Lá fui eu, levado pelo amigo Antonio Correia, procurar Augusto dos Anjos em Sapé e Zé Lins do Rego em Pilar, numa manhã de sábado des...

Visitando fogos mortos em Pilar e Sapé

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Lá fui eu, levado pelo amigo Antonio Correia, procurar Augusto dos Anjos em Sapé e Zé Lins do Rego em Pilar, numa manhã de sábado deste maio de 2025. Maio de poucas chuvas e sol intenso. Nada que lembre o outono em que oficialmente estamos aqui no Brasil. Outono que é uma estação tão propícia a esses passeios culturais, sem nenhum propósito, salvo o de deleitar o espírito com coisas sem preço. Outono que para ser perfeito deveria vir acompanhado de temperaturas amenas, anunciadoras do inverno e favoráveis ao recolhimento e à introspecção. Mas que fazer se nos trópicos é praticamente verão?

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Engenho Corredor (Pilare-PB)
Alba Regina V. Soares
No engenho Corredor, na ausência de Dona Alba, a proprietária, fomos recebidos por Tonho, um antigo funcionário da propriedade, simpático e disposto a nos falar o que sabe sobre o lugar e seus personagens. De tanto ouvir, aprendeu, digamos, o básico sobre Zé Lins, seu avô e sua história. Não é muito, é até demais para um homem simples como ele, mas dá para nos embalar, mesmo que saibamos mais que ele sobre o que ouvimos, na atmosfera especial que cerca o lugar histórico. Era ali o mundo do menino de engenho, do qual só restaram algumas edificações, a paisagem ao redor e o silêncio.

A casa-grande é rústica, os alpendres estreitos, os quartos, pequenos, pelo menos os dois que cheguei a ver, só cabendo uma cama de casal. Vê-se que o luxo sempre andou longe dali, a despeito da imensa riqueza do coronel, dono de vários engenhos e de infinitas léguas de terra e de canaviais. De fato, essa foi, segundo dizem, uma característica dos engenhos paraibanos, com uma ou outra exceção: a simplicidade – e até mesmo a austeridade. Já em Pernambuco o luxo se apresentou com menos resguardo: a riqueza era maior e o gosto de mostrá-la também.

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Engenho Corredor A União
Os poucos móveis não são os originais do tempo do menino Zé Lins, mas os que lá foram colocados pelos proprietários mais recentes não destoam da casa. E na parede da sala há uma foto do coronel-avô, o Bubu, com seu ar austero de grande senhor quase feudal. É o célebre José Paulino dos romances do “ciclo da cana-de-acúcar”. Ali o visitante sente perfeitamente a mistura da ficção com a realidade, matéria-prima de boa parte da obra romanesca do escritor paraibano. Na parte de trás da casa pode-se ver um resto de instrumentos de trabalho do engenho: umas formas de zinco usadas no fabrico do açúcar, os trilhos por onde corriam os balcões para a secagem do mesmo produto e mais alguns outros, como um imenso tacho de metal, em boa parte comido pela ferrugem.

Em torno da casa-grande a paisagem certamente pouco mudou, pode-se dizer, até porque, de modo geral, as paisagens mudam com menos facilidade, principalmente no campo, onde costumam ser mais raras as grandes
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Engº Corredor @Paraíba no Passado
intervenções humanas. Falta, é claro, o movimento dos trabalhadores, dos visitantes e dos animais, a vida que enchia os dias dos que habitavam o lugar. E essa ausência generalizada traz consigo o silêncio das grandes solidões, o silêncio que fiquei a ouvir, quebrado apenas pelo canto dos pássaros. Sem dúvida, um mundo morto, o engenho da infância de Zé Lins, símbolo de uma época e de uma sociedade desaparecidas, confirmando dolorosamente, como a fotografia de Itabira na parede de Drummond, que nesta vida tudo passa.

Zé Lins rememorou aquilo tudo já adulto, mas o fez com os olhos do menino, e menino tudo vê engrandecido, até por comparação com sua pequenez física. Daí ter imaginado seu mundo rural maior do que de fato era. Só depois descobriu que o mundo lá de fora era muito maior que o de dentro das terras de seu avô. E que este era poderoso, sim, mas não podia tudo.

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Alba Vieira e Joaquim Soares
Acervo pessoal
Quero aqui deixar registrada minha homenagem ao casal Joaquim e Alba Soares, ao qual se deve o importante trabalho de restauração e recuperação do engenho Corredor em tempos recentes. Foram precisos muito amor e muito senso histórico-cultural para fazer o que ambos fizeram às próprias custas. Merecem, pois, o reconhecimento dos paraibanos e dos brasileiros.

Dali, seguimos para Sapé, em busca da casa da ama de leite Guilhermina, aquela cujo peito alimentou o menino Augusto dos Anjos e está imortalizada em célebre poema evocativo do grande poeta. Segundo informam, é a única edificação que restou incólume do antigo engenho Pau d’Arco, devorado pela usina, a qual, por sua vez, foi também devorada pelas circunstâncias, devoradoras de tudo neste mundo. É um milagre, penso eu a adentrar o recinto tão bem cuidado pelo gestor do Memorial que ali funciona, Aderaldo Elias, verdadeiro soldado do patrono, na defesa de sua memória e de sua obra. Ao lado da casa, vê-se ainda a sombra da imponente árvore, onde o menino Augusto se refugiava, sob
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Memorial Augusto dos Anjos
Secult Paraíba
a proteção de Guilhermina, talvez já cultivando seus primeiros ensimesmamentos. Em alguns aspectos, é um espaço semelhante ao Memorial existente na Academia Paraibana de Letras, um pouco do muito que a Paraíba poderia – e deveria – fazer em homenagem a um de seus maiores filhos. Na cidade de Sapé, vê-se Augusto por toda parte, em abundância; ali os poderes públicos e a população reverenciam o nome do poeta, orgulho da aldeia e dos aldeãos. Por ironia da vida, constata-se que o bardo empobrecido agigantou-se diante dos poderosos que engoliram o velho Pau d’Arco, a poesia vencendo a usina, pelos séculos dos séculos, amém.

Ao voltar para casa no fim da tarde, trouxe comigo uma justificada vontade de reler alguma coisa de Zé Lins, como forma de continuar fruindo a bucólica atmosfera do Corredor, à qual só faltou o cheiro gostoso da casa-de-farinha e da casa-de-purgar. Escolhi então na pequena estante Meus verdes anos, as memórias do buliçoso menino que o avô, não sem razão, temia não viesse dar para nada na vida. E pelo poder da palavra literária continuei no engenho por mais alguns dias, como se não tivesse deixado para trás aquele mundo extinto, mas ainda tão real nas páginas imorredouras do grande autor.

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