“Let the day perish wherein I was born.” (“Pereça o dia em que nasci.”) . Livro de Jó. O que resta quando o sagrado silencia e as e...

Judas, o Obscuro

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“Let the day perish wherein I was born.” (“Pereça o dia em que nasci.”).
Livro de Jó.

O que resta quando o sagrado silencia e as expectativas são destruídas, uma a uma, pela mão pesada do mundo e das circunstâncias? Resta o homem. Nu, desprotegido, porém consciente.

Não mais sustentado por dogmas, avesso à antiga ingenuidade, ali está ele, solitário. Suas orações e pedidos desesperados não encontraram resposta, suas certezas colapsaram. Tudo derreteu. Entre a razão e o desespero, escolheu um caminho em que a esperança é uma forma de coragem. Mesmo derrotado, construiu para si mesmo um sentido para a vida. Eis o seu gesto de resistência íntima contra a indiferença e a dureza das coisas.

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Alfred Philippe Roll
Este homem – a exemplo de seus semelhantes – precisou de sentido, embora vivesse em um mundo que nunca o ofereceu. Ele já pôs suas esperanças em algo invisível, que não respondeu às suas súplicas. Já chorou, desamparado e frustrado, diante do naufrágio de todos os ideais. Agora está oco. O vazio pode ser prenúncio da ruína para muitos, mas não para este homem. Para ele, a ausência divina não é vista como castigo ou abandono, mas um convite. Esse órfão de transcendência acolhe o chamado e descobre em si a centelha do sagrado. Curiosamente, ela não vem do alto, mas do seu próprio olhar, que se volta para outro ser humano carregado de compreensão. O que antes era esperança no espírito agora se converte em ética no corpo. Sagrado é ser humano, mortal, obscuro, mas vestido de compaixão perante a grande teia de sofrimento que se espalha por toda parte.

No peito desse homem subsiste a dor, pois nada fere tanto quanto perceber que a justiça do universo é apenas uma metáfora da nossa eterna necessidade de ordem e sentido. A vida acontece sem lógica, justiça, sentido e explicações. Crua. A cada perda, falha, morte e sonho desfeito, este homem compreendeu que não há tribunal invisível julgando o caos; e suas tragédias pessoais não são punições metafísicas. Mas poucos humanos têm a coragem de encarar esse fato.

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GD'Art
E há a existência em si. Forças cegas, engrenagens sociais e impulsos humanos se conjugam contra ele e seu coração que pulsa fora do compasso.

Perante os abismos que se abriram sob seus pés havia duas respostas: endurecer ou compreender. A primeira era tentadora e amarga; a segunda, o início da sabedoria. Compreender é perdoar o mundo? Não, não para ele. É apenas recusar o copo de fel do cinismo. É reconhecer que, mesmo no fim da estrada espinhosa, ainda é possível dizer não ao amargor.

Este homem carregou a dignidade secreta dos que, sem esperar coisa alguma, continuaram a sonhar. Ele sobreviveu à perda da fé, descobrindo em si a serenidade de quem já não exige sentido, mas faz do próprio coração o único abrigo seguro. A sua existência, despojada de promessas e teodiceias, tornou-se apenas experiência compreensiva.

À hora da sua morte veio, em seu quarto miserável, enquanto ouvia a cidade que amou celebrar os jovens que alcançaram o sonho que ele jamais pôde ver realizado
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em si. Lá fora, sinos soavam, procissões avançavam com tochas e hinos. Ele tentou cantar junto. A voz falhou e ele estendeu as mãos em direção aos sons festivos. E esse gesto mínimo, de quem ainda quer unir sua voz à música da coletividade, foi o momento mais alto de sua existência. Naquele instante final, o deserdado do mundo tentou, mais uma vez, participar do coro da humanidade. E mais uma vez a comunhão sonhada ficou sem resposta.

Ele poderia blasfemar, culpar os homens, amaldiçoar as instituições, mas preferiu ceder, voltando calmamente ao pó. Sem heroísmo, perdão ou fé, mergulhado em sua paz trágica. Agonia sem revolta, exausta tranquilidade. No seu corpo agonizante restava apenas a verdade de um homem que tentou amar o mundo e não foi correspondido. Um Cristo às avessas, que mesmo sem o suporte da fé ainda ama seus verdugos. Seu suspiro final é o murmúrio dos que ainda acreditam, não em milagres, mas na beleza de continuar. E nisso se assenta a sua grandeza.

Este homem da história é Judas Fawley, o personagem principal do romance Judas, o Obscuro (Jude, the Obscure), de Thomas Hardy.

*Leia o texto original e extensões referenciais complementares em soniazaghetto.com

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