Meus estimados leitores e queridas leitoras, sempre, desde que me conheço por gente, gerações mais novas têm desprezo por hábitos e atitudes da geração anterior.
Mais modernamente acharam um outro jeito de nos aporrinhar o juízo. É o seguinte: passou dos quarenta ou está chegando perto, parece que o cidadão perdeu o selo de garantia diante dessa geração-digital nascida sob a égide da internet. É a geraçãozinha Z, para qual o mundo se apequenou às dimensões de um computador ou de um celular. Não conseguem viver sem essas engenhocas. Fora daí, para eles o mundo perdeu seus encantos e a relação entre as pessoas agora se restringe aos teclados, é por ali que eles conversam, se relacionam, se fazem presentes.
Abraço é coisa fora de moda. Mais que isso; abraço ou quaisquer manifestações de apreço podem virar cringe!
Fiquei inicialmente meio sem saber o que era essa história de cringe. Soube através de minha filha que mora lá nas latitudes de cima a origem do termo. “Cringy”, é o vocábulo cuja origem veio lá da parte de cima do mapa. Professora numa high school, na Pensilvânia, interpelou um aluno para saber o significado.
- What is cringy? – ao que ele respondeu:
- It is like when you see a person over forty-years-old dancing.
Traduzindo ao pé da letra, seria : “é como quando você vê uma pessoa com mais de quarenta anos dançando”. Difícil chegar ao exato significado, mas é bem próximo do nosso: “sem noção”. Também algo como “sentir vergonha alheia”, cafona.
Na verdade é um embate de uma geração chamada de “Millennials” (os nascidos entre 1980 a 1995 nos EUA e de 1980 em diante aqui) contra uma outra geração mais novinha, a que veio depois desta, a chamada de “geração Z”. Esta última já nasceu conectada na internet.
A derradeira geração desanca xingação na anterior por esta, a Millennials, ter hábitos e atitudes que envergonham quem é da geração Z. Essas atitudes é o que chamam de cringe. Vamos tentar relacionar alguma delas para entendermos o vazio que se instalou na cabecinha dessa gente.
Dizer que é mãe ou pai do seu pet é muito cringe. Ir a Disney também é. Tomar café da manhã, usar facebook, ser fã de Harry Potter, assistir a série Friends são outras atitudes muito cringes.
Agora entendo porque nas aulas virtuais, nesses tempos de pandemia, alguns dos meus alunos nem sob tortura abrem as câmeras, Sabem por quê? Porque é cringe assitir aula online com a câmera do notebook aberta. Pode uma coisa dessa?
Outras atitudes consideradas cringes:
Usar pontuação na internet, ficar dizendo que tem boletos para pagar, usar hashtag na legenda do Instagram. Tem mais: rir com o emoji “chorrindo”, usar sapatilha com bico redondo, ler jornal impresso, beber cerveja litrão, usar calça skinny, alugar DVD e VHS na locadora, dizer que somos jovens adultos quando já passamos dos trinta.
Imaginem se daqui a alguns anos se essa geração Z viesse a comandar o planeta. O que seria de nós? Ou dos que ficarem. Ainda bem que muita gente nessa faixa etária não se identifica com essas idiotices. Ainda bem.
Minha geração também achava brega coisas da geração anterior: chamar uma mocinha de broto, dizer “é uma brasa, mora!”, usar lenço, chamar carro de carango, usar calça jeans apertada, gostar de assistir o programa Jovem Guarda, tomar banho em Praia Grande no litoral paulista e outras coisas do mesmo tipo. Tinha mais: comprar camiseta com as inscrições “estive em tal lugar e me lembrei de você”, colocar na varanda uma placa dizendo “seja bem vindo, mas limpe os pés”; pingüim de louça em cima da geladeira e por aí vai.
Acho normal que esses conflitos existam, mas o difícil é entender de como algumas pessoas levam isso tão a sério, como uma espécie de filosofia de vida. A internet se apresentou como uma poderosa ferramenta a serviço da informação, mas se tornou também chão fértil para semear uma variedade insondável de idiotices, como esta que estamos relatando.
Que essa geração Z acorde, pois está ficando para trás. Há gente na idade deles ocupando espaço onde vai ser importante estar e esses patrulheiros perderão a vez por incapacidade intelectual. Tanta coisa importante para pensar e discutir e uns e outros preocupados em ser ou não ser cringe.
Talvez, algum dia essa geração Z, que sofre de bibliofobia; isto é, sente febre, tem urticária, sudorese quando chega perto de um livro, descubra que não há nada mais cringe do que achar alguém cringe.
Lá na parte de baixo do nosso mapa, o inverno é bem diferente do daqui de cima. É seco, umidade do ar muito baixa e as temperaturas fazem espremer o filete de mercúrio abaixo dos 15 graus. Não raro chegam próximas de zero e até abaixo disso
Lá é tempo de seca, raramente chove. Em alguns pontos é fumaça empestando o ar nas cidades e no campo. Elas vêm das queimadas nos pastos e em capões arbustivos que não resistiram à falta d'água. Os reservatórios mínguam a espera das chuvas da primavera. Fora essas contrariedades, quando as fumaças dão uma trégua, as manhãs são azuis, a neblina teima um pouco em não subir como quisesse agasalhar nossas preguiças,
mas passado um tempinho elas se vão e o sol aparece tímido, generoso e acolhedor.
No sol dessas manhãs é que minha mãe gostava de ir para o quintal. Deixava à disposição duas cadeiras. Uma era para ela tomar acento, na outra, os novelos coloridos de lã e as agulhas. Passava horas ali, até que suas panelas reclamassem a presença daquela artesã junto ao fogão e à pia de louças. À tardinha retornava às agulhas e aos novelos.
Guardo com muita ternura a lembrança de Dona Nalva tricotando. Ela sabia muito dessa arte, era ligeira no manuseio daquelas duas pequenas lanças. Muitas vezes a vi comentando consigo mesma: vou usar “ponto arroz” nesse cachecol, nessas luvas “ponto barra”. E por aí ia, cada peça um ponto diferente. Nem me recordo quantos mais.
Para nós eram tempos difíceis, dinheiro curto que mal dava para o essencial. Algumas vezes eram insuficientes para as necessidades mais básicas, mas não tão parcos que não pudéssemos nos agasalhar nos frios que iam do fim de maio ao começo de setembro, porque então podíamos contar com as agulhas e os novelos de Dona Nalva.
Éramos quatro irmãos, uma escadinha. Algumas vezes, roupa que não cabia mais em um podia ser de boa serventia para o que vinha depois. Não com todas as peças, mas com as mais resistentes ao uso, ao desgaste e ao gênero. Ao gênero? Sim, calça que ficava curta para mim, o mais velho, só podia ficar para o terceiro da fila porque o segundo lugar era de minha irmã e isso quebrava a corrente. Mas essas heranças não valiam para os agasalhos porque aí minha mãe fazia questão de renovar nosso vestuário.
Era bonito vê-la tricotando. Aqueles fios de lã iam escorregando dos novelos para submeterem-se à parceria de dedos e agulhas que em rápidas manobras iam transformando aqueles cordões em meias, blusas, cachecóis, luvas, gorros, pulôveres. Podiam ser peças monocromáticas como as luvas ou com mais de uma cor, dependendo da inspiração de Dona Nalva e dos novelos disponíveis.
Como eram mágicas aquelas mãos. Lembro-me que algumas vezes nos chamava. Pedia a presença do futuro usuário.
— Vem aqui para eu ver como é que está ficando.
Com a peça ainda presa às agulhas, estendia a confecção sobre o “freguês” para ver se as medidas estavam corretas. Sentia orgulho em fazer isso. Essas experimentações podiam vir acompanhadas de um abraço, um beijo, um afago, nunca com indiferença. Dona Nalva sabia também aquecer nossos corações.
De quantos anos lá para trás fui desenrolar o novelo de minhas recordações? Sei lá. Uns sessenta, talvez. Acabei encontrando Dona Nalva, minha primeira heroína. E o que me fez embarcar nessa viagem no tempo? Muito simples, nesses dias, até por aqui a temperatura baixou um pouquinho além do costumeiro nesse tempo das águas.
Senti um pouquinho de frio. Fui procurar uma blusa e acabei encontrando essas lembranças. Vi minha mãe com suas agulhas. Consegui até me lembrar de sua voz.
Tempos difíceis, aqueles. Veio a “revolução” de 64. Meu pai feito preso político em um navio ancorado na costa santista, o Raul Soares. Nem naqueles meses, Dona Nalva abandonou suas agulhas. Teve que “trabalhar fora”; então, só trocou o quintal nas manhãs de sol por algum canto da casa naquelas noites frias de temperaturas e de esperanças. Mas soube nos manter aquecidos.
Foi um tempo de resistência. Mas Dona Nalva cansou e numa dessas manhãs azuis de inverno, ela decidiu que viver não era tão importante assim.
Essas foram as reminiscências que me ocorreram nesses dias em que um friozinho de pouca monta andou rondando meus travesseiros. Fui eu quem acabou tricotando. Tricotando palavras e saudades.
Sonhe como se fosse viver para sempre, viva como se fosse morrer amanhã.James Dean
James Byron Dean, ator norte americano, morto precocemente aos 24 anos num acidente automobilístico, é o autor da frase usada como epígrafe desta crônica. Foi símbolo de uma rebeldia que se alastrou mundo afora e respingou por essas bandas no final da década de cinqüenta. Vestia-se aqui como James Dean aparecia nos seus filmes, penteava-se cabelo ao jeito dele e chutava-se o balde do comportamento convencional como ele o fizera inclusive nos dois únicos filmes que assisti, dos apenas oito em que atuou. Só vi, já nos tempos do vídeo cassete, “Rebel without a cause” (Juventude Transviada) e “Giant” (Assim Caminha a Humanidade). Foram películas emblemáticas.
Agora eu era herói.
E o meu cavalo só falava inglês.Chico Buarque / Sivuca
Tinha eu, então, a idade dos curumins. Meu pai tentava iniciar-me nos segredos da costura como modesto aprendiz em sua oficina na Vila Abernéssia e, como recomendava a prática de então, encarregava-me de manter aceso o carvão do ferro de passar, molhar as casimiras antes que Nicanor as passasse. Algumas vezes permitia-me o dedal para alinhavar algum forro de paletó, cujo prazo para entrega exigisse temporariamente minha promoção, de aprendiz a meio oficial, o que ainda muito me distanciava de meu pai na hierarquia da profissão, uma vez que ele deixara a Alfaiataria Globo, na Rua do Ouvidor, já na condição de contramestre,
último e respeitoso degrau na escala dos profissionais da costura. Veio do Rio de Janeiro até Campos do Jordão para tratar dos pulmões. Aqui casou e estabeleceu seu negócio.
Minhas tardes eram assim: meu pai quase sempre ralhando comigo e Nicanor rindo de meu embaraço. Éramos os três a dar conta das encomendas, que em alguns meses rareavam, noutros vinham com abundância; e então, trazíamos o velho rádio de galena para que pudéssemos adentrar à noite no trabalho, sem que perdêssemos as novelas da Rádio Nacional. Nessas noites, acompanhava-nos minha mãe. Não foram poucas vezes que a voz melodiosa de Olga Nobre levou-a as lágrimas. Ela e o sentimental Nicanor.
As manhãs entregava-as sem muito entusiasmo ao Grupo Escolar. Pelejava com a tabuada e a caligrafia. Ao meu pai a preocupação era com os progressos que eu pudesse obter nas letras e no ofício. Assim, com igual rigor cobrava-me bom desempenho nesses dois afazeres. A paga pelo esforço nessas obrigações era a bagatela semanal de vinte cruzeiros, pecúnia que eu consumia nas matinês dominicais do Cine Glória ao lado de Nestorzinho, Angelino e Cecéu.
Sábados não havia sem que corrêssemos à estação, esperando pela gôndola que chegava de Pindamonhangaba, pontual e rumorosa. Cecéu, o mais ansioso, mergulhava sempre seus olhos no horizonte e nos movimentos do velho Anacleto que consultava o velho patacão, a controlar o tempo e suas obrigações com a Estrada de Ferro.
— Quatro e quinze! – anunciava. Depois olhava-nos com ternura, revelando cumplicidade com nossas expectativas – quatro e meia ela chega.
Chegava sempre e sempre no horário. Angelino roia as unhas.
Quem será que ela vai trazer hoje?
Logo depois despontava prateada e sacolejante apitando nos cruzamentos. Depois aportava na estação. Anacleto recolhia a encomenda do maquinista. Desembrulhava, olhava-nos com pose de arauto e anunciava quem viera nos visitar lá nos autos da Mantiqueira.
— Chegou o Tom Mix!
Era assim que chegavam todas as semanas aqueles forasteiros galantes e intrometidos: em grossos rolos de celulose.
Sempre fomos, os quatro, pontuais naquele rito semanal de oferecer hospitalidade calorosa àquele paladinos, de entregar-lhes nossos corações e tantos
outros que pudessem pulsar acelerados nas barulhentas matinês do Cine Glória.
Não há ninguém de duvidar de nossa intimidade com seus feitos, sua biografias e principalmente com suas habilidades.
— Briga é com o John Wayne – desafiava Cecéu.
— É que ele nunca experimentou um murro do Buck Jones – reclamava Nestorzinho.
Eu não admitia cotação inferior ao meu paladino.
— Pode juntar os dois que não dão conta do Gary Cooper.
Tínhamos, todavia, concordância do que ia além das truculentas fronteiras da força muscular e adentrasse no mágico território da perícia. Concordávamos que pontaria era mesmo com Randolf Scott, que no laço e montaria Bob Steele era insuperável e que Allan “Rock” Lane era um porqueira, Roy Rogers era um pancudo e só prestava mesmo era para cantar. Assim inveredávamos pelos intrigantes labirintos dos defeitos e das vicissitudes. Muitos outros passaram pelo crivo impiedoso dos nossos julgamentos: Tom Tyler, Joel McCrea, Ray Carrigan, Ken Maynard, Tim McCoy, Hoot Gibson e outros tantos que fossem recolhidos naquele fim de mundo pelas mãos diligentes do velho Anacleto.
Aos domingos, inaugurávamos as manhãs com nossas fantasias memoráveis nos terrenos desocupados da Vila Ferraz, ao sopé do morro da santa Casa, até onde fossem capazes nos levar aquelas ilusões de meninos. Um quarteto de cavaleiros, aboletados em cabos de vassoura a guisa de montaria.
Assumíamos a fleuma e postura de nossos preferidos. Eu gostava mesmo é de ser o Gary Cooper, Nestorzinho se achava o Buck Jones, Cecéu era o John Wayne e Angelino o Tom Mix. Éramos todos mocinhos. Os bandidos sanguinários e os índios perversos viviam apenas em nossas alucinantes imaginações, ou se travestiam de qualquer intruso que se intrometesse em nossas contendas.
Aos nossos garanhões, fogosos como os da tela, conservávamos a fidelidade de seus senhores. Só eu mesmo, assim com Gary Cooper, não adotava uma única montaria. O cavalo de Cecéu era o Duke, de Nestorzinho o Silver e de Angelino o Old Blue.
Mais do que todos, eu me achava imbatível! Gostava de esmurrar o Jack Palance. Muitas mocinhas estiveram ali comigo. Eu as protegia dos peles-vermelhas, do terrível Touro Sentado. Sabiam que índio comigo era ali oh!, no cano do meu Colt! Muitas vezes fui ferido em combate, mas Angelino, ou melhor dizendo, Tom Mix, ajeitava os ferimentos com meu cachecol e eu ficava prontinho para beijar Jennifer Holt...Até na boca; se ela quisesse, é claro.
Sempre era Dona Matilde que punha fim a nossos devaneios. Chamava por Cecéu, e então, descobríamos que era hora do almoço. Depois o banho e os aprontamentos. Minha mãe reclamava graxa nos sapatos e separava-me a melhor casimira para que eu, Cecéu, Angelino e Nestorzinho nos encontrássemos defronte ao Armazém Cristal, do Seu Pina, e iniciássemos a marcha rumo ao Cine Glória.
Na portaria, sempre Simão Cireneu. Eclético. Era ele também quem pintava os letreiros coloridos e reproduzia magistralmente as cenas mais emocionantes da película. Eram figuras perfeitas em letras góticas que anunciavam o espetáculo da tarde: “Os falsários do Oeste”. À nossa chegada, sempre além do título e da gravura, desfilava sua arte de relatar contendas com as quais iríamos nos deliciar nos instantes seguintes.
— Vão ver só a surra que Bob Steele aplicou no George Chesebro. Não deu nem pro começo — e gesticulava como fosse ele o autor do nocaute.
Depois, tínhamos que dividir nossa euforia com a inquieta multidão que fazia do Cine Glória uma arena ímpar de virtudes, onde jamais pudemos presenciar uma vitória sequer do mal sobre o bem, da realidade sobre o mito, do cotidiano sobre os nossos sonhos.
Mas um dia, fez-me a vida perceber que além daquele quintal, havia bem mais do que os beijos de Jean Arthur e Jennifer Holt, do que as provocações de Jack Palance, do que o tiro certeiro do meu Colt e de nossas intrépidas cavalgadas atrás de apaches e chayenes.
Eram fartas as encomendas. Meu pai, Nicanor e eu nos entregávamos com afinco ao corte da casimira e do linho inglês. A premência dos prazos fez-me arriscar meu primeiro molde de colete e muito elogios ganhei pela exatidão do meu traçado.
Ouvi orgulhoso meu pai repetir várias vezes:
— O menino tem mão. Tem mão!
Minha mãe traria o jantar e nem as novelas tiraram nosso ímpeto. Era Dr. Adhemar que estava para chegar com Dona Leonor para inaugurar mais um sanatório. Nosso estabelecimento nunca atendera gente tão importante. Até Doutor Silveira nos encomendara seu terno, e nossa modesta “Alfaiataria e Camisaria Paris” começava a ganhar fama na cidade. Meu pai, satisfeito com o andamento dos negócios, aventava a possibilidade de livrar-se da hipoteca de nossa casa, andassem as coisas como iam.
Chamado à responsabilidade não compareci à estação naquele sábado. Mas Angelino me viera até ao trabalho trazer-me a novidade.
— Chegou o Hopalong Cassidy!
Eu já ouvira falar dele. Simão Cireneu me contara. Roupa preta, cavalo branco. Bom de briga, bom de tiro. Revólver com coronha de marfim e ainda por cima não era de namorico. Era a primeira vez que Willian Bloyde ganhava nossas montanhas ostentando sua mais famosa personagem: Hopalong Cassidy. Chegava com atraso de mais de uma década, porque o Cine Glória não guardava critérios cronológicos. Aceitava de bom grado nossos heróis quando estes já tivessem entretido platéias de maior renome. Sabíamos esperar.
A noite chegou com a frenética clientela num interminável “aperta aqui”, “ajeita ali”, que a mim muito incomodava, e que meu pai com solicitude não muito costumeira, atendia demarcando novas posições para o alinhavo. Assim fomos entregando as primeiras encomendas, e quando um cabide ganhava um colete que fosse, não podíamos esconder nossa euforia. O sono atirou-me em uma velha poltrona, mas o sol já me encontrou pelejando com as tesouras, e quando minha mãe chegou para atender os reclamos matinais de nossos estômagos eu ia percebendo que o Cine Glória estava ficando cada vez mais distante. Mais ainda, quando Cecéu apareceu reclamando a pontaria de Gary Cooper para os embates daquela manhã, e meu pai com um olhar de rabicho arrefeceu minhas pretensões.
As horas impiedosas voavam, e a cada quarto passado, eu consultava Nicanor, como a lembrar meu pai pelo adiantado delas, dos meus proventos, que ele ainda não se lembrara de “acertar minhas contas” como fazia todos os domingos. Ele, indiferente às minha ansiedades, acionava os pedais. À hora dos aprontamentos, como minhas insinuações se tivessem mostrado vãs, recorri à lágrimas, num último recurso de lembrar meu algoz, que naquela tarde era Hopalong Cassidy instalando seu nome na galeria de nossos astros prediletos.
Mas meu pai não entendia de cowboys como eu não entendia de hipotecas. Mas como as armas daquele forasteiro não tinham calibre para resgatar promissórias,
recomendou-me a prudência que eu deixasse as lágrimas e ficasse com as agulhas.
Não fui me encontrar com Angelino, Nestorzinho e Cecéu. Era a primeira vez que meu coração experimentava a dolorosa sensação da impotência. O mundo era definitivamente maior do que meus sonhos. A hipoteca da minha casa não deixava lugar para aquelas fantasias que somente nós, eu Angelino, Nestorzinho e Cecéu podíamos compreender suas mágicas dimensões.
De súbito meu pai começou a ralhar comigo, que eu não tinha responsabilidade com a vida, que se ele não contasse com o próprio filho, com quem iria contar? Disse ainda, que eu estava ficando meio aluado com aquela história de cinema, que ele estava velho e doente e que de uma hora para outra, oh!... E quem iria tomar conta dos negócios? E completou:
— Você? Com garrucha de mentira na cinta?
Terça-feira teríamos que entregar o que faltasse de encomendas. O homem ia chegar na quarta e ai se não estivesse tudo pronto! Mas eu não queria saber do Adhemar de Barros, do Jânio Quadros, do Marechal Lott, de ninguém, queria mesmo era ver o Hopalong Cassidy, e para mostrar a força de minha preferência atirei-me novamente às lágrimas e aos soluços.
Passados hoje tantos anos, não posso crer que meu pai fosse cruel àquele ponto de atirar-me ao rosto o ferro de passar. Foi coisa do momento, do medo de perder nossa casa. Deixou-me com essa cicatriz. Ele mesmo nunca se perdoou por isso. Morreu dois anos depois quando os pulmões fraquejaram de vez. Creio que o amo. Sempre o amei. Não o amasse, não estaria aqui, na “Alfaiataria e Camisaria Paris” como sempre ele desejou. Nunca e por motivo algum abro a alfaiataria aos domingos. Algumas vezes confesso que choro, por meu pai, por essa cicatriz... Mas principalmente, por lembrar que o Cine Glória não existe mais.
O causo me chegou pelo meu compadre, Paulo César, padrinho de meu rebento Cauê. Este meu amigo, foi professor de Cálculo no curso de engenharia de uma conceituada faculdade pública lá de Itajubá, sul de Minas. Foi de lá que ele me veio com esta história. Verdade? Meu compadre não iria mentir para mim.
Aconteceu comigo na década de 80. Lá se vão mais de 30 anos, quase 40. Comecemos perguntando ao amigo leitor e à querida leitora se sabem o que vem a ser uma “baratinha”. Sabem o que é? Pois bem, assim eram chamados os carros conversíveis, lá nos idos dos tempos; década de 50, daí para trás. E por falar em baratinhas, é antes necessário falar de João Saldanha.
Tenho por hábito fazer alguns exercícios de memória. Costumo buscar nos escondidos do tempo, passagens de minha primeira infância lá nos espinhaços da Mantiqueira. Tudo começou em Campos do Jordão, bem nos altos de Jaguaribe (olhem a coincidência), bairro que fica entre Abernéssia e Capivari. Casa de madeira, como a maioria delas por lá naqueles anos distantes. Ainda na memória, que em frente à minha, era a morada de Dona Gabriela de Seu Juca, um pouco abaixo a de Seu Zequinha que tinha banca de frutas no Mercado Municipal.
Levei muito a sério aquela máxima escrita em alguma página do Livro Sagrado: “Crescei-vos e multiplicai-vos”. Não sei se cresci tanto assim, mas multipliquei com força. Sete!
Um dia desses, eu separo um tempinho e ponho em dia todos os choros que não tenho tido tempo de chorar.Carlos Drummond de Andrade
Esses tempos de recolhimento deixam-me mal e mau. Ficam se digladiando o advérbio e o adjetivo para ver quem mais me afeta, quem mais me traz transtornos. É briga sem vencedor, fadada a um empate magrinho, sem gols, sem boas emoções, mas que nos deixa a alma pequenina e o coração mutilado.
Tomé era um homem preguiçoso. Ninguém sabe o porquê, mas já faz uns anos que bateu uma imensa preguiça nesse cidadão. Preguiça daquelas, bravas. De fazer inveja àquele bicho de unhas compridas que carrega no nome o estigma da inércia, da lombeira, do marasmo, da sornice e não sei mais lá quantos desses adjetivos. Sabem de qual bicho estou falando, não sabem? Pois é ele mesmo. Tanto foi que nosso amigo passou a ser chamado de Tomé Sossego ou Doutor Sossego, já que era delegado de polícia na cidadezinha que aqui chamaremos simplesmente de P.
Meus amigos, minhas amigas. Pensem numa dupla desigual! Está aqui uma: Tião Malvadeza e Cicinho.
O primeiro, o Sebastião, era um homão faltando pouco para chegar aos dois metros de altura e quase que a metade disso em largura. O que tinha de forte tinha de bravo e de ruim. Puxou uns quinze anos atrás das grades, em regime fechado, pelas malvadezas que praticou nesses buracos do mundo. Era ruim que só o diabo. Quando esteve vendo o sol nascer quadrado, mandou pelo menos meia dúzia de desafetos falar com Deus. Aqui fora, ninguém sabe quantos despachou desta para uma melhor. Por essas “jabuticabas” de nossa justiça, ganhou liberdade e está solto esparramando terror nesse mundão de Deus.
Já Cícero, um hominho de pouca estatura, magrinho, com os bracinhos e as pernas que mais pareciam canudinhos de tomar refrigerante, era uma criatura com a índole de um passarinho. Uma bondade em pessoa. Temente a Deus e, pelo jeito, a muita gente. Fugia de encrencas, pois sabia que desavença não era sua praia. Não tinha músculos para encarar essas paradas. O jeito era ficar na dele, em paz com esse mundo e outros, se outros houvesse.
Malvadeza era grosso como papel de embrulhar prego, Cicinho era uma seda no trato com toda gente. Tião não levava desaforo para casa e cobria de sopapos o infeliz que tivesse essa ousadia. Cicinho não era assim. Pedia perdão por eventual ofensa que dele tivesse partido, assim, como perdoava a quem o tivesse ofendido; do jeitinho que pede a oração.
Tião, dizem, nem batizado foi. Igreja? Só entrou uma vez para assaltar a sacristia.
Passava ao largo de qualquer templo fosse católico ou evangélico. O outro, o pequenino de quem falávamos, era casado com Claudete, mirradinha e mansa como ele. Tiveram três bacurizinos.
Mas o destino aprontou mais umas das suas e fez que essas duas criaturas de quem estamos falando, tão desiguais, viajassem juntas no mesmo trem da Mogiana. Isso, estou dizendo, aconteceu lá de priscas eras, quando viajar de trem era sinônimo de conforto e segurança.
Cicinho embarcou em Rifaina. Vivia ali, naquela cidadezinha acanhada à beira da represa. Antes de embarcar, numa birosca daquela gare, reforçou o estômago com pastel, quibe e empada de palmito. Esse reforço iria segurar o apetite até Campinas, seu destino final.
Foi de segunda classe, grudado na janela apreciando a paisagem. Era pé de café e de cana a não poder mais. Lá ia ele embalado pelo balanço gostoso do trem pensando em Claudete e nos bacuris. Quase adormeceu. Ia pegar no sono não fosse o trem parar na estação de Franca. E trem quando para faz barulho. Quem entra no trem? Quem? Adivinhem! Isso mesmo, Tião Malvadeza.
Entrou cheio das vontades. Viu lugar vazio ao lado do nosso hominho e se encheu de banca.
– Chega mais pra lá, criatura. Só vou descer em Ribeirão. – nem deu bom dia e já foi chamando o pobre de “criatura”.
Pois não, senhor – respondeu a criatura resignada e obediente.
Malvadeza não disse mais uma só palavra, foi se esparramando no assento, prensando Cicinho junto da janela. Este ficou quietinho conforme mandavam sua índole e sua coragem.
Passado um tempinho, o trem partiu. Próxima parada? Ribeirão Preto. Ia ter que suportar o incômodo até lá. Cicinho ainda conseguiu dar uma viradinha de lado e deu uma medida no tamanho do homão, quando viu o cabo de uma garrucha no cinto do valentão. Cicartiz no rosto, garrucha no cinto, só podia ser o tal de Malvadeza que vivia aterrorizando a região. Sim era ele, conjecturou nosso amiguinho.
Malvadeza adormeceu ligeiro, foi então que Cicinho notou que na redondeza os olhares se dirigiam para onde esta sentado. Olhares ansiosos, medrosos. Também pudera, tinham identificado Malvadeza que já puxava seu ronco em sono pesado.
Cicinho teve todo o medo do mundo. Começou a passar mal. Lá em suas entranhas o quibe começou a arengar com a empada, essa por sua vez brigou com o pastel. Não se entendiam. Foi então que o estômago resolveu botar essa trinca para fora e fez Cicinho devolver aquela gororoba justamente no colo de Malvadeza. Só teve tempo de ouvir o passageiro do banco da frente dizer:
– Malvadeza, quando acordar, vai espetar o magrinho! – mas o ogro nem ouviu, nem acordou
E lá ia o trem. O pessoal do entorno na expectativa, vira e mexe olhavam para o coitadinho, antevendo a desgraça. Mas ninguém sabia de uma coisa: Cicinho era um danado de esperto.
O trem foi chegando em Ribeirão Preto e Malvadeza despertou. Viu aquela massa nojenta no seu colo e olhou com sua cara de bravo para Cicinho. Este tirou um lencinho do bolso, ofereceu o paninho para Malvadeza e perguntou com a voz mais meiga do mundo:
Volta do outono
Um enlutado dia cai dos sinos
como teia tremente de uma vaga viúva,
é uma cor, um sonho
de cerejas afundadas na terra,
é uma cauda de fumo que chega sem descanso
para mudar a cor da água e dos beijos. Pablo Neruda
As chuvas, que ainda deveriam ser raras nesta época do ano, andaram chegando desobedientes e pareceram estar antecipando a estação das águas. Será o tempo de cobrir o sertão de verde, esperar colheita generosa e mesa farta. São José haverá de ser dadivoso e permitirá que o aguaceiro surja abundante autorizando o plantio e permitindo à enxada que trabalhe nos roçados. Haverá sim, o santo-carpinteiro, de derramar em forma de chuva, esperança nos corações sertanejos.
O equinócio de outono se deu no último dia vinte e um. Dia em que a luz solar incidiu com mesma intensidade sobre os dois hemisférios do planeta. A Terra e o Sol, por uns meses, irão se afastar um do outro como dois parentes intrigados. Para nós, os dias serão mais curtos do que as noites. Nessas latitudes, só um pouquinho.
Consta-me, salvo engano, que a palavra outono tenha origem latina: “autumnus”, que significa “mudança”. Lá em terras europeias de onde surgiu, o termo justificava o fim do colorido da primavera e do verão para se esperar os tempos cinzentos do inverno. Mal sabiam eles, os europeus, que para o nosso matuto também caberia a força do vocábulo. Pois aqui começa o tempo das grandes metamorfoses. A caatinga vai ganhar vida, os açudes haverão de sangrar. O passaredo, até então, tímido, escondido irá reaparecer numa louca e desorganizada sinfonia. Voltarão, o azulão, o coleirinho, o sabiá, o bigodinho, o pintassilgo, o galo-de-campina, o assum preto, o currupião, o sanhaçu, e até o desajeitado nambu aparecerá para ciscar à sombra dos pés de jurema. E que tenham muito cuidado com o acauã, com o carcará, com o gavião carijó, com a coruja rasga-mortalha, todos famélicos e exímios caçadores estarão rondando os céus e podem interromper a cantoria dos nossos seresteiros empenados.
A caatinga ganha cores com as inflorescências do sete cascas, do quipá, da jurema, da baraúna, da coroa de frade, da favela e até a atrevida arapuá irá se deliciar com o néctar do mulungu. É como que se o arco-íris fosse capaz de se esparramar em milhões de pedaços pelo sertão. Oh amigos que deixei lá pelas bandas do sul, vocês nem são capazes de imaginar como é bonito o inverno sertanejo.
No litoral não é bem assim, com as chuvas o mar que passara meses pintado em cores de turmalina; vai, como dizem os pescadores, ficando mexido, perde sua coloração esverdeada, fica bege e sem encantos. As calçadinhas da orla se farão pobres de gente, sem o alvoroço de meninos, sem nossos “apolos” e “afrodites” de peles douradas e silhuetas de escultura que passam apressados exibindo sorrisos e saúde. Os namorados não passearão de mãos dadas trocando beijos e promessas. Os velhinhos não aparecerão para repousar seus cansaços sentados na muretinha das calçadas. Nem lançarão olhares atrevidos às saias morenas que as brisas costumam levantar. Até as folhas dos coqueirais se agredirão instigadas pela aragem, numa desavença que parece interminável. Serão por aqui tempos de espera e recolhimento. Esperemos; pois, por uns meses a nossa vez, agora é a do sertanejo. É justo, mais que justo.
Início deste ano, recebi com muita desconfiança os votos de “Feliz Ano Novo”, mesmo vindo de pessoas de minha benquerença. Não precisava ser nenhum adivinho, usar bola de cristal ou jogar sobre a mesa cartas de tarô. Estava evidente que o ano ia ser difícil. E está sendo.
Pequenas embarcações pesqueiras ficam fundeadas nas águas daquela praia, Outras, avariadas, foram deixadas sobre as areias e à sombra das gameleiras. Dessas, umas estão devidamente aposentadas enquanto outras parecem aguardar reparos. Fazendo fronteira com o areal, a calçada ampla, quase uma praça e o mercado de peixes. Por ali, o vai e vem de turistas com a presença contrastante de uma indigência incômoda, freqüentadora contumaz daquele logradouro, À sombra das gameleiras, entre embarcações aportadas naquelas areias deu-se o fato.
Dois banquinhos de madeira carcomida. Sobre um deles uma meiota de cachaça, o copo de pequenas dimensões apropriadas às suas funções, o pacote improvisado com os inseparáveis cigarros de manufatura caseira — os “pés-de-burro” — a caixa de fósforos, duas laranjas cravo para rebater os arrepios depois dos goles da água que passarinho não bebe. Noutro ele, acomodado, tecendo a rede de pesca
Waldemar N.J.P. era um homenzinho desse tamanhico, trabalhador, responsável na vida pessoal e no emprego; além disso, muito educado. Esse detalhe: educado; é muito importante para este causo.
A minha casa fica lá detrás do mundo
Onde eu vou em um segundo quando começo a cantar
O pensamento parece uma coisa à toa
Mas como a gente voa quando começa a pensar.Lupicínio Rodrigues
Narinha e o marido Durvalino não perdiam um pagode nas tardes de sábado, lá no botequim do Alcides. Dos que freqüentavam aquele samba, Celestino era o protagonista, um danado no cavaquinho, além de que era também bom de gogó e sua cantoria era o que mais animava a gafieira. Sem Celestino o pagode perdia o fôlego, desafinados teimavam em cantar e ninguém se prontificava a arrastar as mesas para um rala-bucho.
Ele fazia Química na universidade e ela no mesmo curso, um ou dois semestres atrás. Conheceram-se ali pelos corredores e pintou entre eles aquela química, não a do curso, mas aquela atração danada, inevitável que faz qualquer elétron escapar de sua órbita. Hormônios pululando a todo vapor, nos dois. Então aconteceu. Não poderia ter sido diferente. Mas antes que mal digam coisas dessa nossa Julieta, é bom que saibam, nosso Romeu era criatura do mais ilibado caráter e levou a sua mocinha aos cartórios e ao altar. Casaram-se. Ele sem uma pataca no bolso, ela muito menos, mas todo mundo sabe como é esse tal de amor, não é verdade? Os pais dele contra, a mãe dela que era viúva também, mas fazer o quê? Eram, como dizia a senhora – do rapaz – “di maior”, e deviam muito bem saber o que estavam fazendo.
O pai dele ainda deu uma força de início. Foi fiador numa casinha do tipo sala, quarto, cozinha e banheiro, ali por perto da universidade e ajudou na compra do essencial. Nada de primeira mão, tudo de brechó e sem reclamação. Quem mandou não ter responsabilidade? Já a mãe dela, mesmo com gordas economias na Caixa Econômica, não abriu mão de um centavo além do que havia gasto com os ornamentos da igreja e mais alguma coisa que a paróquia exigia para proceder o enlace. E só.
Criar uma filha com tanto zelo e depois entregar para um pé-rapado desses – reclamava a indignada senhora.
Nem é preciso explicar que foi um difícil começo. Para segurar a barra, sempre que havia uma brecha no horário da universidade ministravam aulas particulares. Tempos depois conseguiram alguns colégios para lecionar e assim foram levando a vida, com dificuldades, mas levando.
E o amor? Aceso! Aceso como brasa de churrasqueira. Felizes, iam se dando bem no curso, conseguiram mais trabalho e viviam aquela fase de “como o amor é lindo! ”. Tão lindo que já podiam, vez ou outra, tomar uma cervejinha com os amigos da universidade nos fins de semana, e, mais lindo ainda, porque conseguiram comprar uma Brasília de terceira ou quarta mão.
Que não me apareça com esse carro aqui para não me matar de vergonha – dizia a mãe dela, toda prosa, porque tinha um Monza (que era o carro da moda) novinho em folha.
A vida seguia seu curso, até que um dia... Depois da aula na universidade, o nosso Romeu deixou brotar da alma seu lado boêmio, ou melhor dizendo, seu lado gandaieiro, desregrado (todo homem tem isso, contido mas tem) e numa sexta-feira, depois das aulas da noite, saiu com um amigo para a esbórnia.
Foram para um daqueles estabelecimentos onde moças gentis satisfazem as necessidades afetivas e urgentes da rapaziada. Não era o caso do mancebo em questão, que por sinal era muito bem nutrido nessas necessidades, mas naquele dia resolvera, como se diz, enfiar o pé na jaca. Ali ficaram bebendo com as meninas, beijinhos, carícias poucas. Nada mais que isso. Queriam mesmo é fugir da rotina. Mas tomaram todas e na saída, noite bem avançada, tiveram que usar a Brasília para dar carona para duas daquelas criaturas. Cumprida a gentileza, antes de chegar em casa, parou a “poderosa” e deu um geral para não deixar rastro. Achou uma bijuteria, um batom e uma tiara. Ufa! Provas do crime jogadas fora, portanto devidamente eliminadas.
Em casa, a mulher ainda acordada. Brava! Com aquele bico de ornitorrinco, lembrou nosso transgressor que na manhã seguinte iam ser testemunha no cartório. A prima dela ia se casar.
Acordou daquele jeito. Gosto de cabo de guarda-chuvas na boca. Cérebro como se estivesse solto na cabeça. Tomou café amargo, trêmulo. Botou terno e gravata. A mulher sem dizer uma palavra, só fez lembrar na saída:
Pneu do carro de minha mãe está baixo, vamos passar lá para pegar ela.
Lá, entraram na “poderosa”, a sogra e duas cunhadas. A mulher ao entrar já foi dizendo:
Que cheiro de Avon é esse aqui dentro?
Ele eliminara qualquer vestígio, menos o cheiro. Não pensara nisso. A mulher esticou mais o bico ainda, mas não disse uma palavra (o que é pior!). Na primeira freada, algo resvala no pé dele. Disfarçadamente estica as mãos, toca. Um sapato! Como não vira? Precisava eliminar aquela evidência tão comprometedora. Com a desculpa que um pneu poderia estar baixo para o carro, e disfarçadamente joga fora o sapato. Entra no carro aliviado até que chegam ao cartório. Saem do carro, menos a sogra.
A senhora não vai sair? Vai ficar aí? – interroga nosso Romeu, e ela: "Estou procurando meu sapato. Alguém viu?"