Mais um livro de contos de Aldo Lopes de Araújo dado à luz. Desta vez, com um título que remete à velha estória de João e Maria: Azei...

Aldo Lopes e o Brasil profundo de seus contos

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Mais um livro de contos de Aldo Lopes de Araújo dado à luz. Desta vez, com um título que remete à velha estória de João e Maria: Azeite, senhora avó!, Editora Caule de Papiro, Natal, 2025. Um título extraído do primeiro conto, intitulado Sapatos de vaga-lumes. Os três outros são Como uma horda de selvagens a nos atacar, Cão Maior e A passagem do cometa.

O posfácio da professora e escritora Maria das Neves Franca dispensa quaisquer outras considerações analíticas sobre a obra. Ali está dito praticamente tudo que interessa sobre os contos e o autor. Uma exegese sem pretensões de crítica acadêmica, sendo mais a emocionada expressão de uma leitora sensível e culta que uma decifração profissional tipo autópsia literária. Nevita captou o dito e o não dito, e assim disse tudo – ou quase.

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Nevita Franca e Aldo Lopes
Isto porque, como acredito, sempre resta algo a ser observado sobre qualquer coisa, principalmente a respeito desses caleidoscópios criativos que são as obras de arte. Os ângulos e os pontos de vista nunca se exaurem, tamanha é a riqueza de aspectos que se mostram à apreciação de nosso olhar. Por esta razão, é que me atrevo a registrar, sumariamente, algumas poucas particularidades que me chamaram a atenção na mais recente produção do autor.

Começo pela linguagem verbal. O vocabulário sertanejo que é uma das marcas do contista de Princesa Isabel e que já vem de obras anteriores, como uma assinatura literária que o distingue entre os autores paraibanos. Ele domina muito bem o correto uso de palavras e expressões tão nossas, tão nordestinas, assim como Guimarães Rosa dominou o palavreado do sertão mineiro, essa fala do povo tão autêntica, tão errada e tão certa, como disse Manuel Bandeira, uma fala que receio venha a se extinguir num prazo não muito longo, ao sabor da inevitável sucessão das gerações, sendo as mais recentes, mais urbanas que rurais, pouco afeitas às
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Guimarães Rosa
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Manuel Bandeira
tradições dos pais e avós e por demais receptivas ao linguajar sudestino transmitido pela televisão e redes sociais. Quem mais senão Aldo para resgatar coisas como “por mor de raiva e vingança”, “Botei isso na ideia”, “e a madeira cantava no espinhaço”, “sem falar nos catiripapos e nos murros que dava em nós”, “a estrutura de aço espetada na cocuruta do serrote”, “brechando nos buracos das fechaduras”, “Após alguns minutos de andada”, “a gente bebia garapa até o couro do bucho virar zabumba” , “tibungar a vasilha tantas vezes desejasse”, “muganga do outro mundo” e “sem empalho pelo caminho”? Quem é de fora não compreende quase nada disso, precisando, quem sabe, de um dicionário de nordestinês para traduzir. Mas no texto de Aldo tudo fica claro para quem lê, porque inserido coerentemente num contexto narrativo que fala por si só. Não há caricatura do matuto e sim oportuna e cabível reprodução de sua fala ancestral, ainda sobrevivente, acredito, em alguns lugares bem interioranos da região. Se não são fruto da memória do autor, não duvido de que ele a ouça vez em quando na altiva república de Princesa.

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Aldo Lopes Antônio David Diniz
Outra característica autoral de Aldo foi bem registrada pela professora Nevita, quando escreve: “Elementos sobrenaturais são comuns em suas narrativas, despertando o medo e o mistério, desafiando as fronteiras entre a realidade e o fantástico”. Não poderia dizer melhor. De fato, o autor com frequência abre as portas de seus textos a tais elementos; e não o faz de maneira forçada, apenas para efeito narrativo. Suas “assombrações” são perfeitamente críveis, principalmente para quem sabe o quanto essas estórias extraordinárias povoavam o imaginário popular de antigamente, não só nos sertões, mas também no litoral, estórias que frequentemente eram contadas à noite pelas empregadas da casa, pelas babás e, mais para trás, pelas escravas ou ex-escravas. Lembro-me que, criança, muitas noites fui dormir com medo de “alma”, após ouvir esses relatos que nem sempre eram apenas invenção. Gilberto Freyre, antropólogo sempre atento, escreveu um livro inteiro sobre esses fenômenos: Assombrações do Recife velho. E se você, leitor, como eu, acredita em mistérios, em metafísica, em milagres, em transcendência e em tudo que nossa parca razão não pode explicar, então haverá de achar muito natural o sobrenatural que, de leve, aparece nas estórias de Aldo. E olhe que esse eventual elemento fantástico até seria dispensável nas narrativas, tão fortes elas já são por si sós, principalmente para quem vive distante da ambiência campesina em que as tramas do livro acontecem.

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GD'Art
Nos contos dessa obra recente de Aldo Lopes, observei algumas presenças que se impõem ao leitor. Primeiro, a escuridão. Há muita escuridão nas narrativas. Escuridão a céu aberto, no campo, e escuridão doméstica, esta por falta de energia elétrica, o que obriga a se recorrer à lamparina, ao candeeiro, tão rurais ainda hoje. Essa escuridão, que não é sem propósito, já que em literatura nada é sem razão, é como um pano de fundo natural e justificado para estórias onde o sofrimento ocupa mais espaço que a felicidade. Um sofrimento que tanto pode ser causado pela brutalidade paterna como pela maldade/indiferença avoenga, sem falar na rusticidade da própria vida no Sarafim, aquela “terra do fim do mundo”, como corretamente a chama o narrador, sem água, sem comida, sem o mínimo conforto e sem qualquer afeto. Em tal lugar tão rude, compreende-se que o sobrenatural talvez seja uma necessidade (uma fuga) dos personagens para compensá-los de uma realidade insuportável.

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Depois, o lugar onde as tramas se passam: o Sarafim e suas redondezas. Um locus não muito determinado geograficamente, mas que se percebe pertencer a um mundo rural primitivo, o Brasil profundo do título, onde a mínima modernidade não chegou, daí, entre outras coisas, o vocabulário do narrador, expressão oral de ancestralidades sócio-culturais. Um lugar isolado, onde sobrevivem pessoas e bichos como que fora do mundo. Esse isolamento, que sente-se e pressente-se, é também um personagem dos contos, tal como a escuridão. Os curiosos nomes dos sítios e das propriedades próximos ao Sarafim, lembraram-me os nomes evocados por Drummond em Boitempo, suas memórias poéticas da Itabira do Mato Dentro de sua infância (o Cutucum, os Coroados, as matas do Carmo etc.). Existirão, fora da imaginação, ainda lugares como o Sarafim neste Brasil imenso?

E costurando tudo a agulha afiada de um autor que domina o seu ofício plenamente, tal como um alfaiate das antigas. E por isso, não é outra coisa a não ser literatura das boas o que faz Aldo Lopes em seus contos. Há quem diga que o conto é mais difícil que o romance, a despeito de ser mais curto. Não duvido. Mas o fato é que nada é fácil no universo da criação artística.

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Aldo Lopes GD'Art
As lembranças da Princesa Isabel de seus tempos de menino certamente ajudam Aldo na construção ficcional de sua obra. Todo aquele concreto universo cultural povoado de curiosos personagens e pitorescas estórias. E é bom que seja assim, pois esse alicerce memorialístico mistura à fantasia uma pitada de verdade na sua ficção.

Com mais este livro, Aldo Lopes de Araújo se confirma como um dos grandes nomes das letras paraibanas e brasileiras. E ninguém de juízo há de discordar.

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  1. Obrigado, Raniery.

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  2. Obrigado, Frutuoso.

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  3. Obrigado, Lúcia.

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  4. Esse Gil Messias é gigantesco! Se o texto, no dizer de Umberto Eco, é uma máquina preguiçosa que espera o trabalho do leitor para poder existir de modo pleno, agora meu livro está completo. Nesse momento fecha-se um ciclo. Até a escuridão ambiental -- predominante nas narrativas e propositalmente concebida com esse fim -- foi interpretada como um personagem. Portanto, nada escapou do olho sagaz, atento e perscrutador do erudito e sábio Francisco Gil Messias.

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  5. Obrigado, Aldo.

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