Não clameis por sua sorte! Tanto é noite quanto é dia, E vida e morte. Cecília Meireles Felizes éramos nós, meu pai, minha mãe e eu. ...

Romanceiro (melodrama à moda medieval)

conto romance melodrama medieval
Não clameis por sua sorte! Tanto é noite quanto é dia, E vida e morte.
Cecília Meireles

Felizes éramos nós, meu pai, minha mãe e eu. Meu pai caçava nas folgas, na semana trabalhava. Minha mãe, comigo em casa, ou na cozinha, ou na costura, cumpria também sua parte na muita luta diária pelo agasalho e sustança. E eu, quando não estudava, também pegava no duro, lavando pratos ou varrendo a casa. E éramos felizes e de tudo tínhamos do que cada um deve ter, para uma vida apertada, de pouca renda, mas de algum conforto. O pão não faltava, o principal nos sobrava.
conto romance melodrama medieval
GD'Art
De fome não gritei nunca, tirante a época de bebê, em que eu abria a desdentada boca, na escandalosa sede de mamar. Mas o leite vinha abundante do seio de minha mãe, e eu cresci forte e saudável. E nós éramos felizes, meu pai, minha mãe e eu.

E então veio o Conde, que conde nem era.

Condeiro era ele de nome, por um erro de registro. Cordeiro teria sido, mas por Conde ficou sendo, no abreviado do chamamento. E por Conde o conhecemos, meu pai, minha mãe e eu. Bonito era ele, de verdes olhos e cabelos louros, e nobre e conde parecia, inda que conde não fosse, a não ser por nome cristão, diminuído na fala.

Quando ele chegava a casa, por artes de ciganice, que nem trabalho ele tinha, e no que ao sofá se sentava, a convite ou sem convite, punha-se a mãe em atenções, a derreter-se em mesuras. Meu pai longe estava, na lide ou na caça, e à mãe sobrava o destemor da ousadia: ia eu para a cozinha, ia ela pro sofá. E então à mãe eu dizia, saído o visitante, sem saber que já era ciúme o que por ele eu sentia, que uma dama já casada a outro não há de notar, além do marido, o homem que ela tomou no altar. E ria-se a minha mãe de meus zelos de donzela, que zelosa ela me achava e não que celosa eu era:
conto romance melodrama medieval
GD'Art
que eu nada sabia da vida para conselhos lhe dar. Mas o Conde nos visitava sempre, e sempre que em casa não estivesse o meu pai.

A gente nem muito adulta precisa às vezes de ser, para ficar sabendo o que sozinhos podem um homem bonito e uma mulher bonita, ambos jovens e saudáveis, no aconchego e no chamego de encontros particulares. Envergonhe-se, minha mãe, de andar com o Conde a brincar. Mas ela me respondia que ele muito me daria e eu só teria a lucrar, se nada ao meu pai dissesse. Vestidos eu teria, disse, e renda e joias também. De ouro te visto, filha, se calada te quedares e nada ao teu pai disseres. E eu dizia, minha mãe, não seja assim tão ousada, que isso de muito brincar há de um dia fazer chorar. E ela então me dizia, filha, estás-te a equivocar; tem paciência e espera, que as aparências iludem.

E foi que um dia eu os vi, no sofá, a cochichar. De ciúmes me mordi, sem saber que eram ciúmes o que no instante senti. E disse de mim pra mim mesma que ao meu pai tudo diria. E foi o que fiz e disse, meu pai, amanhã não se vá, finja que vai sair, mas deixe-se em casa estar, e sem que a mãe o perceba, fique de fora a espreitar. E assim, no dia seguinte, meu pai fez o que eu lhe disse. E o Conde chegou contente, achando que à caça ou na lide andava o meu pai, bem longe.

conto romance melodrama medieval
GD'Art
E foi assim que ele os viu, na intimidade, a falar. Meu pai pegou o fuzil e disse ao Conde, isso, ingrato, não é coisa de um amigo. O senhor me roubou a esposa, a mim que sou seu amigo! Faça o favor de rezar. Posso ter sido chifrado, mas chifrudo não vou ser.

O Conde pediu perdão. Disse, amigo, não se iluda, as aparências enganam. Não é sua mulher que eu quero e a ela nunca não quis. Mas o meu pai atirou, sem esperar que o meu Conde terminasse de falar. E foi minha mãe que, chorando, completou a fala dele. Era a mim que ele queria, embora com minha mãe parecesse namorar.

conto romance melodrama medieval
GD'Art
O Conde morreu do tiro, meu pai foi preso depois. Minha mãe enlouqueceu e eu só fiquei, a chorar. Viúva e triste sou hoje, sem nunca me ter casado, e virgem fiquei de amor, sem nunca ter namorado. Minha mãe ficou velhinha, meu pai morreu na prisão. Hoje estou triste e sozinha, no meu remorso e infortúnio. Foi o ciúme que me fez solteira, que me fez órfã e me tornou tão triste. Eia, pois, a vida é assim. Quem nunca tem dó dos outros, que tenha pena de mim. E quando, em instantes, bem raros, de lucidez ou que seja, minha mãe me diz, malo hajas, filha minha, mai-lo leite que mamaste, uma cara tão formosa, as penas que me causaste. Cale-se lá, minha mãe, que não-na ouça a vizinha. A morte que levou o Conde devia de ser a minha.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Irenaldo Quintans5/7/25 14:50

    "Honi soit qui mal y pense", caro escritor. Brilhante!

    ResponderExcluir

leia também