Há algumas etimologias encontradiças em obras de referência, que não me parecem adequadas, embora divulgadas de maneira categórica. Uma delas é a de que “sincero” teria vindo da expressão “sem cera”. Como as máscaras eram de cera, uma pessoa sincera seria uma pessoa sem máscara, não falsa, natural. Comunga dessa ideia o Dicionário Morfológico da Língua Portuguesa (de Evaldo Heckler, Sebold Back e Egon R. Massing), editado em São Leopoldo pela Unisinos, em 1984. Em latim, cera é feminino e a preposição sine (sem) exige ablativo. Não sei como se daria a transformação de uma locução adjetiva feminina (sine cera) no adjetivo masculino sincerus, de primeira classe.
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O Dictionnaire étymologique de la langue latine, de Ernout & Meillet (Paris: Klincksieck, 1967), informa que o sin de sincerus é o mesmo elemento que aparece em símplex (adjetivo cujo significado é “de uma só vinda”, usado em telecomunicações em oposição a dúplex), e que o segundo elemento cerus se relaciona com Cerus, companheiro de Ceres, assim como Tellurus era companheiro de Tellus. Ceres é filha de Saturno, irmã de Júpiter e divindade da terra cultivada ou da agricultura. É deusa que faz nascer as colheitas. O radical cero de sincero, ainda segundo aqueles dicionaristas, é o mesmo que aparece em prócero (alto, elevado). O Diccionario crítico etimológico de la lengua castellana, do Corominas (Madri: Gredos, 1954, sv.), não fala em “sem cera”, mas cita o latim tardio sincerare (voltar puro) que originou o verbo sincerare (assegurar, justificar), em italiano. O verbo inexiste nas outras línguas românicas.
Outro étimo defendido pelos padres de São Leopoldo é o de religião, que eles atribuem ao verbo religar, como se a religião fosse uma ligação entre os homens e a divindade. O prefixo re- não é o mesmo de religar. Segundo Ernout & Meillet,
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o prefixo re- é o mesmo de relíquia. O segundo elemento é obscuro. Cícero, no entanto, defende que o étimo de religião se associa ao verbo relegere, reler, como se a religião fosse uma releitura da vida (ou da morte) ou uma escolha (elegere significa eleger, escolher).
O terceiro étimo discutível é o que os padres de São Leopoldo atribuem ao nome azulejo. Segundo eles, azulejo seria oriundo do árabe az-zullaiju. Frei João de Sousa, no glossário Vestígios da língua arábica em Portugal ([S.l.]: Gráfica Maiadouro, 1981), atribui a azulejo o étimo árabe zallaja (ser liso, escorregadio). Não se pode afirmar categoricamente qual é a origem de azulejo. O Dicionário do Corominas, para o espanhol, e o de Antenor Nascentes, para o português, analisam opiniões diversas de estudiosos, entre as quais a que considera azulejo derivado de azul ou do persa lazward, lápis lazúli. A Academia Espanhola deriva azulejo do árabe azuleij, pequena pedra brunida. Como os azulejos, segundo opinião registrada no Corominas, tinham predominantemente a cor azul (“El color que más campea en los azulejos es el azul”) uma análise sincrônica permite considerar azulejo como formado de azul mais o sujeito -ejo. Essa é a opinião que divulgo na minha Gramática Superior da Língua Portuguesa (reeditada em 2011 pela Thesasurus, de Brasília), citando os dicionários etimológicos acima mencionados.
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Um quarto étimo inadequado é o que atribui ao nome pontífice relação com pons, pontis (ponte) e o verbo facere (fazer), como se pontífice significasse “construtor de pontes”. Defendem essa ideia os padres da Unisinos, mas Ernout & Meillet afirmam que se trata de etimologia popular divulgada por Varrão. A palavra pontifex latina sempre designou um membro do principal colégio dos sacerdotes romanos que tinha por dever a vigilância do culto oficial e público, cujo líder era o pontifex maximus e cujas funções em nada se relacionam com pons.
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A palavra “gringo”, segundo informação também indevida de Silveira Bueno, no livro Tratado de semântica brasileira (4.ed. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 115), teria vindo das primeiras palavras de uma canção americana utilizada pela cavalaria dos Estados Unidos, na guerra contra o México, no séc. XIX: “Green go the rashes O / the happiest hours that here I spent / were spent among the lasses O.” Os dicionários etimológicos de Corominas, de José Pedro Machado e de A.G. Cunha atribuem a gringo uma variação de griego. O dicionário de Corominas, mais informativo e mais preciso, no verbete griego, cita o dicionarista Esteban de Terreros y Pando, do séc. XVIII: “Gringos llaman en Málaga a los estranjeros, que tienen cierta especie de acento, que los priva de una locución fácil y natural Castellana, y en Madrid dan el mismo nombre con particularidad a los irlandeses”.
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Ora, se gringo já estava dicionarizado no séc. XVIII, não se pode atribuir-lhe origem mexicana no séc. XIX, na época da guerra com os Estados Unidos.
Todo cuidado é pouco quando se trata de questões etimológicas...
Em matéria de invenções etimológicas, Gilles Ménage (1613-1692) ganharia o óscar: em seu Dictionnaire étymologique, de 1694, formado a partir do desenvolvimento de sua obra de 1650, Origines de la langue française, ele “deriva” haricot (feijão) de faba; laquais (lacaio), de verna; e quille (bola) de squilla (sino), por exemplo. É verdade que Ménage tem virtudes, e muitas de suas etimologias são verdadeiras, mas a sua imaginação para estabelecer a pretensa cadeia evolutiva entre o étimo e a forma atual (esta tão distante fonologicamente daquele) leva o consulente bem intencionado a descrer da obra toda. Teria sido melhor, talvez, que ele tivesse ficado apenas com seus versos galantes e mundanos, mas, certamente, não teria hoje o seu nome lembrado. Ganhou com suas bobagens mais que os quinze minutos de fama que o artista “pop” Andy Warhol preconizou para os mortais comuns. O que equivale a dizer que a tolice disfarçada em sabedoria rende mais que a erudição e a cautela de um cientista. Sabe-se que foi Eróstrato que, em 356 antes de Cristo, incendiou e destruiu o Templo de Diana (ou de Artêmis) em Éfeso, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Mas até hoje não se sabe o nome do arquiteto que projetou esse templo.
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Em outras palavras, a mediocridade vale mais que tudo: angaria fãs e aplausos e torna o sucesso bem maior que os meros quinze minutos de glória que Warhol pretendeu que todo mundo poderia ter...