O Canto XXIX do Inferno nos mostra Dante e Virgílio saindo do Nono Bolsão e adentrando o décimo e último recanto do Oitavo Círculo, o ...

Tempos absurdos, os de Dante!

divina comedia inferno justica dore
O Canto XXIX do Inferno nos mostra Dante e Virgílio saindo do Nono Bolsão e adentrando o décimo e último recanto do Oitavo Círculo, o mais complexo de todos os demais percorridos pelos dois poetas. Eles deixam os condenados por semear a discórdia e se encontram com os falsários, mais precisamente, os punidos pela prática de alquimia.

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Virgílio repreende Dante ▪ Inferno, C.XXIXG. Doré, 1857
Não é, como sabemos, uma tarefa fácil a de Dante, levado ao inferno como espectador, para dar ciência ao mundo dos vivos das consequências dos maus atos praticados em vida. Também não é tarefa das mais amenas a de Virgílio, designado pelo poder divino superior a ser seu guia (duca, verso 17) e mestre (maestro, verso 22), tendo que guiar e cuidar de seu protegido, advertindo-o, por exemplo, que já passa do meio dia e logo a lua surgirá. A reprovação por alguns atrasos de Dante, que bem se compreende pela situação inusitada de um vivo assistindo, no mundo dos mortos, a punições exemplares e terríveis, é necessária, tendo em vista que os dois já gastaram metade do tempo da travessia de 24 horas pelo inferno. Ainda faltam o Décimo Bolsão e o Nono Círculo, dividido em 4 zonas. É preciso pressa, portanto.

A visão no Décimo Bolsão é das piores, com os condenados cheios de pústulas (schianze, verso 75), de que exala um odor insuportável (puzzo, verso 50), deixando o ar empesteado. Os que ali se encontram se coçam com força, como alguém que escova um cavalo ou descama peixes, numa aflição eterna que os torna quase
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O vale dos falsários ▪ G. Doré, 1857
impossíveis de se mover, obrigando-os a se sustentar um nas costas do outro. É nessa situação que Dante e Virgílio encontram Griffolino d’Arezzo (?-1272), queimado a mando de Albero da Siena (século XIII/XIV), mas não pelo fato de ser alquimista, acusação plausível para a fogueira (mi fé mettere al foco; ma quel per ch’io mori qui non mi mena, “me fez colocar no fogo;/mas aquilo por que morri, não é o que aqui me traz”, versos 110-111). Griffolino, na sua longa fala (versos 73-120), diz que outro foi o crime pelo qual foi queimado. Procurando fazer uma brincadeira, Griffolino disse poder voar (I mi saprei levar per l’aere a volo, “Eu saberia me levar pelo ar, em voo”, verso 113).

Imagine o leitor que coisa mais absurda é alguém ser punido por uma jocosidade, e punido com pena capital. Que tempos perigosos, os da Idade Média de Dante, em que se podia prender e condenar alguém pelo terrível crime de ter dito uma brincadeira, numa roda de amigos! Que bom que já não vivemos em tempos dantescos. Vivemos numa época moderna e justa, em que se sabe fazer a diferença entre o jocoso e o sério. Se Griffolino vivesse hoje e dissesse que poderia voar, seria encarado com admiração por alguns, com desdém por outros,
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O vale dos falsários ▪ G. Doré, 1857
porém jamais seria vítima de qualquer processo, porque já não vivemos o tempo dos prepotentes e senhores absolutos da verdade monolítica, em relação à qual não pode haver qualquer tergiversação. Bons tempos, os nossos!

Voltemos a Dante, pois os absurdos medievo-inquisitoriais não acabaram. Depois de morto, a alma de Griffolino d’Arezzo é conduzida ao inferno, onde foi julgada por um juiz ao qual não se permite falhar (a cui fallar non lece, verso 120), Minos, o antigo rei de Creta, filho de Zeus, alçado à condição de juiz do Hades por seu pai, devidamente referido por Homero, na Odisseia (Canto XII, versos 568-569). Juiz incorruptível e, sobretudo, justo, Minos condena a alma de Griffolino pela prática da alquimia, condena-o por ser um falsário de metais, não por uma brincadeira proferida em voz alta. Condenação justa, tendo em vista que Griffolino utilizou-se da prática de recursos ilícitos para auferir algo em benefício próprio.

Só para reafirmar que vivemos bons e felizes tempos, em que a Justiça impera, veja o leitor o absurdo que nos é informado por outra alma purulenta, Capocchio (?-1293) também alquimista e de Siena
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Dante e Virgílio observam o vale dos falsários ▪ G. Doré, 1857
(sì vedrai ch’io son l’ombra di Capocchio,/che falsai li metali com l’alchìmia, versos 136-7), condenado ao mesmo bolsão, e que se encontra escorado em Griffolino. Dante, ao indagar se não há gente que não seja vaidosa, em Siena, ainda mais vaidosa do que os franceses, obtém de Capocchio uma resposta irônica (versos 124-139): salvam-se os doze jovens de Siena, que compuseram a famosa “brigata spendereccia”, a brigada dissipadora, que dilapidou uma fortuna de centenas de milhares de florins, em apenas dois anos, destruindo terras, vinhas, plantações do caríssimo cravo e, claro, muito dinheiro. Essa boa gente foi poupada de qualquer acusação ou processo, pelas suas ações benevolentes e altruístas (e tra’ ne la brigata in che disperse/Caccia d’Ascian la vigna e la gran fonda, versos 130-1). Tutti buona gente, enfim...

Só mesmo vivendo em nossos tempos justos é que achamos um absurdo uma brincadeira levar à condenação de uma pena capital, enquanto a dilapidação de patrimônio, cuja origem sempre se ignora, é exaltada como uma qualidade...

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Os falsários, em agonia ▪ G. Doré, 1857
Ao que parece, Dante aprendeu bem a lição de Virgílio, seu guia e mestre. Com os poetas mantuano e florentino nos revelando a injustiça e o absurdo, certamente aprenderemos o sentido da Justiça, para não incorrer e insistir nas mesmas atitudes prepotentes da busca insana por poder.

Agradeçamos aos dois poetas.

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  1. Tempos difíceis os de Dante e também o nosso. Se pensarmos bem, veremos que todos os tempos são difíceis, não é mesmo? A vida é difícil. Até mesmo no Paraíso não foi fácil, como provam as presenças da serpente e de suas tentações. Seu texto, Milton, nos faz refletir sobre tudo isso e nos alerta para que não terminemos no inferno, seja o de Dante ou qualquer outro. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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  2. Obrigado, Gil, pela leitura e pelo comentário. As serpentes andam mais solertes do que nunca...

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