O jovem Rubens Nóbrega pegou-me pela mão e conduziu este seu amigo mais velho pelas esquinas do tempo, com o perdão de Nelson Coelho, dono da expressão. Li o seu “Memórias do Batente” de um fôlego só e nele refiz percursos ao longo de anos e anos de vida profissional. Atuamos juntos sob o mesmo teto na fase mais curta da nossa convivência. Inicialmente, com o abrigo da velha A União, escola para a minha geração, a dele e a de nomes do jornalismo surgidos antes e depois daquilo que aprendemos e fizemos.
Em seguida, dividimos, por alguns dias, cadeiras, mesas e máquinas de escrever n’A Carta, de Josélio Gondim.
Antes d’A Carta, atuei por dez anos n’O Norte, líder em circulação da imprensa paraibana até o fim da década de 1980, ao cabo do que pedi demissão do cargo de editor. Foi quando somei as batalhas perdidas. Não mais valeria a pena continuar ali. Saí quando tentei evitar a colisão entre duas pesquisas eleitorais, uma a desmentir a outra, na mesma página. Fiz ver à direção que não admitiria aquilo. Não com meu nome no expediente do jornal. E fui dormir certo de que tinha ganhado a briga. Manhã cedo, ainda na cama, verifiquei a pesquisa mentirosa desmembrada em pingos (jargão para as notas curtas do colunismo) no “Enfoque” que eu então produzia, sem assinatura, com a colaboração de colegas. A carta de demissão somente não chegou ao jornal antes de mim, porque decidi entregá-la, em mãos, ao pessoal dos Recursos Humanos, com cópia ao mandachuva.
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Antes que eu me esqueça: a pesquisa mais séria prenunciou o êxito do candidato vitorioso. A outra, transformada em pingos, teria a farsa comprovada nas urnas. Passei a dormir o sono dos justos, até porque, antes disso, mandei às favas, quando percebi o rumo da conversa, o camarada que pretendia comprar meu assessoramento. Nem teve ele tempo de concluir o pedido em almoço intermediado por um amigo em comum.
Na década seguinte, o editor Rubens Nóbrega faria do Correio o melhor e o maior jornal paraibano. Tivéssemos o conhecimento mútuo de que enfrentávamos problemas assemelhados em defesa da lisura e da isenção jornalísticas,
Rubens Nóbrega, escritor e jornalista, autor dos livros Memórias do Batente e Baixa do Mel.
nossos laços teriam se estreitado há muito mais tempo. Sei, como ele, o quanto é doloroso demitir um repórter recebedor de propinas. Sei como é ruim acordar com ameaças de morte ao telefone. E sei o quanto nos foi necessário dizer “não”, evitar o tapete dos palácios, tapinhas nas costas e bajulação dos poderosos. Fizemos parte do grupo ainda existente, mas infelizmente reduzido, dos que sabem que o jornalismo sério é uma opção pela pobreza.
Não contei a história da pesquisa ao “Cobra Criada”, o programa da TV Câmara que nosso Rubens ancorou. Acho que fui seu penúltimo entrevistado. De qualquer modo, a troca de impressões entre velhos (eu mais do que ele, repito) jornalistas rendeu-nos uma das maiores audiências desse projeto concebido para o resgate de lembranças e fatos vivenciados por aqueles cujos cabelos o vento levou, ou pintou de branco.
As memórias do batente ressuscitadas pelo talento, pelo apuro e pela pena primorosa do meu amigo fizeram-me rir e lacrimejar. Senti saudade de quem já nos deixou. E ri com as piadas de Antonio Hilberto, as farras de Coelhinho e as popas de Zé Souto.
A leitura indispensável do livro de Rubens trouxe-me a lembrança d’O Luzeirinho, o bar daquela calçada de Jaguaribe cuja freguesia era engrossada com gente do jornal e do rádio e com deputados e vereadores que para lá rumavam ao fim dos expedientes. Não sei que grupo ali puxou o outro. Mas mantenho a suspeição das bocas livres.
Bar O Luzeirinho, João Pessoa, 1970s ▪ inventariodotempo
Trouxe-me, ainda, algo de que em detalhes eu não sabia: o esquecimento por Coelhinho do amigo Marcos Souza no banco traseiro do carro que, primeiramente, tomava a direção da casa de outro carona, o próprio Rubens. Alta madrugada, Marcos, com a bexiga cheia, desperta do seu desmaio etílico sem dar conta de onde se encontrava. Tenta sair em busca tanto do alívio quanto da identificação do lugar e, de repente, vê-se obrigado a disso desistir pois, do contrário, seria estraçalhado por dois cachorros enormes. Os latidos dos bichos e uns gritos de socorro por uma brechinha da janela do carro com o vidro quase todo erguido acordaram o dono da casa que, de revólver em punho, procurava o ladrão acuado. Vejam só o que estão perdendo os que ainda não adquiriram seu exemplar do “Memórias do Batente”.
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Tempo antes do autógrafo honroso no café da manhã do Cannelle, o restaurante de Afrânio Bezerra, eu busquei o da Livraria do Luiz, no Manaíra Shopping, onde Rubens então lançava seu “Baixa do Mel”. Também li esse livro sem interrupção, salvo às destinadas ao almoço e ao jantar. Mergulhei naquela trama brejeira, vizinha do ponto onde José Américo pariu “A Bagaceira”.
Página por página, percorri aqueles enredos paralelos e atados a um fio condutor: o da saga de Valéria, menina branca como tapioca, e de Betão, o moço nascido preto. A repugnância dela aos machos e fêmeas desse tipo resultou no afogamento do pequeno Duílio. “Não toque nele”, gritara a moça raivosa. Betão obedeceu e a criança afundou nas águas do açude sem que a ajuda precária de Valéria fosse de alguma valia. Vi quando ela culpou o negro pela morte do sobrinho e percebi seu remorso agudizado, ainda, por tragédias subsequentes, entre elas a do linchamento de inocentes. É livro que me reapresentou o preconceito, a corrupção e a degradação ética e moral das criaturas feitas à semelhança física do Criador.
É uma dessas obras a cujo lançamento nunca deixarei de ir se saídas da memória e do talento de Rubens Nóbrega. No “Baixa do Mel”, uma nota de orelha avisa: “Este livro contém histórias inventadas ou recriadas com base em fatos reais”. Ou seja, as semelhanças não terão, ali, ocorrido por mera coincidência. Bravo, Rubens.