Janeiro de 1978, com apenas uma semana de casados fomos morar em São Paulo. Eu, para cumprir residência médica em cardiologia no Hospital da Beneficência Portuguesa de São Paulo. E Ilma para realizar o internato no Hospital Matarazzo.
Bem instalados na alameda Santos, Jardins, parti para fazer a minha inscrição no Conselho Regional de Medicina de São Paulo. Assim eu poderia trabalhar e nos sustentar. No princípio meu pai, Francisco Espínola, nos ajudou com o aluguel do apartamento. O pai de Ilma, Dr. Walter Sarmento, também nos ajudou muito.
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Todos os dias, no final da tarde, depois de sair do Hospital da Beneficência Portuguesa, eu pegava o ônibus com o caderno de classificados da Folha de São Paulo todo marcado, para visitar os locais que anunciavam emprego para médicos. Levava, também, um guia da cidade que Ilma me presenteou. Quando voltava para casa, à noite, com um lápis colorido marcava todos os trajetos percorridos. Dessa forma conheci quase todos os bairros da cidade.
Na maioria das vezes eu quebrava a cara, encontrando clínicas e hospitais oferecendo trabalho insalubre. Ou então explorando o médico com salários infames.
Mas o que eu não esperava era que o meu melhor emprego estivesse tão perto de onde morava. Com uma carta de recomendação do
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O plantão, inicialmente, era aos domingos. Eu atendia urgências, geralmente clínicas. Às vezes partia numa ambulância para atendimento de intercorrências domiciliares. Seguíamos eu, o enfermeiro Walter, e o motorista da ambulância, provavelmente selecionado entre os melhores pacientes dos hospícios da região.
Um exemplo foi o meu primeiro chamado domiciliar. Para me testar e impressionar, o louco do motorista ligou a sirene da ambulância e... ENTROU NA CONTRA-MÃO NA AVENIDA PAULISTA!!!!
Eu me segurei firme, usando os braços e as pernas, fechei os olhos e, “elogiando” a mãe dele, mandei-o voltar para a faixa normal, o que ele fez com a maior tranquilidade, como se não tivesse acontecido nada de mais. Esse foi o meu batismo de sangue. Depois disso ele me aprovou e ficou meu amigo.
Mas o melhor aconteceu num lindo fim de tarde de domingo. Porém antes devo dar uma explicação, importante para a compreensão do fato. Ilma sempre se preocupou com o meu bem-estar, principalmente nos plantões. Por isso é que certa vez ela me presenteou com uma calça helanca muito confortável, a cintura firmada por um elástico, que ela conheceu por uma propaganda da TV, e comprou na loja Mappin, no centro da cidade. Mas, vamos ao ocorrido.
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Era um plantão tranquilo, sem nenhuma intercorrência ao longo do dia. Ao pôr do sol aconteceu o inusitado. A tranquilidade da tarde foi quebrada por um ônibus que de repente parou na frente, e a clínica foi invadida por dois casais carregando uma menininha de seus 4 anos de idade.
Tratava-se de uma excursão ao litoral de Santos, de representantes de droga e seus familiares. Estavam retornando para o interior de São Paulo, quando de repente a menininha, Sandrinha, ao caminhar pelo corredor do ônibus, desequilibrou-se e feriu a testa.
O sangue escorria sobre o rostinho lindo. O pai estava apavorado; a mãe, bem mais equilibrada. Eles estavam sendo amparados pelos padrinhos da menininha, de quem o pai era colega.
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“Geralmente não se ponteia este tipo de lesão, tão pequeno. Se vocês quiserem eu posso pontear. A lesão é tão pequena que 1 ponto será suficiente,” eu disse aos pais.
Eles conversaram entre si, indagaram a opinião dos padrinhos. A palavra da madrinha foi decisiva:
“Doutor, se trata de uma futura moça bonita, quem sabe vaidosa. Achamos que o senhor deve dar os pontos” “O ponto,” corrigi. Expliquei aos pais “Doutor, se trata de uma futura moça bonita, quem sabe vaidosa. Achamos que o senhor deve dar os pontos”. “O ponto,” corrigi. Expliquei aos pais
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“Usarei fio mononaylon 6.0, que não deixará vestígios, como aprendi com o habilíssimo cirurgião plástico Luiz Alberto Leite”
Walter, profissional muito experiente, já estava com tudo pronto na sala de pequenas cirurgias, caso a decisão fosse positiva.
Após me lavar, vesti o capote cirúrgico, pus o gorro e a máscara, calcei as luvas e me dirigi até a mesa cirúrgica. Até esse momento, ainda não sabia o que iria acontecer comigo.
O pai entrava e saía da sala, chorando, até que a mãe o botou para fora.
A menininha a princípio estava quieta, porém com os olhos arregalados. Quando me viu aproximar começou a se agitar, trazendo dificuldade para a mãe contê-la. A madrinha, então, tomou a frente e conteve a menina com palavras ao mesmo tempo firmes e carinhosas.
Postei-me na extremidade da mesa cirúrgica, por trás da paciente, e iniciei o procedimento. Como a menininha se debatia muito a mãe retornou para ajudar a contê-la.
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De repente... ACONTECEU: O ELÁSTICO DA CINTURA DA MINHA CONFORTÁVEL CALÇA DE HELANCA PARTIU-SE! Fiquei pálido: a calça começou a arriar!
Aí quem começou a ficar aflito fui eu: a menina chorava, se agitava, e a calça caía. Apertando os joelhos, segurei-a entre as pernas, interrompendo a queda. Mas rapidamente dei o pontinho na testa da menininha, encerrando o caso.
A mãe tomou a bichinha nos braços, chorando, e levou-a para fora. O pai e o padrinho entraram para me agradecer, junto com a madrinha. E foram embora.
E eu sem poder sair de trás da mesa cirúrgica, os joelhos apertados por trás do capote, estendendo o braço para receber os efusivos apertos de mão...!
Lá fora o sol encerrou o seu plantão antes que eu terminasse o meu.