Em 2010, no Centro Cultural Joacil de Brito Pereira, fizemos uma exposição de 20 mini telas de pintura em tinta acrílica, representando janelas de vários locais, daí o título – Janelas do Mundo. Elas vieram acompanhadas de cartões postais com pequenos poemas no verso dos cartões, foi um trabalho bonito do fotógrafo Adriano Franco. O artista plástico Miguel Bertollo participou deste trabalho pintando 10 janelinhas e organizando a exposição. Pintei 10. Vendemos alguns conjuntos e presenteamos pessoas amigas com esse mimo.
Adriano Franco
A professora Vitória Lima nos convidou para fazer uma exposição na UEPB, na Semana de Letras, viajamos com esses cartões para Campina Grande, não levamos as mini telas, só os cartões, e houve boa receptividade por parte dos alunos e dos professores durante a exposição.
Uma das pessoas que escolhemos para presentear com os cartões poéticos foi o professor de Literatura Brasileira da UFAL, Roberto Sarmento de Lima, meu ex-aluno de Teoria Literária na Universidade Federal de Alagoas, excelente aluno e hoje professor titular daquela universidade.
Há poucos dias, revendo antigos papéis, correspondências, artigos de jornais, tudo coisas de antigamente, deparei-me com uma bela carta de Roberto agradecendo o presente. É tão bonita e sensível que resolvi trazê-la ao público, naturalmente com a aquiescência do meu ex-aluno. Eis a íntegra da carta:
Neide, você é mesmo surpreendente. Também pinta? Gostei muito da imagem da janela deteriorada, da parede descascada, dos postigos dilacerados e do tom amarelo (em vidros, refletindo-se neles?), como uma nesga do tempo.
O tom sépia-claro na parede e as pinceladas lhe dão sombra, mais o dourado, refletido (do sol?), parecem apropriados à representação do Nordeste. Têm algo, enfim, da “visão alucinatória” de Augusto dos Anjos, que transfundiu tão bem em arte o arcabouço de certa tortura mental. Parece que o ato crítico em você encontra unidade no pequeno quadro que remonta aos velhos casarões e solares nordestinos.
O amarelo dominante da janela me fez lembrar uma explicação que ouvi quando estive em Amarantes, pequena cidade junto ao Porto. Eu observava um velho casarão amarelo, e me disseram que lá em Portugal, desde muito tempo, pintavam de amarelo casas de saúde para loucos. Agora, vendo o tom de amarelo que você deu à janela, lembrei-me tanto do sol luminoso, espécie de ferro em brasa, quando dessa marca simbólica da loucura, no velho Portugal.
Neide Medeiros
Algo inconsciente se espalha na sua pintura; um rastro de herança portuguesa mesclado à luz quente do Brasil. Algo que, por fim, se sintetiza nestes versos de Augusto dos Anjos que você colheu:
“Às vezes basta uma flor
Para repentinamente
Assim como um ferro quente
Eternizar nossa dor”
Não sei, mas sempre acho que crítica e criação andam juntas. O olhar penetrante não deixa escapar seu destino de juntar uma coisa à outra.
Abraço
Roberto
As reflexões de Roberto sobre a pintura da janela do bairro Varadouro associada à poesia de Augusto dos Anjos me
Neide Medeiros / GD'Art
levaram ao encontro da psicologia de Jung que distingue dois processos diferentes na criação da obra literária: o psicológico e o visionário.
As obras que resultam da primeira maneira de criar são facilmente compreensíveis pelos leitores. Os temas inerentes a estas obras são bem conhecidos – as paixões, os sofrimentos do homem e seus feitos. Estão incluídos nesse rol o romance de amor, o romance social, a poesia lírica e a poesia épica, as comédias e as tragédias.
No plano das obras visionárias, elas causam estranheza. O criador de imagens visionárias não domina o ímpeto da inspiração, a obra é maior do que o criador. Nise da Silveira, estudiosa da psicologia junguiana, afirma que “sua essência nos é estranha e parece provir de distantes planos da natureza, das profundezas de outras eras ou de mundos de sombra ou de luz existentes para além do humano”. Tudo converge para a poesia de Augusto dos Anjos, ela é múltipla, esquiva, parece vir de outras eras, como está bem explícito no poema Monólogo de uma sombra:
Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Neide Medeiros / GD'Art
Nunca pensei que a despretensiosa pintura da janela do Varadouro podia ser associada à poesia de Augusto dos Anjos, somente um crítico observador, como sempre foi o querido aluno, descobriu essa afinidade. A poesia anjiana proporciona inúmeras leituras, é de grande riqueza vocabular, estética, filosófica. É uma poesia que transporta os leitores para outras linguagens.
Gilberto Freyre, em primoroso estudo sobre a poesia de Augusto dos Anjos, afirma que foi um poeta mais pelos olhos do que pelos ouvidos e compara seus poemas às “decomposições dos expressionistas alemães”.
Ronaldo Cunha Lima, em entrevista concedida à equipe do projeto “Redescobrindo as trilhas de Augusto dos Anjos”, ressaltou à musicalidade inerente à poesia do poeta do EU e considera que “ele dá melodia, sonoridade, mesmo a termos difíceis, vocábulos esdrúxulos”.
Neide Medeiros / GD'Art
O poeta Ferreira Gullar, em depoimento à professora Socorro Aragão, ressaltou o aspecto teatral da poesia anjiana e diz: “é uma poesia dramática, influenciada pela linguagem teatral” , talvez consequência de muitas leituras de Shakespeare. Gullar, cita, entre outros poemas teatrais de Augusto, Monólogo de uma sombra e Versos íntimos.
Augusto dos Anjos sempre surpreende o leitor, é um poeta múltiplo, singular, universal. A imortalidade de sua poesia atravessou o século XX, perdura no século XXI, certamente permanecerá por muito tempo.