Tout travaille à tout – Tudo trabalha para tudo – é o que afirma Victor Hugo, em Os miseráveis (Parte IV, Livro 3, Capítulo 3, p. 70...

Tudo trabalha para tudo

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Tout travaille à toutTudo trabalha para tudo – é o que afirma Victor Hugo, em Os miseráveis (Parte IV, Livro 3, Capítulo 3, p. 701), em um capítulo, cujo título em latim, “Foliis ac frondibus”, recupera um verso de Lucrécio, do Livro V, verso 971, do poema De rerum natura.

De rerum natura é um poema do século I a. C., que marca a transição entre o latim arcaico e o latim clássico. Poema filosófico e didático, inspirado em Epicuro (século III a. C.), em cujo Livro V (ele é composto de seis Livros), Lucrécio
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Tito Lucrécio Caro (c.99 a.C – c.55 a.C), poeta e filósofo romano, autor de De rerum natura. ▪ Fonte: Wikimedia
retoma a origem dos seres humanos, a exemplo de Hesíodo (Trabalhos e dias, século VIII a. C.) e de Ovídio (Metamorfoses, Livro I, século I a. C./I d. C.).

Ao falar dos primeiros humanos, Lucrécio os descreve como duros, por terem saído da terra, vivendo de modo errante e semelhante a animais. Não conheciam o cultivo da terra, nem o plantio das sementes. A natureza lhes concedia todo o necessário para o seu contentamento. A maior parte de sua alimentação era proveniente do carvalho, naqueles tempos remotos com grande produção e com glandes maiores. Embora grosseira, no princípio, a comida era mais do que suficiente aos míseros mortais (miseris mortalibus ampla, v. 944).

Os humanos aplacavam a sua sede, nas fontes e cursos d’água, assim como as bestas; não conheciam o fogo com instrumento modelador dos objetos, nem utilizavam peles de animais para se vestir, por não temer o frio ou o calor. Moravam nos bosques, nas cavernas das montanhas e nas florestas, protegendo seus membros rudes do vento cortante e das chuvas, com os galhos das árvores. Desconheciam o bem comum, não havia costumes ou leis para reger as relações entre eles, usando a força como arma de sobrevivência. O amor, simbolizado por
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Vênus, juntava os amantes em cópula, nas selvas (et Venus in siluis iungebat corpora amantum, v. 962): as mulheres cediam a seus próprios desejos ou à violência brutal dos homens ou, ainda, a algum ganho alimentar como as glandes dos carvalhos, as nêsperas e peras. À noite, estendiam por terra, nus, os seus membros selvagens, cobrindo-se de folhas e galhos (circum se foliis ac frondibus, v. 971).

Jean Valjean, após a investigação de Marius, muda-se para a rua Plumet, deixando o jovem perdido. Fulminado pelo olhar de Cosette, ele os seguira até a rua de l’Ouest, para tentar um contato com a amada. A nova casa da rua Plumet, que fora outrora bem cuidada, encontrava-se com o aspecto de abandonada, desprovida de qualquer trabalho de jardinagem, entregue à ação da natureza (Le jardinage était parti, et la nature était revenue, p. 700), o que justifica o título do capítulo em latim, em consonância com o predominante mundo natural, descrito por Lucrécio, com relação ao homem recém-surgido na terra (p. 700):

“Nada nesse jardim contrariava o esforço sagrado das coisas, em direção à vida.”
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A definição do natural e selvagem, fervilhando, porém, de vida, não poderia ser melhor (p. 700):

“Este jardim não era mais um jardim, era uma moita colossal; isto é, qualquer coisa que é impenetrável como uma floresta, populoso como uma cidade, tremulante como um ninho, sombrio como uma catedral, oloroso como um buquê, solitário como um túmulo, vivo como uma multidão.”

O pouco ou quase nenhum cuidado dispensado ao jardim ajudava no propósito de Jean Valjean, cuja discrição se impunha, de modo a não chamar a atenção, sobretudo de Javert. À proximidade de tudo, a rua Plumet, no entanto, era um deserto, com o seu jardim agreste escondendo a casa e os seus habitantes, “tão cheio de rudeza e de majestade, quanto uma floresta virgem do Novo Mundo” (p. 701).

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A pequenez do jardim, cheio de rudeza e de vida, conduz Victor Hugo a refletir sobre a harmonia de todas as coisas do universo, porque “tudo trabalha para tudo”; tudo é vinculado, nada sendo “infinitamente grande” ou “infinitamente pequeno”, “tudo está em equilíbrio na necessidade; apavorante visão para o espírito”, com a percepção de que “onde termina o telescópio, o microscópio começa” (p. 702).

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Nessa relação infinita e renovada entre tudo o que existe no Universo, em que “o fenômeno está em perpétuo dobrar-se sobre si mesmo”, a existência é uma “enorme engrenagem, cujo primeiro motor é o mosquito e cuja última roda é o zodíaco” (p. 702). Como tudo se liga, o jardim é a continuação da discrição e da proteção do convento do Petit-Picpus, para o misto de podador e jardineiro, o perfil duplo de Jean Valjean/Ultime Fauchelevant; assim como para Cosette, porém com liberdade (p. 704):

“Um jardim fechado, mas uma natureza rude, rica, voluptuosa e odorante; os mesmos sonhos do convento, mas com rapazes entrevistos; uma grade, mas dando para a rua.”

Dois mundos que se ligam: a limitação exígua do convento, com a possibilidade do mundo ilimitado de Paris; o jardim selvagem, numa rua deserta, à proximidade do bulício da sofisticada rue de Varennes e da imponência, descortinada de longe, da cúpula dos Inválidos.

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Não se esgota, no entanto, aí, a pequena dissertação de Vitor Hugo sobre a grande engrenagem que constitui o Universo, com cada coisa contando para sua perfeita movimentação: do minúsculo mosquito à imensidão zodiacal das constelações girando em torno da Galáxia (p. 702):

“A germinação se torna complexa com a eclosão de um meteoro e com a bicada de uma andorinha quebrando o ovo, e coloca lado a lado, o nascimento de um verme da terra com o advento de Sócrates.”

Victor Hugo vai mais além. Para o leitor acostumado com o seu estilo, o fato de o escritor fazer esta afirmação incisiva, “tudo trabalha para tudo”, remete para um dos aspectos mais importantes da sua escrita: abrir espaços, aparentemente digressivos, no seu romance, para a discussão histórica, jurídica, religiosa, política, sociológica, antropológica, linguística, sem contar com as inúmeras achegas mitológicas,
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Victor Hugo (1802—1885), romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista e estadista francês, autor de Os miseráveis. ▪ Arte: Nuestro Siglo, 1883
cujos fios, quando devidamente entrelaçados, no caso de Os miseráveis, compõem uma discussão maior, sobre a injustiça, qualquer que seja ela, e a falta de acesso universal da população, ao bem maior da humanidade – a Educação –, fatores que, se não são os únicos responsáveis, inegavelmente promovem a miséria.

Assim é que, o Livro III da Primeira parte, No ano de 1817, inicia com uma página desestimulante para o leitor em busca de historinhas e de tramas rocambolescas: o Capítulo 1, “O ano de 1817”. A intenção do referido capítulo é situar o leitor no contexto político da França, durante a retomada da Restauração dos Bourbon (1815-1832), a partir da derrota de Napoleão Bonaparte, em Waterloo (1815). Sua continuidade se encontra no Livro I, Waterloo, da Segunda parte, Cosette, sobre a famosa batalha que mudou os destinos da Europa e do mundo. É um novo impacto para o leitor, que quer saber do destino de Jean Valjean, depois de fugir de Javert, após o caso Champmathieu e a morte de Fantine (Parte I, Livros 7 e 8), que, para isso, terá de ultrapassar os 19 capítulos que dão conta da famosa batalha.

Tendo a Revolução Francesa e a ascensão napoleônica como pano de fundo, a discussão política, em Os miseráveis, se abre, muitas vezes, de modo minucioso (veja-se, por exemplo, o Livro I da Parte IV, Algumas páginas de História,
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contando com 6 capítulos), mas sempre conduzindo o leitor da queda da monarquia ao ideal republicano; de uma injustiça cristalizada nos Bourbon depostos – a tríade Luís XVI, Luís XVIII e Charles X – à criação de um ideal de justiça, simbolizado pela luta dos estudantes da Sociedade dos Amigos do ABC.

A discussão sobre a gíria (Parte 4, Livro 7, “L’Argot”, 4 Capítulos) faz um contraponto entre uma condenação linguística, apesar de Victor Hugo reconhecer a sua necessidade, e a linguagem elevada do ideal revolucionário de Enjolras e Combeferre (Parte V, Livro I, Capítulos IV e V). É a oposição dos que se comprometem com o bem comum, contra a canalha bandida, liderada por Thénardier que, como todo bandido, pensa apenas em si. Recorde-se, também, que Éponine, depois de conhecer Marius e por ele se apaixonar, sente o argot como algo inquietante e impossível de ser articulado (IV, 8, 4, p. 803).

Nada, porém, é tão sensível a Victor Hugo, quanto a necessidade de justiça, assunto sempre presente, cantado e decantado como um mantra, como um ensinamento que deve ecoar na mente de todos.
Considero, por exemplo, magistral a oposição que ele constrói entre as barricadas de 1848 e as de 1832, sintetizando, nas poucas linhas abaixo, toda a história da França, da monarquia à república, em busca de uma estabilidade social, capaz de garantir a justiça (V, 1, 1, p. 927):

“Esse amontoado gigantesco, aluvião do levante, figurava ao espirito um Ossa sobre o Pélion de todas as revoluções; 93 sobre 89, o 9 termidor sobre o 10 de agosto, o 18 brumário sobre o 21 de janeiro, vendemiário sobre prairial, 1848 sobre 1830.”

De modo a fazer o paralelo e evidenciar as diferenças entre os dois movimentos, o de 1832, considerado uma insurreição em prol da República, e o de 1848, considerado um levante, embora popular, mas contra a República, em fase de se instalar, Victor Hugo começa fazendo uma alusão à Gigantomaquia, episódio mítico que narra a ação dos gigantes Oto e Efialtes, colocando o monte Ossa sobre o Olimpo e
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o Pélion sobre os dois, ameaçando assaltar o céu e tomar o poder. As barricadas de 1848, portanto, as do faubourg du Temple e as do faubourg Saint-Antoine, sendo “a desordem”, enfrentava a “assembleia constituinte, a soberania do povo, o sufrágio universal, a nação, a república” (V, 1, 1, p. 928), eram a desconstrução da Titanomaquia, em que Zeus, lutando contra o pai e os tios, os vence e estabelece a ordem. Com a ideia de mostrar como a história, muitas vezes, procura trocar a ordem pela desordem, por interesses pessoais dos que governam, Hugo parte de uma narrativa mitológica, para mostrar essa recorrência na história da França, durante a Revolução Francesa e os anos subsequentes. Atente-se para o detalhe de que o Capítulo I, aqui referido, se chama “A Caribde do faubourg Saint-Antoine e a Cila do faubourg du Temple...

Assim, é que 1793, o ano do Terror jacobinista, liderado, sobretudo por Robespierre e Jean-Paul Marat, se sobrepõe a 1789, ano da Revolução Francesa; o 9 Termidor de 1794 (27 de julho), uma reação dos moderados contra o jacobinismo, levando Robespierre, Saint-Just e outras da entourage dos cabeças do Terror à guilhotina, abre caminho para o fim da Convenção e para o início do Diretório, que, por sua vez, conduzirá ao final da Revolução e para o poder concentrado nas mãos do Consulado, a partir de 1799. O 9 Termidor é, portanto, contrário,
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ao 10 de agosto de 1792, marcando a queda da monarquia e o início da primeira República, proclamada em 21 de setembro do mesmo ano.

Do mesmo modo, o 18 Brumário (09 de novembro de 1799), golpe de Estado de Napoleão Bonaparte, marca o fim do Diretório, regime político adotado pela república francesa, caracterizado pelo fim da representação popular no processo revolucionário. É, a um só tempo, o início do Consulado e da era napoleônica. Napoleão é eleito cônsul, juntamente com Ducos e Sieyès. Em 1802, ele é cônsul em vida e, logo após, em 1804, ele se coroa imperador. O 30 Prairial de 1799 (18 de junho de 1799) mostra o poder de Sieyès sobre Barras, impondo três novos Diretores: Ducos, Gohier e Moulin. A instalação do Diretório e do Consulado vai de encontro aos ideais da Revolução Francesa, antimonárquica por excelência, cujo momento emblemático é o dia 21 de janeiro de 1793, em que Luís XVI é guilhotinado, na Praça da Revolução, hoje, Place de la Concorde.

Em 13 Vendemiário (5 de outubro) de 1795, Napoleão, com o apoio do Convencional Paul Barras, rechaça um levante pró-realista e dos sans-culottes. Estes desejavam deitar por terra a Convenção Termidoriana (27 de julho de 1794 e 26 de outubro de 1795),
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pedindo o fim do Terror, com o poder nas mãos dos mais liberais e a instalação do Diretório; aqueles desejavam a restauração do antigo regime. Esse acontecimento alça Napoleão à fama, promovido a general de divisão. O episódio o torna conhecido pelo epíteto de “General Vendemiário”. Barras se torna Diretor, nomeando Napoleão a Comandante-em-chefe do Exército do Interior, o mesmo que mestre militar de Paris, pela ação de ter fulminado “a hidra realista” (Dossier Actualité de l’Histoire, Napoléon, 2000, p. 15). O Prairial é última revolta totalmente popular da Revolução Francesa, acontecida em 20 de maio de 1795. O seu fracasso acaba com a aspiração de ascensão política dos sans-culottes, e prepara o início do Diretório (1795-1799), que substitui a Convenção, em 26 de outubro.

A inversão de valores da desordem, gerada pelos interesses de concentração de poder nas mãos do (s) governante (s), sobre a ordem republicana inicial instaurada pela Revolução Francesa, se repete nas barricadas antirrepublicanas de 1848, contrárias ao ideal republicano de 1832. Em 1832, só havia a promessa de uma escalada suave para a república, após a queda de Charles X, em 1830. Em 1848, a república já está definida pelos deputados constituintes, dentre eles o próprio Victor Hugo.

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Victor Hugo discursando na Assembleia Legislativa sobre a revisão da Constituição Francesa, em 1851. ▪ Arte: Fortune Louis Meaulle ▪ Wikimedia
Como se pôde ver, tudo está interligado e, por isso mesmo, como diz o escritor, essas aparentes digressões são, na realidade, “um entreato austero de um drama doloroso” (IV, 7, 4, p. 792), o que justifica que “o olhar do drama deve estar presente por toda a parte” (V, 1, 16, p. 961).

Eis, a nosso ver, a essência de Os miseráveis, com os seus diversos assuntos que se reagrupam para contar a história da injustiça social que acomete os desvalidos e sem qualquer esperança, na França, no século XIX, mas que bem poderia ser a história do homem, em qualquer parte do mundo, no século XXI.

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