Um trecho da obra A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, descreve a condição vital de Macabéa, uma datilógrafa nordestina que vive ...

Como transformar treva em luz?

Um trecho da obra A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, descreve a condição vital de Macabéa, uma datilógrafa nordestina que vive no Rio de Janeiro:

“Ela não percebia nada de delicado. Tudo nela era pobre e áspero. Não sabia que estava vivendo. Talvez porque viver, para ela, fosse um hábito. Era incapaz de se enfeitar por dentro. (...) A moça não sabia que a vida é feita de delicadezas. Não desconfiava sequer de que existem assuntos sutis, porque o seu cotidiano brutal a impedia de pensar.”
Marcélia Cartaxo Imdb
Clarice, através da voz do narrador Rodrigo S. M., descreve a pobreza material da personagem não apenas como a falta de bens, mas como uma forma de cerco espiritual. A alma, sufocada pela necessidade, não encontra espaço para florescer.

Macabéa vive sem suspeitar da complexidade do mundo por causa de sua rotina de aspereza e brutalidade, numa existência reduzida ao instinto de sobrevivência. Clarice, porém, pressente nela uma espécie de santidade inconsciente, uma pureza que brota da dor.

A moça que não enxergava sutilezas, que não tinha consciência da vida, paradoxalmente, vivia em estado de inocência radical, como se sua ignorância fosse uma forma de graça.

Classic Literature
Dostoiévski, em obras como Crime e Castigo, Os Irmãos Karamázov e Memórias do Subsolo, mostra que o sofrimento pode degradar ou redimir.

Quando o ser humano é esmagado pela dor, pela humilhação ou pela injustiça sem encontrar um sentido espiritual para o que vive, torna-se refém da própria ferida e tende a reproduzir o mal que recebeu. É o que acontece, por exemplo, com Raskólnikov, que comete um crime evocando uma “justiça superior”, mas, na verdade, sendo movido por um ressentimento profundo contra a miséria e a desigualdade que o cercam.

Quem sofre sem esperança e sem fé corre o risco de se tornar cruel, não por natureza, mas porque o sofrimento não elaborado se transforma em revolta, ódio e desespero. Por isso, a transcendência do sofrimento, através da compreensão, da compaixão e da humildade, é o único caminho para quebrar esse ciclo.

Aleksandr Kosnichyov
Em Os Irmãos Karamázov, Aliócha é o exemplo desse amor que transforma a dor: ele sofre, mas não transmite o sofrimento, convertendo-o em ternura e perdão. O oposto se vê em Ivan Karamázov, que também sofre, mas se rebela violentamente contra Deus e contra a injustiça humana. Seu sofrimento, sem transcendência, o conduz à loucura moral.

Em Ivan, o Imbecil, escrito por Tolstói em 1886, o personagem Ivan é chamado de “imbecil” porque é simples, inocente, não se aproveita de ninguém e vive em comunhão com a natureza e com Deus. Ivan sofre, mas não devolve seu sofrimento ao mundo. Ele é humilhado, enganado e explorado, mas responde sempre com bondade e silêncio. Em vez de transformar a dor em ódio, transforma-a em serenidade, não permitindo que o mal o contamine.

Tal qual Macabéa, o Ivan de Tolstói rompe o ciclo da crueldade. Sofre, mas não faz sofrer.

Sébastien Bloesch
A verdadeira liberdade humana consiste em não devolver o mal recebido, em interromper a corrente da dor.

O sofrimento, por si só, não purifica ninguém. A dor que nos faz transcender é aquela metabolizada pela consciência de que devemos ser estações terminais do mal.

A natureza dá o exemplo: o sândalo perfuma o machado que o fere, e a cana-de-açúcar, mesmo depois de passar por grandes apertos, produz o açúcar que adoça a vida, em vez de amargá-la ainda mais.

Sofrer sem devolver a dor, transformar o que nos fere em algo que conforta, é fazer do próprio coração um refúgio de paz para quem passa por nós.

A treva vira luz quando optamos por abençoar, e não amaldiçoar, mesmo em meio à escuridão.

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  1. Ótimo texto, parabéns pela sensibilidade e elaboração de paralelos certeiros na nossa literatura e na mundial. De certo, me interessei para ler as obras. abs.

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