Eu iria encontrar Aristides anos depois. E muito diferente do aluno magérrimo, de vasta cabeleira algo rebelde, ar sonhador e muito in...

O homem que falava com Deus

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Eu iria encontrar Aristides anos depois. E muito diferente do aluno magérrimo, de vasta cabeleira algo rebelde, ar sonhador e muito instigante, que encantava a todos com o seu imenso conhecimento nas salas do Colégio Estadual. Aristides engordou muito, ficou um tanto calvo e não tinha mais aquela vivacidade que intimidava os professores. Não parecia mais com o jovem que todos imaginávamos que seria um gênio da literatura, quando seus flamejantes poemas se tornaram muito populares nos murais da escola.

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Robert Walser Stiftung Bern
Mas, para minha surpresa, Aristides ainda mantinha a mesma obsessão por um escritor que nós não tínhamos lido e sequer conhecíamos: o suíço Robert Walser, aquele que morreu no sanatório, como ele sempre dizia, onde se internou por “vontade própria para se curar da loucura que ele próprio criou como escritor”. E Walser foi a razão para procurar Aristides, quando precisei escrever um texto sobre os últimos escritos do escritor suíço, em letras diminutas, de um milímetro, e difíceis de decifrar.

Foi um encontro estranho, apesar das muitas informações que ele, com muito gosto, me passou. Eu esperava encontrar o Aristides rebelde e me deparei com um funcionário público dos Correios, trabalhando em funções burocráticas e apenas esperando pela aposentadoria, quando pretendia ir à Suíça conhecer o sanatório de Herisau, ainda que fosse a “última coisa a fazer na Terra”. Aristides não escrevia mais. “Um burocrata já é muito, imagine um burocrata louco”, falou com certa melancolia.

Sua esposa, uma senhora vivaz, de saias longas, olhos muito escuros por trás de uns óculos de aros redondos, volta e meia vinha até a sala para saber se Aristides precisava de alguma coisa. E, finalmente, trouxe uma bandeja com café e alguns biscoitos, “produção da casa”. Ele bebeu com aquele gesto que tanto me incomodava — o dedo mindinho erguido para cima e goles barulhentos. Comeu com gosto também, sacudindo os farelos na minha direção. Aristides era um homem descuidado.

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GD'Art
Minha maior surpresa ocorreu uma semana depois, quando retornei à residência de Aristides com o trabalho pronto, para que ele pudesse ler e eventualmente sugerir modificações — afinal, ele era o especialista em Walser. Poderia ter escapado algum detalhe. Sua esposa, sempre tão solícita, me recebeu de pé na sala e foi logo dizendo que o marido não estava. Baixou os olhos, segurou um pouco o tecido da saia sempre longa e balbuciou que ele tinha sido internado num sanatório. Sanatório? Como assim, sanatório?

“Ele já andava muito estranho nos últimos tempos. Deu pra sair do trabalho todo dia às seis horas da tarde, dizendo que ia falar com Deus, veja o senhor! E desaparecia, sumia. A gente começou a desconfiar que ele devia estar com outra mulher, essas coisas. Mas, não. O chefe dele descobriu que ele subia no prédio dos Correios, ia pro telhado e ficava lá conversando sozinho. Daí o médico achou melhor a gente internar ele por uns dias, até melhorar dos nervos. O senhor aceita um café?” Não, obrigado — e saí desolado.

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Tentei visitar Aristides na clínica, mas havia uma proibição do médico. O tempo passou, tive que apresentar meu trabalho, esqueci um tanto de Aristides, até que, naquele dia, ao receber a nota de avaliação, decidi ir pessoalmente agradecer ao amigo pela ajuda, que realmente foi imprescindível. Além do mais, foi uma maravilha saber tanto sobre aquele estranho escritor, que escrevia tão bem e tinha frequentes ataques de alucinações. Seu rosto, diziam, tinha o traço dos ansiosos.

Ah, eu finalmente li um livro de Walser: Jakob von Gunten. Achei a história da escola de mordomos surrealista, mas genial. Tipo um Kafka, mas diferente. Imagine aí uma escola para pessoas vocacionadas apenas a servir às outras. Instituto Benjamenta. Um diário sensacional, que não consegui parar de ler. Fiquei curioso: Aristides teria se identificado com Jakob? Seria ele também vocacionado apenas para servir às outras pessoas, ou seria exatamente o contrário? Sua esposa era muito servil, eu vi.

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Bem, retornei algum tempo depois para saber notícias do meu amigo. Aumentou muito a curiosidade sobre sua obsessão por um Walser que eu começara a conhecer. Naquela noite, sua esposa novamente me recebeu de pé na sala e foi logo dizendo que o marido não estava. Baixou os olhos, segurou um pouco o tecido da saia sempre longa e balbuciou que ele tinha sido internado num sanatório. Exatamente como da outra vez. Sanatório? Como assim, sanatório, de novo? “Ele voltou a andar muito estranho nos últimos tempos. Dizia que estava feliz e tinha se livrado de toda a carga de uma vida inteira, porque Deus não existia. Dizia que a vida era um mundo de possibilidades, o senhor acredita? Deu pra sair toda noite, creio que andou arranjando outras mulheres, até que o chefe dele veio aqui em casa dizer que precisávamos tomar uma atitude, porque Aristides não queria mais trabalhar, só vagabundar e viver a vida. Daí o médico decidiu interná-lo por uns dias, até ele melhorar dos nervos. O senhor aceita um café?” Não, obrigado — e saí, mais uma vez, muito desolado.

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Robert Walser Stiftung Bern
Por aqueles tempos, li Absolutamente nada e, assim meio de repente, Robert Walser tornou-se uma obsessão para mim. Agravou-se quando conheci as suas famosas escritas minúsculas, que marcaram os últimos tempos de sua obra. Encantei-me com os microgramas — letras de um milímetro —, visíveis apenas com lupas, células quase invisíveis a olho nu. Um cientista das letras. Por alguma razão, passei a imaginar que Walser nunca existiu, que tudo sobre ele era apenas ficção, inclusive a sua obra.

Ele agora queria ir a Herisau conhecer o sanatório onde, certo dia, Walser internou-se voluntariamente — não para escrever, como ele dizia, mas para exercitar o ofício de ser louco. Queria ir ao local onde, precisamente, ele tombou com um ataque cardíaco sobre a neve e ali mesmo ficou, mimetizou-se com o frio. Queria deitar-me ali, saber o que ele sentiu momentos antes de finalmente morrer e levar consigo o segredo de tanta amargura. Queria saber, Aristides, o que Walser causou a você — e também a mim.

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Semanas ou, sei lá, meses se passaram. Ou poderiam ter sido anos depois. Voltei para saber de Aristides. Mas desta vez foi diferente. Sua esposa não me recebeu de pé na sala. Aristides estava em casa. Tinha retornado do sanatório e parecia ter superado os problemas dos últimos tempos. Tinha o rosto ainda mais pálido, macilento e, durante nossa conversa, alternava momentos de extrema tristeza com algo da antiga vivacidade da escola estadual. Falamos com gosto sobre Walser; ele ficou feliz com o sucesso do meu texto. E, novamente, recitava de cor longos trechos de obras do escritor suíço, como fazia antes na escola.

Sua esposa, ainda uma senhora muito vivaz, com suas saias longas e olhos muito escuros por trás de uns óculos de aros redondos, repetiu o ritual e volta e meia vinha até a sala para saber se Aristides precisava de alguma coisa. Então, finalmente, trouxe uma bandeja com um delicioso café e alguns biscoitinhos “saídos do forno”. Nós bebemos o café com muito gosto — ele com o dedo mindinho erguido para cima e goles barulhentos — e eu, incomodado.

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Comemos com gosto também, ele sacudindo os farelos na minha direção. Aristides era o mesmo Aristides funcionário dos Correios. Conversamos ainda muito sobre Walser; até nos divertimos — foi agradável —, até que, num certo momento em que sua esposa não estava por perto, Aristides se aproximou de mim, e pude sentir seu hálito forte de café e gastrite:

“Olha só, meu amigo, se Deus não existe, com quem era que eu falava todas aquelas tardes?”

E eu lá sabia.

Muita tristeza veio no dia seguinte, com o noticiário do jornal. Aristides tinha pulado para a morte do último andar do prédio da Previdência Social. O repórter entrevistou sua esposa que, entre um suspiro e outro, disse:

“E ele acordou tão feliz. Disse até que estava tão feliz que seria capaz de voar como um anjo...”

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