O livro "A ridícula ideia de nunca mais te ver" - de Rosa Montero, escritora espanhola que adoro (A Louca da Casa), sentiu que a h...


O livro "A ridícula ideia de nunca mais te ver" - de Rosa Montero, escritora espanhola que adoro (A Louca da Casa), sentiu que a história de Marie Curie dialogava com a sua própria. Livro a respeito também da morte, mas sobretudo dos laços que nos unem ao extremo da vida.

Acrescentei a minha vida também a essas belas e originais histórias de mulheres sábias e poderosas. E que, antes e dolorosamente, também perderam seus maridos, sofreram, falaram sobre isso, e seguiram.

Sim, é preciso fazer algo com a morte. É preciso fazer algo com os mortos. Depositar flores. Falar com eles. Dizer que você os ama e que sempre os amou…

Gritar para o mundo. Escrever num livro… "que pena ter esquecido que você podia morrer, que eu podia te perder". Se tivesse essa consciência, eu teria te amado não mais, mas melhor.....

O luto é algo estranho… Mesmo que o tempo passe, a dor da perda, nos momentos em que surge, continua parecendo igualmente intensa. A dor é disparada com menos frequência e você pode lembrar seu morto sem sofrer. Mas quando a tristeza surge, e você não sabe muito bem por que surge, é a mesma dilaceração, a mesma brasa…

Quem sabe com o tempo a mordida amenize, ou não. Isso é algo de que ninguém fala; talvez seja um daqueles segredos que todos guardamos…

Talvez nós, viúvos, nos sintamos estranhos ou péssimos viúvos por continuarmos sentindo a mesma dor aguda depois de tanto tempo. Talvez tenhamos vergonha e pensemos que não soubemos nos "recuperar".

Mas já vou dizendo que não existe recuperação: não é possível voltar a ser quem você era. Existe a reinvenção, e não é algo ruim. Com sorte, pode ser que consiga se reinventar melhor do que antes.

Afinal de contas, agora você sabe mais…


Existem obras literárias que formam com a crítica e a história espécie de conjunto a que recorre o leitor, em seu esforço interpretativo, co...


Existem obras literárias que formam com a crítica e a história espécie de conjunto a que recorre o leitor, em seu esforço interpretativo, com férteis e valiosos resultados. Esse conjunto se constitui, por assim dizer, em etapas interdependentes e harmoniosas, de modo que as tantas possibilidades ou estágios de leitura complementam e aprofundam o entendimento da realidade da ficção.

Assim, na avaliação da crítica, a obra se desvela; enquanto a palavra da história, fundamentando-se em conclusões críticas reveladoras, recusa a exclusividade ou supremacia dos fatos externos. Não é que inexistam conflitos neste percurso. Pelo contrário. Eles cumprem aí seu papel, garantindo os confrontos, a pluralidade que somente enriquece o ângulo de visão. Assegurado o julgamento, na amplitude da perspectiva. Iluminados o texto e o leitor.



Na perspectiva de Goldmann, isto é, considerando a relação entre o romance moderno e a totalidade social, Alfredo Bosi propõe quatro tendências pelas quais é possível distribuir o romance brasileiro moderno: romance de tensão mínima, de tensão crítica, de tensão interiorizada e de tensão transfigurada. O segundo tipo define-se como aquele “em que a tensão atingiu ao nível da crítica, os fatos assumem significação menos "ingênua" e servem para revelar as graves lesões que a vida em sociedade produz na pessoa humana: logram por isso alcançar uma densidade moral e uma verdade histórica muito mais profunda. Há menor proliferação de tipos secundários e pitorescos: as figuras são tratadas em seu nexo dinâmico com a paisagem e a realidade sócio-econômica (Vidas secas, São Bernardo, de Graciliano Ramos), e é dessa relação que nasce o enredo.



A Bagaceira - “um grito de justiça!”

Considerando-se os elementos integrantes da estrutura narrativa, torna-se inadmissível identificar com a seca a temática do livro de José Américo de Almeida. Quando isto acontece, é porque fica ignorado o outro lado da antítese: o meio físico e social que a bagaceira personifica. Em destaque a partir do título. Comprometendo-se com esta mutilação o entendimento da própria ideologia do romance.



Desmistificando a seca, o romance paraibano encontra sua força de denúncia na ironia do contraste estabelecido entre a "natureza privilegiada" do brejo e a degradação humana. Vinculando-se o estado degradado à estrutura moral e sócio-econômica que a bagaceira personifica. Nesta perspectiva, a funcionalidade da paisagem não deixa margem a que se confunda sua exuberância com o descritivismo de efeito meramente pitoresco. Pois, além de tornar mais chocante a miséria humana, "a verdura perene" desmascara a face desértica forjada como identificação do Nordeste, em decorrência da ação dos "exploradores das secas". Em tais circunstâncias, o paisagismo de A bagaceira se faz intencional recurso expressivo no sentido de superar a falsa imagem dos problemas da região, "cujas reais possibilidades de desenvolvimento passaram a ser subestimadas, falando-se na inevitabilidade de seu progressivo abandono".

(Excertos de Re-leitura de A Bagaceira)



Bússola meus instrumentos de navegação estão em meus próprios pés e ele navega como um pequeno barco indo de um lado a outro de ocea...



Bússola

meus instrumentos de navegação
estão em meus próprios pés

e ele navega como um pequeno barco
indo de um lado a outro de oceanos

sem enjoos, negando os eu te amos
indo para lá, indo para cá

ao sabor dos ventos, tempestades
ancoradas no fundo do lar

titanics que nunca, nunca afundam
mas ficam boiando no mar

meridiano magnético de corações
e dentes que só mastigam espinhas

imã de sensações que já já acontecerão
não se sabe em que porto

não se sabe em que seios, eu sei,
acontecerá o repouso do destino

terra à vista, dirão os piratas das cidades
mas onde (?), - logo ela fica invisível

logo a terra marulha também
vira uma espécie de tsnunami no olhar

mas como na parábola do elefante
não consigo ver além da minha tromba

viro torrão de sal no mar, não na xícara
e nem os mapas me localizam

“para onde vou (?)”
- “responde, poesia, musa que não sabe das flores!”.



Afluente

agora sou teu afluente
e tu mergulhas até o fundo em meus rasos

acaso não sabes daquelas cheias nos rios
que navegam minhas dores e arroubos?

e daquela noite, que peguei o barco
e cai no breu sem o bote salva-vida
sem o timão para me guiar para a claridade?

sou teu afluente, mas tu és meu escrínio profano
mesmo sem ter chorado a virgindade
que não perdeu comigo

tuas águas me tiram do Vale do Acor
porque é para teus líquidos que nado.



Uai!

ah, belo horizonte

de cheiros
no sotaque de seu mercado

nos reclames do vendedor de uais
dos torresmos
nos botecos, que nunca são iguais

bh
é terra de prosa
mas a poesia teima o ar.

(Do livro, ainda inédito, "Cabo Branco e outros lugares que não estão no mapa")

Se não é tarefa fácil avaliar a figura literária de um escritor do passado, o que dizer do desafio de comentar a contribuição de um poeta do...


Se não é tarefa fácil avaliar a figura literária de um escritor do passado, o que dizer do desafio de comentar a contribuição de um poeta do nosso tempo? No primeiro caso, o tempo costuma ser aliado do trabalho crítico, que consiste em aferir-se à repercussão do estilo do autor ao longo dos anos, em investigar-se quanto sua obra tem sido lembrada e qual a sua relevância na engrenagem complexa a que Antonio Candido chamou de literatura como sistema. Já no caso dos nossos contemporâneos, não podemos contar com o auxílio na maturação das nossas impressões, o que, sem dúvida, é uma dificuldade a mais a embaraçar o trabalho do leitor. E, no entanto, essa dificuldade pode ser convertida em favor, se não da objetividade, da autonomia propiciada pela inestimável singularidade desse ângulo de visão - o do tempo presente - em que os artistas podem ser flagrados ainda em plena desordem e imprevisibilidade de sua oficina, cuja produção acompanhamos em tempo real e cujos resultados medimos tão-somente com a régua sincrônica dos efeitos produzidos por cada um dos poemas que vão se acumulando.

O autor contemporâneo que tenho em mente, enquanto faço essas anotações, é o poeta paraibano Sérgio de Castro Pinto, que vem recentemente de celebrar seus 70 anos de vida e 50 de poesia, com o lançamento, pela Editora Escritura, de sua Folha corrida, antologia de poemas escritos entre 1967 e 2017. Ali se encontra o essencial do que ele já publicara em A Flor do gol (2014), Zoo imaginário (2005); O Cerco da memória (1993); A Quatro mãos (1983); Domicílio em trânsito (1983); A Ilha na ostra (1970) e Gestos lúcidos (1967), além de registros da fortuna crítica e de opiniões esparsas sobre a sua obra. Uma produção e uma fortuna crítica que lhe garantem o lugar de maior importância entre os poetas paraibanos, desde Augusto dos Anjos.

Em seu ensaio clássico A Arte como procedimento, V. Chklovski nos ensina que a função da arte é resgatar a nossa capacidade de perceber o mundo, que vai se enfraquecendo gradativamente devido ao hábito; "Para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte". Parece ser essa uma formulação bastante consensual em teoria literária. Todavia, há um detalhe que algumas vezes nos escapa, ao adotá-la: é que há algo que precede a desautomatização do objeto (do mundo representado) na obra de arte, qual seja a desautomatização da própria linguagem. E é nesse aspecto que a obra de Sérgio de Castro Pinto mais me sensibiliza: o poeta não deixa que as palavras repousem na esterilidade confortável do hábito. Comprovam-no os exemplos que seguem:
(1) No poema "As Cigarras", o primeiro verso se encadeia sintaticamente com o título para produzir uma metáfora surpreendente: "As cigarras/ são guitarras trágicas". Ressalta, no plano semântico, a qualidade comum que se pode atribuir aos dois termos ali associados: ambas, cigarra e guitarra, são seres ruidosos; ambas, predestinadas tragicamente a produzir esses sons. Mas não apenas isso: o leitor mais afeito aos recursos da poesia terá percebido na aliteração (aS CigarraS São guitarraS trágicaS) o efeito que faz com que as cigarras/guitarras do verso ressoem vivamente no corpo do leitor. E não apenas isso: com mais alguma argúcia, esse leitor perceberá que cigarras, guitarras e trágicas compartilham tantas letras que o efeito resultante é praticamente o de uma metamorfose de uma palavra em outra, à medida que o olho percorre o verso.

(2) Em "Atos falhos", à expressão usada no título -´um clichê do vocabulário psicanalítico - o poeta agrega um segundo contexto semântico, no qual o termo "atos" (apartado visualmente de "falhos" pela quebra intencional do verso) evoca cada uma das divisões de uma peça de teatro: "Sequer os ensaio./ mas os meus atos/ falhos/ encenam-se assim:/ eles já no palco/ e eu ainda/ no camarim." A imagem alegórica de uma encenação não ensaiada mantém, entretanto, perfeita correspondência com o conceito freudiano.

(3) Em "Os pobres", uma sequência de metáforas conceituam poeticamente "as costelas dos pobres": "móbiles de Calder", "armas brancas disfarçadas na bainha da carne", "adagas do mais puro aço". Mas, no último verso, o processo se inverte, e a expressão "osso duro de roer", cujo sentido metafórico tornou-se de uso comum, resgata parcialmente a referência ao sentido,literal de "osso", com o que se restaura sua expressividade.

(4) Em "Kitsch", a descrição de uma cena em que "soldados de polícia/ ofertam às namoradas/ buquês de roletes, além de melodias..." é arrematada magistralmente, equilibrando-se entre o humor e o lirismo, no surpreendente jogo paronomástico entre um gerúndio e um nome próprio: "...e vão orlando a noite/ à voz de orl
ando dias".

Seriam muitos os exemplos. Com efeito, não há um único poema de sua Folha corrida em que o poeta não tenha empregado ao menos um recurso expressivo voltado à função da desautomatização acima mencionada. Munido de uma rica provisão de recursos criativos (procedimentos rítmicos, sintáticos, semânticos), desde os primeiros poemas trazidos à luz, Sérgio de Castro Pinto se empenha em desconstruir nossos hábitos de percepção e nos representa o mundo a partir de ângulos inusitados. Observe-se que a singular subjetividade dessa poesia não resulta de fundos mergulhos narcísicos, mas se revela, quase sempre, no gesto fotográfico de olhar para o mundo e reinventá-lo, traduzi-lo, nomeá-lo. Há, em sua poesia, uma espécie de olhar redefinidor lançado sobre a realidade cotidiana. Mas nem os bichos, nem os objetos e circunstâncias do cotidiano; nem a crônica afetiva da cidade e seus personagens; nem o registro de uma ou outra referência pontual a situações colhidas da memória individual - nenhuma dessas matérias prevalece sobre o intento lúdico de reordená-las nesse universo autônomo que é o das palavras. (Texto publicado no livro "Paraíba na literatura", Editora A União, João Pessoa, Paraíba, 2019)

Poemas analisados:

a) as cigarras

são guitarras trágicas.

plugam-se/se/se/se
nas árvores
em dós sustenidos.

kipling recitam a plenos pulmões.

gargarejam
vidros
moídos.



o cristal dos verões.

b) atos falhos

sequer os ensaio.

mas os meus atos
falhos
encenam-se assim:

eles já no palco
e eu ainda
no camarim.



c) os pobres

as costelas dos pobres
são móbiles
de calder

ou armas brancas
disfarçadas
na bainha da carne?

as costelas dos pobres
são adagas
do mais puro aço.

aço temperado na caldeira dos trópicos.

desembainhadas, as costelas
dos pobres
são um osso duro de roer.



d) kitsch

ao amigo joaquim inácio brito

soldados de polícia
ofertam às namoradas

buquês de roletes
além de melodias.

após, batem em retirada
e vão orlando a noite
à voz de orlando dias.

Tudo já foi dito. Vivemos de variações do mesmo tema ou outros temas já variados. Novamente Anne Frank. A conhecida estória da menina e seu ...


Tudo já foi dito. Vivemos de variações do mesmo tema ou outros temas já variados.

Novamente Anne Frank. A conhecida estória da menina e seu diário num abrigo. Os livros sagrados (são?) estão aqui. A ciência, aqui. A tragédia do homo sapiens, aqui. Todos fazem uma pergunta. Se nossa vida pode ser bem melhor, por que é tão complexa?

Um grupo é subjetivado com marcas de gado. Todo ego gira em torno de status, poder, dinheiro. Vaidade. O outro e a outra? Nada a ver... É coisa, objeto. Não me diz respeito. Querem ficar mais ricos e a morte de outras pessoas nada tem a ver. São outro eu que não eu. Um corpo estranho.

Anne Frank é a outra dos alemães. Tem outra marca. Sorte que escreveu um diário. Mesmo assim, deturpado.

Anne Frank é corpo estranho como milhares de jovens pretos, pobres, deficientes, etc. Morrer é estatística. Só. E o diário fica para deleite dos que conversam milhões de vezes sobre o mesmo.

Um dos primeiros diários em forma de papiro foi encontrado no antigo Egito. Variações do mesmo tema. Quem tem, tem e quer mais.

Só um detalhe: Se tudo é variação de temas, o que estamos fazendo aqui? Fico mudo e não consigo falar "só sei que nada sei".

Querida Kitty, nunca saímos do eterno e monótono presente de uma vida que anda em círculos. Circo?


Música é fator de encantamento para todos, na diversidade de idades, épocas e acontecimentos. Para nós, médicos, que vivenciamos o sofriment...


Música é fator de encantamento para todos, na diversidade de idades, épocas e acontecimentos. Para nós, médicos, que vivenciamos o sofrimento alheio, representa não apenas a busca da beleza, mas também a conquista de tranquilidade, relaxamento e conforto.

Não me refiro aos mais dotados, compositores ou instrumentais, mas, aos que como eu são apenas capazes de sentir e de amar as peças musicais. Por isso, nessas palavras sintéticas, serei mais “pessoal”, trazendo aos colegas e ao público algo do que vive em meu espírito e envolve minhas atividades.

Sabemos que não são raros os exemplos de médicos aptos à análise profunda de obras célebres. Um dos quais permanece ainda muito viva na minha memória, é a do sempre saudoso e emblemático Mestre, Luiz V Décourt, emérito catedrático da faculdade de medicina da USP, que tive a honra e o privilégio de ter sido seu discípulo. Sua erudição e genialidade estão expressas no admirável estudo que fez do Quarteto nº 14, opus 131, de Beethoven, um dos mais importantes de um conjunto de obras magníficas para cordas.

Por outra, compreendemos certas limitações contemporâneas. Não há dúvida de que os progressos e as exigências da medicina moderna vêm acarretando nosso maior distanciamento, temporal e mental, das atividades musicais. E essa ocorrência é lamentável.

A estranha e conhecida frase de Stravinsky contida em sua autobiografia: “A música, por sua própria natureza, é impotente para expressar qualquer coisa”, deve ser entendida apenas como uma afronta a oponentes estéticos que atribuíram às peças musicais fins extramusicais.

Sabemos ainda que na Idade Média um programa de cultura geral abrangia o estudo de sete artes liberais, herdadas da Antiguidade. Elas eram agrupadas em dois conjuntos: o Trivium, abrangendo três artes literárias (gramática, retórica e didática) e o Quadrivium, ulterior, com quatro disciplinas “matemáticas” (aritmética, geometria, astronomia e teoria musical). Como acentuou o competente educador, Prof. Monroe, “A ciência musical abrange essencialmente as leis numéricas que regem a harmonia. O estudo da estrutura dos intervalos e da rítmica introduz os indivíduos no mundo da melodia".

E a magia permanece expressiva, alentadora, sem declínio. Perante o universo da música, a minha experiência na prática clínica da medicina autoriza-me a afirmar que ela modifica o ambiente que nos envolve e favorece a sensação de uma plenitude de vida. Essa sistemática sublime vem constituir ao médico um ambiente suave no seu mister diário dos consultórios, dando-lhe maior tranquilidade para formulação do diagnóstico e evidentemente amenizando o estado de inquietude, ansiedade e medos dos seus pacientes.


Há um ano que estou em nova morada. Mais perto do mar. Mais perto do parque. Mais perto. E mais longe também. Mais longe dos meus 35 anos na...


Há um ano que estou em nova morada. Mais perto do mar. Mais perto do parque. Mais perto. E mais longe também. Mais longe dos meus 35 anos na rua dos oceanos. Dos nascimentos e das mortes. Do fechamento de um ciclo. E aqui, da abertura de outros. E com as paredes em branco. E isso é bom. E difícil também. Mas, mais bom!

E me perguntam - “E aí Ana , já adaptada? Saudades da casa?” E para meu espanto , eu me adaptei na hora que vim com o caminhão de mudança. E na primeira noite. Aquele quarto parecia of my own há tempos. Claro que não achava nada, mas subjetivamente falando, aquele espaço, já era meu. Sou um animal que me aquieto logo.

E já nos primeiros dias, ouvi o som de uma flauta a tocar. Notei que alguém ensaiava o instrumento: dó ré mi fá sol....acordes repetitivos. E muitas horas do dia. Pensei , ah! Se fosse Vítor Diniz, o filho de Dodora, minha amiga, e que é flautista. Mas esse, mora alhures. O daqui é um desconhecido , o que torna tudo ainda mais intrigante. E o melhor lugar para esse deleite? o meu banheiro. Melhor acústica, proximidade com o vizinho de rua, e pronto. Estava feito a minha trilha sonora dos banhos e conversas no espelho. E o som da flauta, assim como o do violino, me remetem aos filmes – O Violinista no Telhado; O Violinista Que Veio de Longe (exibido recentemente na Fundação Casa José Américo); A Flauta Mágica...

Passei a observar os sons do novo endereço. A algazarra das crianças de férias que brincam na piscina do prédio ao lado; o silêncio de um gato, que fica estático na janela em frente ao meu quarto desnudo, tenho até a impressão de que me observa quando abro a janela; o baticum do apartamento de cima, que está se preparando para novo inquilino; meu despertador que insiste em me acordar na hora, mal sabe ele que ando com o sono diminuído e desperto antes; um cachorro que late, mas nem de longe parecido com aquele de O som ao Redor; o alarme da porta, agora com tudo sem chave e novas tecnologias, tem aquela musiquinha avisando que meu filho chegou . Ou saiu. Mas é o som da flauta que me eleva o espírito, me trás paz, e beleza no dia a dia.

E o ano começou com apreensões, perdas, novos desafios, e para mim em especial, com o ninho literalmente a ficar vazio. Sempre quis os filhos longe, para o mundo, “...mas o que importa o cérebro comparado com o coração?” Mrs Dalloway ouviu de Sally! Logo eu que prezo tanto a solidão e sou tão independente. Mas logo logo, quando chegar em casa, só terei o som da minha flauta mágica. Aquela que povoa os meus dias, e que me encanta dizendo: vai dar tudo certo! Acredite! E agradeço de ter esse som, doce e suave, a me embalar o tempo.

E o som da flauta me inspirou a escrever, a primeira crônica do ano.

Que venha janeiro! Estou (quase) pronta!

Revi, esta semana, o musical baseado em Os Miseráveis. Dessa segunda vez me pareceu melhor. Não estou dizendo que é um filme ruim, muito p...



Revi, esta semana, o musical baseado em Os Miseráveis. Dessa segunda vez me pareceu melhor. Não estou dizendo que é um filme ruim, muito pelo contrário, trata-se de uma produção excelente, do ponto de vista do visual, do elenco e, sobretudo, do tratamento dado àquilo que é o cerne do romance de Victor Hugo: a injustiça, que se divide em cega observância e cumprimento da lei, cuja encarnação é o inspetor Javert, e em acumulação de riquezas, que fecha os olhos aos desvalidos e necessitados, ajudando a criar uma sociedade de submundo. O filme dirigido por Tom Hooper (UK/USA, 2012) é, portanto, uma obra a não ser esquecida.

O problema, me parece, está no gênero escolhido – musical – e no elenco, apesar de contar com estrelas bem conhecidas. Senti como muito artificial (artificial já é, per se) as falas transformadas em músicas, muitas delas difíceis de se identificar como uma melodia palatável. Ao lado disso, vemos que em determinados momentos soa, mais do que artificial, ridículo, ver Hugh Jakman e Russel Crowe tentando cantar. Por mais que eu tivesse boa vontade, não me furto de dizer que, em alguns momentos, fiquei com vergonha das interpretações. Assim como não consigo descolar Jean Valjean da figura de Gérard Depardieu, na excelente série da televisão francesa, de 2000, que depois virou filme, com seis horas de duração – para mim, a melhor versão do romance no cinema –, também não consigo apartar as figuras de Hackman e Crowell de Wolverine e do gladiador Maximus. O pecado na série da televisão francesa é John Malkovich interpretando Javert. Malkovich sempre interpreta a si mesmo. O melhor Javert, para mim, é Geoffrey Rush (EUA, 1998). Javert é duro, inflexível, só enxerga a lei. Não há nada para além na face da terra, além da lei. Victor Hugo deixa isto bem claro, no romance. Mas Javert não é sem emoções ou expressividade. Embora seja contido. No caso, de Crowell, como intérprete de Javert, temos um inspetor agressivo, em lugar de um homem de cálculo, um Javert que parte para uma disputa corporal com Jean Valjean, em lugar de deixar o trabalho sujo para seus subordinados, impondo-se pela sua estatura moral, embora equivocada e doentia.

No tocante ao personagem Thénardier, o problema é mais grave. Quem interpreta um dos maiores vilões e um dos seres mais vis e abjetos da literatura é Sacha Baron Cohen. Não preciso dizer mais nada... O diretor apostou na faceta menos importante de Thénardier, que é o histrionismo, interpretação muito fácil para Sacha Baron Cohen. A natureza de Thénardier é a de um homem sem humanidade, sem piedade, um monstro que explora as crianças dos outros, como fez com Cosette, e explora e abandona os seus filhos à própria sorte, cujo resultado é a morte dos ainda jovem Gavroche e Éponine, e o desaparecimento dos dois menores de 5 anos... O histrionismo do ator, que eu diria canastrice, esconde quem é, na realidade, Thénardier, cujo caráter se complementa, quando migra para a América e se tornar traficante de escravos.

Outra coisa que achei grave no musical é o fato de que, muito dificilmente, as pessoas que não conhecem o romance, entenderão o que realmente ali se passa. Há muitas lacunas, uma das principais causas é a transformação do diálogo em cenas cantadas. O cantar toma muito tempo; os diálogos são muito mais ágeis, além de soltar mais a intepretação dos atores. Apesar das 2 horas e 38 minutos do filme, as lacunas são enormes, que poderiam ser minimizadas se não fosse um musical. Só para dar um exemplo, de modo a não me alongar, um dos episódios mais tensos do romance, a fuga de Jean Valjean pelos esgotos, levando consigo Marius gravemente ferido, é transformado em uma cena rápida e pífia.

Plasticamente, no entanto, vejo como um dos melhores cenários, este do musical. E já que estamos falando de beleza, fico inconformado com as belas Cosettes – Virginie Ledoyen, na série francesa, e Amanda Seyfried, no musical – contracenando com o narigudo Enrico Lo Verso e o bocudo Eddie Redmayne, respectivamente. Cosette tendo sofrido muito nas mãos dos Thérnadier, mereceria um par mais bonito.


Ler é uma das melhores condições em que me vejo. Ler faz parte de minha saúde mental e profissional. LER, não. Ela faz oposição ferrenha e...



Ler é uma das melhores condições em que me vejo. Ler faz parte de minha saúde mental e profissional. LER, não. Ela faz oposição ferrenha e dolorosa ao movimento de passar uma página do livro, ao ato de acessar as plataformas digitais, e ao toque dos dedos nos nossos teclados contemporâneos, virtuais.

Assim como tenta impedir que você leia, pela tortura da dor, impõe que você não escreva o que outros poderiam ler. A LER, portanto, é a anti-leitura.

Maldosa, mancomunada com tendões, nervos, músculos e ligamentos que ela inflamou contra ti, te persegue o dia todo e, à noite, costuma conjugar, com mais vigor, seu verbo onipresente: o intransitivo ‘latejar’. Dormir? Se liga, ela não vai desligar! E não adianta pensar num mar de histórias para afastar-se de sua sanha de insônia. Ela dói, dói, dói, dói, dói, dói, a cada segundo em que sua onda vai e vem.

A LER é o pior dos verdugos: faz você perder a cabeça sem nem mesmo te decapitar.

O médico diz que ela pode estar associada a algo mais crítico – tendinite, artrite, bursite? Como odiei essas rimas tristes! – e sugere uma leitura mais profunda do braço alquebrado, por meio de uma tomografia computadorizada. Mas avisa: pelo SUS, pode demorar! – como a dizer que, se eu não tomar uma iniciativa privada, deverá ser uma leitura a longo prazo. Literalmente.

Injeções e comprimidos até atenuam a sua tortuosa tática. Mas a desgraçada da LER dói, dói, dói, dói, dói, dói, ainda que esteja um tanto dopada.

Com a mesma intensidade que adoro ler, eu odeio a LER. Para tentar potencializar minha resiliência, em proporção extensiva, contra tudo o que ela faz para eu não ler bem. Nem, assim, viver.

Maldita LER! Tomara que ela tenha uma Lesão por Esforço Repetitivo de tanto bater na mesma tecla de uma dor alheia da qual tanto necessita.

Maldita, maldita, maldita LER.

Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo. Todos os dias olho pelo terraço para o pedaço de praia com mar, e vejo às vezes que as ...



Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo. Todos os dias olho pelo terraço para o pedaço de praia com mar, e vejo às vezes que as espumas parecem mais brancas e que às vezes durante a noite as águas avançaram inquietas, vejo isso pela marca que as ondas deixaram na areia. Olho as amendoeiras de minha rua. Presto atenção se o céu de noite, antes de eu dormir e tomar conta do mundo em forma de sonho, se o céu de noite está estrelado e azul-marinho, porque em certas noites em vez de negro parece azul-marinho. O cosmos me dá muito trabalho, sobretudo porque vejo que Deus é o cosmos. Disso eu tomo conta com alguma relutância.

Observo o menino de uns dez anos, vestido de trapos e macérrimo. Terá futura tuberculose, se é que já não a tem.

No Jardim Botânico, então, eu fico exaurida, tenho que tomar conta com o olhar das mil plantas e árvores, e sobretudo das vitórias-régias.

Que se repare que não menciono nenhuma vez as minhas impressões emotivas: lucidamente apenas falo de algumas das milhares de coisas e pessoas de quem eu tomo conta. Também não se trata de um emprego pois dinheiro não ganho por isso. Fico apenas sabendo como é o mundo.

Se tomar conta do mundo dá trabalho? Sim. E lembro-me de um rosto terrivelmente inexpressível de uma mulher que vi na rua. Tomo conta dos milhares de favelados pelas encostas acima. Observo em mim mesma as mudanças de estação: eu claramente mudo com elas.

Hão de me perguntar por que tomo conta do mundo: é que nasci assim, incumbida. E sou responsável por tudo o que existe, inclusive pelas guerras e pelos crimes de lesa-corpo e lesaalma. Sou inclusive responsável pelo Deus que está em constante cósmica evolução para melhor.

Tomo desde criança conta de uma fileira de formigas: elas andam em fila indiana carregando um pedacinho de folha, o que não impede que cada uma, encontrando uma fila de formigas que venha de direção oposta, pare para dizer alguma coisa às outras.

Li o livro célebre sobre as abelhas, e tomei desde então conta das abelhas, sobretudo da rainha-mãe. As abelhas voam e lidam com flores: isto eu constatei. Mas as formigas têm uma cintura muito fininha. Nela, pequena, como é, cabe todo um mundo que, se eu não tomar cuidado, me escapa: senso instintivo de organização, linguagem para além do supersônico aos nossos ouvidos, e provavelmente para sentimentos instintivos de amor-sentimento, já que falam. Tomei muita coisa das formigas quando era pequena, e agora, que eu queria tanto poder revê-las, não encontro uma. Que não houve matança delas, eu sei porque se tivesse havido eu já teria sabido. Tomar conta do mundo exige também muita paciência: tenho que esperar pelo dia em que me apareça uma formiga. Paciência: observar as flores imperceptivelmente e lentamente se abrindo.

Só não encontrei ainda a quem prestar contas.

(2020, Ano de Centenário de Clarice Lispector)

Nossos fios de missangas “A vida é um colar: Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas, as missangas...” (Mia Couto) Cer...


Nossos fios de missangas

“A vida é um colar: Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas, as missangas...” (Mia Couto)

Certo dia, não lembro como, há muito tempo, chegou em minhas mãos, um texto de Mia Couto. Fiquei surpresa inicialmente com o nome do escritor, para mim bem enigmático, que trazia uma sonoridade que me atraía. “Cada homem é uma raça” foi um dos primeiros textos lidos. Tanto impacto trouxe, que mesmo com todo respeito a obra de Saramago, passei a ter em Mia meu próprio “Saramago”. Como se ele fosse meu Prêmio Nobel particular, tamanha admiração pela escrita que pensei ser inimaginável. Não entendo de crítica literária, mas como leitora, considero, assim como a Clarice Lispector, que esse o autor representa uma experiência ímpar de escritura.

Apesar de, depois desse primeiro contato com a leitura, desejar muitíssimo encontrar com ele, perdi as duas oportunidades que tive. Uma na cidade de João Pessoa e outra em Salvador. Mas mantenho um reencontro constante com ele na literatura. Todos os anos a gente se reencontra em algum momento da vida, dos dias, das circunstâncias mais malucas em que no meio de tantas coisas eu parto em direção às vozes que sal- tam das palavras escritas de Mia Couto. Assim foi no “Histórias Abensonhadas”, “Terra Sonâmbula”, “O Fio das Missangas” e mais recentemente com “E se Obama fosse africano?”.

Eu só posso imaginar e crer que escrever seja algo sagrado, e mais sagrada ainda seja a escuta que escritores e escritoras fazem de seu Tempo. No caso de Mia, penso, como em Manoel de Barros, é essa entrega ao Outro, capaz de perfazer uma narrativa não centrada em si mesmo. Ao ler esses textos fico imaginando como a oralidade é capaz de tanto, do Todo, do inimaginável, como é capaz de filosofar ultrapassando a racionalidade e fazendo tanto sentido suas metáforas, dizendo tan- to e de um modo tão simples.

Os textos nos tiram de gaiolas, são vOos imensos. Essas narrativas me fazem voltar aos banhos de chuvas torrenciais correndo pelas ruas de minha cidade natal, indo de biqueira em biqueira, ficando rosa a cada clarão dos relâmpagos loucos estalando nos céus.

Em 2019 tive outro reencontro com Mia Couto, no corpo em cena de André Morais, multiartista paraibano, que no espetáculo Memórias de Terra e Água me trouxe de volta para Mia. O corpo cênico do André me lembrou muitíssimo os derviches, protagonistas das danças sufis (danças oriundas da Síria). No espetáculo os textos sobre finitude e eternidade viravam dança, um bailar.

O corpo do ator dançou rodopiando, tecendo no palco os fios invisíveis, juntando as missangas de Mia Couto oriundas de seu povo, também tecidas como narrativas de si. A África que habita em cada um de nós. É muito bom poder costurar inicialmente o invisível, o que está por dentro. Costurar pelo avesso. No espetáculo dirigido por Lúcia Serpa, André costurou e muito risos e lágrimas, acho que chegou de certo modo ao Infinito do Ser, se refazendo da saudade de seu pai. André juntou muitas missangas de formas e cores diferentes, pegando cada texto e sendo capaz de narrar com Fabiano Diniz, que fez a iluminação do espetáculo, e Victor Figueiredo, a poética do Mia Couto e a sua própria.

Quando a gente costura pelo avesso ninguém vê, só nós mesmos. O que as pessoas vêem é o que está por fora, o alinhavo só a gente sabe o trabalho que dá, os furos de agulha que a gente leva, deixando pequenos bordados dos poros sangrando.

Quando finalmente a gente vira a cena pelo avesso tenta, na medida do possível, harmonizar, expressar com segurança a tentativa de consertar e criar. Encontrar novos “fios de missangas” trazidos por André Morais, Victor Figueiredo, Fabiano Diniz, Lúcia Serpa e Wigne Nadjare foi me deixar seguir na descoberta do mundo, um vasto mundo...

"Não é o artista quem inventa o feio, o chocante. A dor da vida é que é assim, quando não idealizada. Se lembrarmos bem, não foi propri...


"Não é o artista quem inventa o feio, o chocante. A dor da vida é que é assim, quando não idealizada. Se lembrarmos bem, não foi propriamente a figura humana que os olhos do mundo viram pisar no deserto da lua. Mas um pacote disforme, inflado, trôpego e desengonçado, no qual seria impossível identificar os traços de Gagarin ou de Armstrong. E ainda havia a pergunta: Para quê? Pois a corrida espacial, consumindo cifras incalculáveis, sempre recebeu críticas, pelo sacrifício que impunha aos deserdados habitantes da terra."



Não posso deixar de imaginar a reação do Mestre Juarez da Gama Batista, se pudesse presenciar minha ansiedade - timidez mesmo - no cuidado extremo de encontrar o ponto de equilíbrio para o trato com a sua produção intelectual. Um sorriso suave, complacente, os olhos quase fechados, a cabeça levemente inclinada para trás - o seu jeito afetuoso de subestimar minhas preocupações e inseguranças. Depois, as palavras de encorajamento, refletindo sempre uma expectativa maior que as minhas possibilidades. Tantos anos passados, e ainda me apóio na força desta lembrança.



É isto a festa de Centenário: um desafio à morte absoluta. A presunção de que, sem o lugar à mesa, mesmo assim, é possível a consubstanciação de uma outra forma de presença. Que não responde à premência da saudade e dos afetos. Mas é pesada substância que se impõe ao tempo, na dimensão da memória e da palavra. Uma festa cuja realização traz sempre o caráter de excepcionalidade. Pois, apenas o tempo não a justifica, nem tampouco a morte. Somente a vida.



(fragmentos sobre Zé Lins...)

"Quem não identifica, na realidade contemporânea, os milhões de “moleques Ricardos” excedentes, marginalizados pela revolução tecnológica e pela ideologia da globalização? Milhões de Ricardos para quem sobrou a última classe e nenhum destino."



"Usina coloca em discussão os aspectos da ecologia que constituem, hoje, preocupações mundiais. A devastação dos ecossistemas, da biodiversidade, a poluição das águas e a degradação dos homens. E em sua percepção o que sobressai é a visão de conjunto, a apreensão da problemática no vértice de suas implicações. Não se trata de salvar apenas as baleias ou o mico-leão-dourado ou as tartarugas marinhas.

A obra de Zelins antecipa a consciência crítica de hoje que preconiza uma articulação ético-política entre os três registros ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade."



"Uma característica que diferencia a construção ficcional de José Lins do Rego é a densidade dramática que ele imprime aos seus personagens, sem distinção da classe social que representem. E um aspecto do tratamento dispensado à cultura popular, fonte original de sua criação, que não se deforma na superficialidade da abordagem folclórica. Elimina não apenas o distanciamento entre a cultura erudita e a popular mas, sobretudo, a hierarquia entre essas duas formas do saber."

(Excertos)


Eita pai, mas que saudade Dos nossos papos compridos Quando tu me convocavas E esquecias os motivos Eita pai são quatro anos E eu ch...



Eita pai, mas que saudade
Dos nossos papos compridos
Quando tu me convocavas
E esquecias os motivos

Eita pai são quatro anos
E eu cheio de novidade
A vida muda meus planos
Assusta a velocidade

Eita pai, sou vô agora!
Tu amarias Letícia
Fiquei mole com a notícia
Mas havias ido embora

Eita pai, tem os problemas
Sem ninguém pra dividir
Nos mais variados temas
Sinto falta de te ouvir

Eita pai, agora entendo
Que conselhos são em vão
Pois só se aprende vivendo
Sofrer por filho é ilusão


Eita pai, a vida é dura
Talvez a grande vitória
Esteja em contar a história
Feito tu de alma pura

Eita pai, mas é verdade
Que um dia serei saudade
E espero que assim sentida
De quem muito amou na vida

Chegue, seja bem-vindo, aproxime-se, tome assento. Não faça cerimônia. A casa é sua. O tempo é seu! É inevitável que um ano suceda o outro...



Chegue, seja bem-vindo, aproxime-se, tome assento. Não faça cerimônia. A casa é sua. O tempo é seu! É inevitável que um ano suceda o outro. É inevitável que 2020 suceda 2019.

Dizem que “rei morto é rei posto”. Sei não... 2019 foi um ano tão dramático, tão fundamental… que não vamos nos livrar dele assim tão de repente, tão naturalmente.

Não serão as belas e coloridas girândolas pipocando no céu que vão apagar os efeitos do que aconteceu em 2019. De bom e de ruim.

Eu continuo aqui, vos falando, escrevendo, lendo, do Miramar, em João Pessoa, Paraíba. Brasil. Marque bem esse nome, esse lugar, que ele existe, é belo, acolhedor, principalmente nas manhãs de domingo. Chegue, se aproxime, não faça cerimônia.

Eu falei que estou lendo, e é verdade. É o que mais tenho feito. Antes, estava um tanto dispersa, sem conseguir me concentrar em nenhuma leitura, mas recuperei um pouco do meu foco nessas últimas semanas.

Comprei vários livros, alguns para mim mesma, outros para presentear. Dentre esses estavam “Pedagogia do Oprimido” da Paz e Terra, no “energúmeno” Paulo Freire, um livro que sempre quis ler, mas nunca o tive à mão. Tentei agora, mas ainda não deu. Não combinava com o espírito do tempo: dispersivo, festivo e propício para leituras mais leves. Adiei, mais uma vez, a leitura.

Em seguida, veio “De menina a Mulher”, de Malvine Zalcberg, que me provocou no início, mas que também foi posto de lado, a leitura adiada para outra ocasião. Foi um presente de Natal das irmãs Zélia e Sônia Pessoa. Muito do meu agrado, pois fala de dois assuntos que me são caros: a questão feminina e o cinema, ou, melhor dizendo, no cinema.

Em seguida, tentei encarar “Vida Aberta” do grandioso W. J. Solha, mas também não passei das primeiras páginas. Muito denso para a superficialidade dos meus dias atuais.

Aí comecei a ler “Essa Gente” de Chico Buarque, um presente da irmã Graça. Se achei o anterior muito denso, o de Chico me decepcionou pela sua superficialidade. Sei que muitas das minhas amigas gostaram de fina ironia do livro, mas eu achei-o muito inferior ao talento do meu amado Chico. Cheguei ao fim, mas não foi fácil. Sempre algo me distraía e convidava a abandonar a leitura. Bem, a esta altura, devo confessar que tenho enfrentado dificuldades de ler depois das duas cirurgias de catarata a que me submeti. Não tenho certeza de que é aí que está o nó da questão, mas é dessa data que comecei a ter dificuldade de concentração na leitura.

Por último, resolvi encarar o livro de memórias de Fernanda Montenegro: “Prólogo, ato, epílogo”, cujo tema, o teatro e a carreira teatral de uma atriz brasileira que acabou de completar 90 anos e dedicou toda a sua vida aos palcos e às telas do teatro, da televisão e do cinema. É mesmo uma recapitulação da história do teatro brasileiro, principalmente do Rio e São Paulo, desde os anos 1950, quando ela iniciou sua carreira, até o fim do século. Não só dela, mas de toda a sua família: sua filha Fernanda Torres, seu marido, Fernando Torres, e todos os grandes atores e diretores com quem o casal trabalhou ao longo dessas décadas. É uma obra fundamental para quem quer se inteirar sobre o teatro brasileiro e o que aconteceu nos seus palcos ao longo de todo o século vinte.

E conta, também, com um cuidadoso índice remissivo, listas de trabalhos, prêmios e condecorações a que a atriz fez jus.

Eu que sempre fui apaixonada pelo teatro e dediquei-me a estudar o teatro inglês, fiquei feliz em ter em mãos uma obra que detalha tão bem um século fundamental do teatro brasileiro. Vi Fernanda uma vez no palco, quando trouxe a peça “Dona Doida” para o Teatro Paulo Pontes, da Paraíba. No cinema, pude vê-la várias vezes e não esqueço sua participação em “Central do Brasil”, de Walter Salles, uma obra-prima do cinema nacional.

Em tempo, me ocorre que Fernanda foi vítima de ofensas descabidas por parte de autoridade ligada ao atual governo. Desconhecer a importância de Fernanda Montenegro para as artes cênicas do Brasil, e mesmo da América do Sul é de uma grosseria, de uma ignorância, incabíveis, considerando-se que ela é uma senhora de 90 anos e tem um currículo invejável na área do cinema, do teatro, da teledramaturgia, do rádio, enfim, das artes dramáticas.

Recomendo veementemente a leitura do seu livro de memórias artísticas, uma lição de história e cultura para qualquer brasileiro.

Outro evento que iluminou meu fim de ano foi o vídeo do show de Ney Matogrosso, que o amigo Bob convidou para vermos na sua casa, confortavelmente instalados em poltrona diante da televisão. Ney é um artista completo, belo, ágil e é uma festa para os olhos e para os ouvidos vê-lo e ouvi-lo.

E assim encerro esta crônica, a última do ano, desejando a todos que me leem um venturoso ano de 2020, com muito cinema, muito teatro, muita música e muita literatura, reafirmando minha crença que “Só a arte salva!”

No período que antecede a alvorada do dia 06 de junho de 1832, Enjolras, um dos estudantes que integra a Sociedade Amigos do ABC, faz um d...



No período que antecede a alvorada do dia 06 de junho de 1832, Enjolras, um dos estudantes que integra a Sociedade Amigos do ABC, faz um discurso emocionado e vigoroso, para os revoltosos que decidiram enfrentar as forças monárquicas, tendo como bastião a barricada da rua de Chanvrerie (extinta em 1838, com a abertura da rua Rambuteau), que começava na rua Saint-Denis e terminava na rua Mondétour, no quarteirão dos Halles.

Enjolras, para Hugo, representava, com relação aos demais amigos, “a lógica da revolução”, “Antínoos furioso”, por sua beleza, juventude e virilidade (Os Miseráveis, Parte III, Livro IV, Capítulo I). O seu discurso, antes da carga das forças constitucionais, é uma despedida exaltando as virtudes da república e encarnando os seus princípios fundamentais: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Nada menos republicano do que a luta mesquinha pelo poder para eternização no poder; nada mais digno do ideal da RES PUBLICA do que a consciência do que se pode e deve fazer para se conseguir a síntese das soberanias representadas pela Liberdade, Igualdade e Fraternidade, numa Sociedade (Le point de d’intersection de toutes ces souverainetés qui s’agrègent s’appelle Société. – O ponto de interseção de todas estas soberanias que se agregam se chama Sociedade).

E como se constrói essa Sociedade? Vejamos os pressupostos de Enjolras. Sendo a Liberdade a soberania do homem sobre si mesmo; a Igualdade, a identidade de concessão para formar o direito comum, que cada um faz a todos; a Fraternidade, a proteção de todos a cada um, assim se faz a Sociedade. O básico, porém, é a Igualdade, que tem um órgão: a instrução gratuita e obrigatória. Óbvio, não? Mas os que se engalfinham pelo poder, para se manterem no poder, detestam essa obviedade, pois ela os retira do poder para concedê-lo a quem é seu verdadeiro dono – a população.
Diz Hugo:

“O direito ao alfabeto. É por aí que é preciso começar. A escola primária imposta a todos, a escola secundária oferecida a todos (hoje, se fosse vivo, ele manteria o “imposta”...), é aí que reside a lei. Da escola idêntica sai a sociedade igual. Sim, ensino! Luz! Luz! Tudo vem da luz e para ela retorna” (Parte V, Livro I, Capítulo V).

Hugo via o século XIX como grande, mas acredita a felicidade estar no século XX, com a educação universal, quando não teríamos mais a temer a fome, a exploração, a prostituição, a miséria, o cadafalso, a espada e as batalhas... Para que isto possa acontecer, as revoluções são necessárias, mas a revolução que traga como resultado a civilização (“Révolution, mais civilisation”, Parte III, Livro IV, capítulo I), como pensava Combeferre, o filósofo da Sociedade dos Amigos do ABC.

Visionário, Hugo legou a receita de uma sociedade humana. Não contava ele que a mesquinhez política não pensa na humanidade, mas na individualidade e no egoísmo. Não teve o desprazer de ver as gerações futuras apoiando ditaduras e corrupções de um lado e de outro, se xingando mutuamente e defendendo, de maneira incondicional, os que manipulam o povo, para a sua satisfação pessoal e para seus projetos espúrios de política abjeta.Tolos, que se assemelham às zebras, antílopes, símios e gnus comemorando o nascimento do pequeno leão Simba, que um dia será seu predador.

Demorei muito para perceber que dentro daquela pessoa serena, disfarçada em calma, habitava uma alma inquieta, dotada de uma força indomáve...


Demorei muito para perceber que dentro daquela pessoa serena, disfarçada em calma, habitava uma alma inquieta, dotada de uma força indomável.

Teimosa...totalmente teimosa. Acreditava na transformação e principalmente, acreditava que todas as pessoas possuíam um potencial e buscava fazer desabrochar algo que ninguém esperava.

Sua trajetória começou trazendo crianças, portadoras de deficiência, para serem “trabalhadas” na nossa casa. Por ser professora, encontrou na alfabetização o primeiro passo de sua crença no possível. Em tempos onde essas crianças viviam guardadinhas em suas casas, ela foi pescando uma a uma, convencendo pais, convencendo pessoas da cidade até que se viu rodeada de crianças e adolescentes e acabou fundando a APAE no interior de Minas. A ela, agregaram-se profissionais que também confiaram na crença do possível e os ensinou a pensar sobre a vida de cada um daqueles seres que precisavam ser vistos com dignidade e carinho.

Não satisfeita e apesar de leiga, começou a estudar sobre o cérebro humano e vorazmente buscou métodos e padrões que poderiam estimular o potencial daqueles que apresentavam algum déficit motor ou intelectual.

Participou de congressos, visitou outras instituições, leu muito, pesquisou, mas o que mais importava era seu espirito desbravador e forte que dava esperanças a pais desenganados, de que seus filhos poderiam alçar novos horizontes.

Nunca contou o número de pessoas que passaram por ela durante mais de quatro décadas. Viu crianças engatinharem, andarem, correrem. Viu inúmeras aprenderem a balbuciar, falar, ler e escrever. Ensinou muitas delas a dar laço nos sapatos, a segurar a colher, escovar os próprios dentes. Testemunhou diversos pais chorarem ao ouvir a primeira palavra dita por um filho já crescido. E acolheu muitos e muitos beijos babados e abraços desajeitados cheiinhos de carinho de “seus meninos”.

Achou que ainda era pouco o que fazia e quis promover uma verdadeira integração. Criou um centro de estimulação da inteligência onde criancinhas sem deficiência brincavam aprendendo, além de conviverem num mesmo ambiente com outras “diferentes”. Não sei se entre elas alguma percebeu diferenças, pois conviviam alegres e pacificamente. Umas aprendendo com as outras.

Para comemorar seus sessenta anos, inventou uma viagem exótica. Vendeu o carro e gastou o dinheiro passando dois meses na Índia. Voltou com o cabelo faiscando de hena vermelha, com os olhos brilhando de felicidade e com a certeza de que existia um povo generoso, alegre e espontâneo, mesmo cercado de uma tremenda pobreza.

Depois que completou setenta anos, todos esperavam por sua aposentadoria, pelo tempo que ela dedicaria a si própria para andar na praia, talvez fazer tricô, assistir filmes... Pois foi quando ela iniciou uma nova fase de vida. Através de suas pesquisas e pela própria experiência pessoal de não deixar-se esmorecer, iniciou um trabalho de estímulo à memória voltado para idosos. Vinculou suas pesquisas anteriores a exercícios motores, com atividades específicas para que o envelhecimento das pessoas fosse dilatado e dotado de muito mais qualidade. Este trabalho cresceu e ela o vai desenvolvendo com vários “alunos” e o explanando através de palestras e encontros onde mostra que a idade não limita, adiciona.

Hoje, aos oitenta e três anos ela continua a desenvolver suas atividades, dirige por todo lado, caminha pela praia, pratica stand up paddle, mantém uma invejável vaidade, adora cinema, está sempre se atualizando em diversos assuntos, além de participar de congressos e encontros sobre o envelhecimento.

Teve quatro filhos e eu sou a mais velha deles. Assistir à trajetória da mamãe foi um privilégio e é uma grande lição de viver. Com ela aprendi que a generosidade, não só aquela que doa dinheiro e bens, mas aquela em que se usa inteligência, percepção e vontade de promover a evolução de outras pessoas é a verdadeira generosidade. Sei que é o emendar uma atividade na outra que a mantém lúcida e que ao viver essa história tão cheia de “tudo” ela carrega dentro de si um mundo bonito, feliz e plenamente realizado.

Esperamos, os quatro filhos, sete netos, dois bisnetos e mais uma bisneta próxima de nascer, que ela viva por muitos anos sendo nosso exemplo de amor, ponderação e energia.


Cristina Lugão Porcaro é bacharel em artes plásticas, psico-pedagoga e escritora

A passagem do ano nos torna filosóficos. Incita-nos a pensar na morte, no tempo, em Deus. Uma das frases que mais me impressionaram na a...



A passagem do ano nos torna filosóficos. Incita-nos a pensar na morte, no tempo, em Deus.

Uma das frases que mais me impressionaram na adolescência foi: “Nunca alcancei a graça do ateísmo perfeito”. Quem a escreveu foi Carlinhos Oliveira, cronista do Jornal do Brasil e boêmio carioca. Carlinhos morreu de pancreatite alcoólica e viveu torturado por angústias metafísicas. De dia negava Deus, de noite tinha medo do escuro e O chamava.

A frase dele me marcou por me abrir os olhos para esta verdade profunda: tanto a crença como a descrença em Deus independem da nossa vontade. Nesse delicado terreno do espírito não escolhemos, somos escolhidos. Assim como existe uma “graça” no sentido positivo, que afirma Deus, existe outra no sentido oposto, que O nega.

É tão difícil merecer a primeira como a segunda. Talvez para esta última se necessite até de mais sofrimento e grandeza. Ninguém risca Deus da vida sem substituir a confortável ilusão que ele representa por um senso ético profundo.

Talvez o drama de Carlinhos viesse de ele ainda perseguir tal senso e, ao mesmo tempo, não poder mais regredir às fantasias que lhe alimentavam a crença. Acabou órfão de Deus e de si mesmo.

A minha paixão por João Pessoa faz-me esperar o ano inteiro pela floração dos ipês. Eu os chamo de “nossa árvore de Natal”, pois marca par...



A minha paixão por João Pessoa faz-me esperar o ano inteiro pela floração dos ipês. Eu os chamo de “nossa árvore de Natal”, pois marca para mim a chegada da temporada natalina à nossa cidade.

Mas este ano quem chegou primeiro foi a decoração de Natal. Um primor: a cada ano nossos artistas conseguem superar a decoração do ano anterior.

Nos idos dos anos 1950 o fotógrafo José Lyra, exímio pintor e por muitos considerado o melhor retratista da Paraíba, compôs seu espetacular quadro A Ponta do Cabo Banco, da sua série Hetairas da Penedia. Tudo bem, mas quase todos os grandes pintores paraibanos deixaram as marcas de suas pinceladas naquele promontório que se destaca na nossa paisagem. E que se encontra ameaçado.

O que, então, distingue o quadro de Lyra dos demais? Um detalhe sui generis: a SENSUALIDADE da obra! Pois a falésia e seus acidentes são nada menos que MULHERES NUAS!

Isso mesmo: mulheres sentadas, deitadas, curvadas, em pé. Brancas, pretas, pardas, amarelas. Dezenas, centenas de mulheres nuas. Espetacular! Simplesmente genial.

Pois bem, seis décadas depois, e eis que a nossa querida cidade ganha uma decoração natalina igualmente suis generis. Pois além da imensa beleza decorativa que já é peculiar ao Natal de João Pessoa, as árvores ganharam linhas luminosas belíssimas, que lhe conferem uma sensualidade inusitada.

Venha conferir o que eu digo. Percorra a avenida Beira-Rio à noite. Passeie pela Lagoa e pela praça da Independência. Desça a avenida Epitácio Pessoa. Encontrará nas árvores lindas figuras abraçadas, suas formas sutilmente delineadas pelas luzinhas, formando casais comemorando a beleza da época. São dezenas, centenas de namorados luminosos e sinuosos, enlevados num abraço eletrônico sem fim.

Aguardei ansiosamente a florada dos ipês amarelos, que chegaram completando o clima de sensualidade da nossa cidade, vestindo-a numa belíssima lingèrie dourada. Um lindo presente de Natal!


sapoti! sapoti! sapoti! morcego! morcego! morcego! amor cego por ti! amor cego por ti! amor cego por ti! não escrevi à faca o teu n...



sapoti! sapoti! sapoti!
morcego! morcego! morcego!
amor cego por ti!
amor cego por ti!
amor cego por ti!

não escrevi à faca
o teu nome
no tronco do sapotizeiro,
mas na raiz.

na mais profunda raiz de mim mesmo.

domiciliares

b) chegar em casa
é desatar nós
da gravata
aos
cadarços.

é deixar-me livre
dentro das chinelas
e fora do bridge.

é girar com os dedos
o bico dos teus seios
como um segredo
de caixa-forte.

é abrir-te
para os nós cegos
do meu amor

domiciliares

e) mergulhas a roupa
no tanque
e desentranhas
os vestígios das ruas,
das ruelas,
dos becos e vias
de muitas mãos
paralelas
à mão única do meu amor.

língua

espada fora da bainha.

crista de galo
na rinha
dos lábios.

fogo chovendo no teu molhado.

nômade

acha que atritas,
o meu falo queima.

somos trogloditas
descobrindo o fogo.

crescem labaredas.

sob a braguilha,
armo uma tenda
com a minha glande.

e o meu falo nômade
rumo à tua fenda
levanta acampamento.

à queima-roupa

nua, ateias fogo
às minhas vestes
e o teu corpo despe-me
em carne viva.

ciúme

deito o meu ouvido no teu peito
e ouço o batuque de uma tribo
no tambor de olvido do teu coração

avenida dos tabajaras (III)

os teus seios
eram frutos
de um jambeiro.

e se os tocava,
o teu rosto
(vermelho)

era o pólen
e a lava

de mil jambeiros
acendendo-me
na avenida dos tabajaras.

Ah, meu amigo Fred... que surpresa foi essa, rapaz? Precisava mesmo ser agora? A gente sabe que esse agora não tem hora, e quem sabe não f...



Ah, meu amigo Fred... que surpresa foi essa, rapaz? Precisava mesmo ser agora? A gente sabe que esse agora não tem hora, e quem sabe não faz a hora, mas você deixou os pobres mortais aqui de bico rachado... Como aquele passarinho que sai pelos ares, serelepe e voejante, e, de repente, se distrai e bate com a cara no tronco. Fica atordoado, zonzo e percebe que rachou o bico. Pois é, ficamos assim.

Mas é isso mesmo. O que vem lá do céu não é somente a nossa vã filosofia incapaz de entender. Tem muita coisa por trás das nuvens, dos trovões, da chuva, da lua, do Sol... E a gente sabe que este mistério está todo abrigado pela Lei Suprema que rege e sustenta um montão de galáxias. Inclusive essas surpresas.

Agora, cá pra nós, amigo Féu (eita, era assim que lhe chamávamos...) que ideia foi essa de partir acima das nuvens, cara? Quanta leveza desejasse ter no momento deste duplo voo!... Parece até que queria aproveitar o embalo das turbinas para se alçar logo à Grande Viagem.

Eu sei que de viagem você entende. Quantas vezes comentamos via WZap sobre os périplos de além-mar, tão familiares a nós também. E como você era atencioso, respondendo, compartilhando, lendo nossos textos, falando do meu amado pai... Aliás, dos nossos amados pais, pois sei que de Dr. Praxedes você também é um grande amigo. E a ida a Austrália, hein? Que delícia!

Essa viagem agora, meu amigo, tenha certeza, possui uma amplitude muito maior. É verdade que por um tempo você estará meio zonzo, sem saber direito o que aconteceu (ou será que sabe?...), mas, logo logo, despertará para um mundo infinitamente belo, leve, sutil e bom como você. Daí a importância de que nós, daqui, não cultivemos por muito tempo essa tristeza amarga, e, como costumo dizer, consigamos transformar você “naquela saudade que eu gosto de ter.”

Foi mais cedo que esperávamos? Sim, claro. Mas o que é o tempo daqui comparado com o tempo dos céus? Em breve partiremos também e no mundo daí veremos que os relógios nem existem. Sigamos.

Prazeres, haverá. Não como os muitos que desfrutasse com esse bom humor inigualável, essa cara de quem está curtindo com a cara da gente, com a cara da vida, das coisas todas. Continuará dando, com certeza, essa risada adorável que todos gostávamos de ouvir.

As festas serão outras, mais sublimes do que os assustados e embalos de sábado à noite no Clube dos Oficiais, na companhia de meu mano, Tuca, seu grande amigo das descobertas adolescentes. Assim como de Juca Jardelino, Virgínia Dantas, Tico Gomes, Torbes Gambarra, Ana Adelaide e tanta gente boa daqueles tempos.

É isso, amigo, que saudade baterá, de vez em quando... Imagine em Adriana, tua doce e meiga companheira, bela como uma flor. Imagine seus filhos amados e amigos. Torço muito para que eles logo possam colocar a gratidão acima da tristeza, pois o privilégio de ter tido e convivido com uma pessoa como você nessa encarnação é imensurável. Eles sabem disso.

Fiquei pensando muito na sua partida, de lá do avião. Será que você olhava pela janelinha para aquele tapetão macio de nuvens e resolveu, de repente, que seria agora? Puxa, que ideia. Ao menos a janelinha pudesse ser aberta para que você pudesse acenar de longe, saltitando pelas brancas paragens, dizendo pra gente com o sorriso de sempre: “Desculpem sair assim, sem avisar, galera, mas logo nos veremos e continuaremos a sorrir juntos”.

Até breve, Féu!