Pego o trem com Ascenso Ferreira. Um comboio com percursos e vagões sujeitos à baldeação. O dele no rumo de Catende. O meu, no da infân...

O meu e o trem de Ascenso

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Pego o trem com Ascenso Ferreira. Um comboio com percursos e vagões sujeitos à baldeação. O dele no rumo de Catende. O meu, no da infância que um dia tive. Mas tudo com começo no mesmo trilho com as mesmas paisagens e com a mesma vontade de chegar.

De tanto ir e vir, também sei de mangabas maduras e mamões amarelos. Sei onde mora o Pai da Mata. Nos caminhos de ferro que trilhei, essa criatura enorme, mais alta do que as árvores, com unhas de metros, ficava numa das capoeiras de Timbaúba,
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já perto de Itabaiana, a penúltima das minhas estações, quando no começo das férias escolares, advindo do Recife.

Meu Pai da Mata também não gostava de gente, mas protegia animais e pés de paus da maldade humana. Fosse dia, assombrava com seus urros, ou, então, com suas gargalhadas, noite fosse.

Escapava de tiros e facadas, a não ser se atacado à altura do umbigo. Mas, quem seria doido para tentar isso? Nem eu o faria, nem o poeta da pernambucana Palmares. Duvido da existência de goianos e mato-grossenses com coragem suficiente para atirar na barriga do bicho que por ali também aparecia nas histórias de assombração e no tema de alguns Reisados. Seria, neste caso, aquele sujeito feio, com cabelos grandes e nome diferente: Pai, não da Mata, mas do Mato? Não me perguntem a razão da casa que eu escolhi para a morada da Caipora numa ilhazinha no meio do oceano que, mesmo sem água, agitava-se ao vento e formava ondas até o momento do corte de folhas e caules para as usinas de açúcar. Eu nunca me permitiria o contato visual com aquela índia pequena, ligeira e nua, por sabê-la azarenta. Nem eu nem, assim creio, o bom Ascenso que a ela dava endereço alagoano, já nas beiradas, talvez, de Pernambuco.

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Foi a conversa boa de Santana, o cantador, o cearense que tem todo o Nordeste no coração, que me trouxe a lembrança do trem de Ascenso Ferreira. Ele assim o fez em vídeo no YouTube em que trata das raízes em comum de judeus e árabes. Por tal meio, indicou à sua enorme audiência o documentário “A Estrela Oculta do Sertão”, realizado, em 2005, pela fotógrafa Elaine Eiger e pela jornalista Luize Valente sobre as práticas criptojudaicas mantidas por algumas famílias nordestinas.

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A sinopse fala do desembarque de um rabino americano em Venha Ver, cidadezinha do Rio Grande do Norte, para ali observar, em meio aos 800 habitantes católicos, hábitos de origem judaica há muito cultivados num dos redutos mais pobres do Brasil. Coisas como sepultar os mortos em terra limpa (sem caixão), lavar os corpos, cortar as unhas de defuntos e lançar fora a água armazenada em casa ao cabo dos velórios por acreditarem que os espíritos nelas se banhariam. Viria daí a expressão “lavar a alma”. Outra expressão com a mesma data, “ficar a ver navios”, aludiria ao não embarque de judeus para a Terra Nova que no Portugal dos anos de 1600 não se submetessem ao batismo cristão.

O filme, que ainda não vi, contém entrevista com a historiadora Anita Novinsky, professora da USP e “autoridade mundial em Inquisição Portuguesa”, assim referida. Com ele, as duas moças arrebataram, no ano do lançamento, o Prêmio de Melhor Documentário, no Festival de Cinema Judaico, de São Paulo.


“O forró é hebraico”, surpreende-nos Santana, depois de afirmar que os judeus trouxeram o zabumba para as bandas de cá. Diz ele ter ouvido Luiz Gonzaga falar de “um pagodinho hebraico”, ao responder sobre o ritmo que parecia um frevo naquele cai e não cai. É modinha com versos maliciosos: “Na dança do cossaco não fica cossaco fora”.

Perguntem a Santana sobre o chapéu dos vaqueiros nordestinos e ele lhes falará sobre o quipá disfarçado com abas. Mas contendo pistas como a estrela de seis pontas (a de David) e, nas laterais,
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aquelas tirinhas de couro que encobrem as orelhas, os peiots, os cachinhos dos judeus ortodoxos traduzidos nos nossos sertões e caatingas por “cabelos”, assim mesmo.

Não tenho a mínima esperança de voltar a subir num trem para percursos litorâneos nem sertanejos, como muitas vezes o fiz nos meus dias de menino. Não me convenci de que as largas bitolas da Transnordestina irão, algum dia, além da espinha dorsal a serviço do transporte de grãos e minérios a sabidos terminais portuários.

Ainda não dá para confiar na vaga promessa de costelas (ramais), Estado por Estado, para o embarque e desembarque, também, de gente. Quantas estações da extinta Rede Ferroviária do Nordeste S/A, a Refesa da pronúncia matuta, resistem ao abandono? Quantas pontes, quantos trilhos?

Para aquelas tantas viagens e para tais encantamentos sirvo-me, então, foi não foi, do belo poema de Ascenso: um trem no qual subo quando certas saudades me machucam o peito. Venham comigo os que assim quiserem por mero desejo, ou por carências do coração.

Trem de Alagoas O sino bate, o condutor apita o apito, solta o trem de ferro um grito, põe-se logo a caminhar… – Vou danado pra Catende, vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade de chegar… Mergulham mocambos nos mangues molhados, moleques mulatos, vêm vê-lo passar. – Adeus! – Adeus! Mangueiras, coqueiros, cajueiros em flor, cajueiros com frutos já bons de chupar… – Adeus, morena do cabelo cacheado! – Vou danado pra Catende, vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade de chegar… Mangabas maduras, mamões amarelos, que amostram, molengos, as mamas macias pra a gente mamar… – Vou danado pra Catende, vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade de chegar… Na boca da mata há furnas incríveis que em coisas terríveis nos fazem pensar: – Ali dorme o Pai da Mata! – Ali é a casa dos caiporas! – Vou danado pra Catende, vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade de chegar… Meu Deus! Já deixamos a praia tão longe… No entanto, avistamos bem perto outro mar… Danou-se! Se move, Se arqueia, faz onda… Que nada! É um partido já bom de cortar… – Vou danado pra Catende, vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade de chegar… Cana-caiana, cana-roxa, cana-fita, cada qual a mais bonita, todas boas de chupar... – Adeus, morena do cabelo cacheado! – Ali dorme o Pai da Mata! – Ali é a casa das caiporas! – Vou danado pra Catende, vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade de chegar
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Ascenso Ferreira (1895-1965), poeta pernambucano.

Sua bênção, Poeta.

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  1. Anônimo9/5/25 07:14

    Texto antológico, Frutuoso, digno de figurar em futuro livro seu, pense nisso. Quanta nordestinidade em suas memórias e palavras! Parabéns. Francisco Gil Messias.

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