárias naquela época. Depois, foi para Angola construir uma ferrovia e, em seguida, se fixou em Funchal, na Ilha da Madeira. Solitário e saudoso do Brasil, André Rebouças foi encontrado morto, em um dia de maio de 1898, no sopé de um penhasco de 60 metros de altura, Tinha sessenta anos.

No dia 17 de outubro de 2024, o Diário Oficial da União trouxe a publicação da Lei 15.003, que fora sancionada no dia anterior pelo Presidente da República, que inscreve o nome do engenheiro André Pinto Rebouças no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria.

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  1. Interessantíssimo e como sempre, excelente artigo. Fala do valor e do predomínio do bom senso da engenharia, sobre o interesse político. Na contramão da história, temos hoje, tantos profissionais competentes nas diversas áreas áreas de técnicas e, que não são mais respeitados nas suas.. opiniões. Hilton Melo. Grande abraço.

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  2. Muito bom!!

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  3. Milfa Araújo Valério15/12/24 18:33

    Formidável! É o mínimo que posso dizer. Ele é grande e muito digno. Estou impressionada com seu pensamento… E muita luz dentro da aparente "escuridão" atual que envolve os dias dele! Muitíssimo agradecida ao ALCR e a Flavio Ramalho de Brito. Por este texto, pude conhecer melhor André Rebouças, um bravo homem, culto, inteligente e viajado também. Pena que tenha morrido assim... E não se descobriu nada a respeito?

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