No ano de 2020, os quarenta anos da morte de Vinícius de Moraes deram motivo para uma série de registros, na mídia em geral, rememorando ...

Os argentinos e o poeta brasileiro

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No ano de 2020, os quarenta anos da morte de Vinícius de Moraes deram motivo para uma série de registros, na mídia em geral, rememorando a sua obra e a sua vida. Mas, nos primeiros dias do mês de outubro, um acontecimento deu destaque mundial ao nome do poeta carioca. No dia 3, o Vaticano divulgou a encíclica Fratelli Tutti (Todos Irmãos), em que o Papa Francisco trata da Fraternidade e da Amizade Social. No Capítulo VI da carta (“Diálogo e Amizade Social”),
o Papa argentino, o mais importante líder do mundo atual, abre o tópico “Uma Nova Cultura” com as palavras que Vinícius colocou no “Samba da Benção”:


“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”

O Samba da Benção é uma das primeiras composições da fecunda parceria de Vinícius de Moraes com o violonista Baden Powell. Composto em um local inusitado (uma clínica médica onde os parceiros se recuperavam de seus excessos etílicos), o samba tem uma estrutura melódica simples e repetitiva. Intercalado por saravás, Vinícius reverencia grandes nomes da música popular do Brasil: Dorival Caymmi, Noel Rosa, Ary Barroso, Ismael Silva, Pixinguinha, o maestro pernambucano Moacir Santos (“que não és um só és tantos”, como diz a letra da música) e vários outros.

A menção feita pelo Papa Francisco não ocasionou a primeira repercussão internacional do “Samba da Benção”. Em 1966, a música, com o título Samba Saravah , interpretada pelo cantor e compositor francês Pierre Barouh, foi incluída na trilha sonora do filme Um homem e uma mulher (Une homme et une femme, 1966) do diretor Claude Lelouch.

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O filme, além de ter sido um grande êxito de público, recebeu vários prêmios importantes, entre eles a Palma de Ouro, em Cannes (França), e, nos Estados Unidos, o Oscar e o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro. A trilha sonora (composta pelo francês Francis Lai), cujo tema principal foi um das músicas mais executadas nos anos 1960, também contribuiu para o sucesso mundial do “Samba da Benção”.

Talvez não tenha sido através do filme de Claude Lelouch que o padre jesuíta argentino Jorge Bergoglio teve contato com a obra de Vinícius de Moraes, para usar, agora como o Papa Francisco, as palavras do “Samba da Benção” em sua encíclica “Fratelli Tutti”.

Um aspecto pouco conhecido no Brasil sobre Vinícius de Moraes é o imenso prestígio por ele desfrutado na Argentina, como poeta e compositor de música popular. “Para Vivir um Gran Amor”, o seu primeiro livro lançado na Argentina, teve quinze edições em dois anos. A admiração dos portenhos por Vinícius é demonstrada na obra “Nuestro Vinícius. Vinícius de Moraes em El Rio de la Plata” (na edição brasileira: “Vinícius Portenho”, Casa da Palavra, 2012), da jornalista argentina Liana Wenner.

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Vinícius de Moraes fez grandes amigos no ambiente cultural portenho, entre eles o escritor Ernesto Sabato e o compositor Astor Piazzolla. O poeta brasileiro fazia, frequentemente, temporadas de shows na Argentina, algumas de meses seguidos. De suas apresentações na boate “La Fusa” foram gravados discos que chegaram a ser dos mais vendidos e cultuados pelos argentinos. Em uma das suas alongadas excursões no país vizinho, Vinícius conheceu Marta Rodriguez, 38 anos mais nova, que se tornou a oitava das nove esposas que o poeta teve ao longo de sua vida.

Foi na Argentina que Vinícius iniciou a sua parceria musical mais longeva (durou 10 anos, até a morte do poeta) e produtiva (cerca de 100 canções). Em 1970, ao procurar um músico para acompanhá-lo em uma excursão, Vinícius se lembrou de Toquinho,
jovem violonista que havia participado, na Itália, de um disco que ele fizera com Giuseppe Ungaretti (poeta) e Sergio Endrigo (cantor/compositor) e que teve o título “La Vita Amico É L’Arte Dell’Incontro”, inspirado no “Samba da Benção” (Samba delle Benedizioni). É o próprio Toquinho quem conta:

No começo da tarde, quando acordei, minha mãe tinha um recado, para eu ligar para o Vinícius de Moraes. Peguei aquela ponta de papel de pão com o número escrito por Dona Diva. Sonolento, não sabia se ainda dormia, e sonhava, ou se tudo aquilo era real. Por via das dúvidas não custava conferir. Do outro lado da linha a constatação, era a voz do poeta, sem rodeios, direta: "Toco? É Vinícius de Moraes. Gostei muito do seu trabalho naquele disco produzido por Bardotti na Itália. Estou indo para uma temporada na Argentina com uma cantora nova, a Maria Creuza, e preciso de um violonista. Que tal, Toco, topa?”

Nessa temporada argentina, Toquinho e Vinícius criaram suas primeiras composições. Na primeira delas, Como Dizia o Poeta , Toquinho usou o tema do Adagio do Concerto em Dó Menor , para violino e cordas, do compositor barroco Tomaso Albinoni. O sucesso dessa excursão na Argentina consagraria um formato de shows que Vinícius adotaria inúmeras vezes: “Poeta, Moça e Violão”. O poeta e o violão ficavam sempre inalterados, mudando apenas a cantora: Maria Creuza, Maria Bethânia, Marília Medalha e Clara Nunes.


Um trágico episódio acabou afastando Vinícius dos palcos da Argentina. Em 1976, o poeta fazia temporada ao lado de Toquinho, em Buenos Aires, na qual também era acompanhado do pianista Tenório Jr — o Tenorinho —, um dos instrumentistas mais talentosos do Brasil. Embora houvesse gravado, aos 21 anos, apenas um único disco autoral (ainda hoje cultuado — disponível na plataforma Spotify), Francisco Tenório Jr participara, como pianista, de discos importantes da vertente samba-jazz da bossa-nova e era muito requisitado para gravações de outros artistas.

Naquela época (os últimos dias do governo da Presidente Isabelita Perón), a situação política da Argentina fez com que a temporada de Vinícius em Buenos Aires fosse abreviada. Após a última apresentação, ele, Toquinho e os demais músicos retornaram para o hotel, que ficava no centro da cidade. Regressariam para o Brasil no dia seguinte.
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Durante a madrugada, Tenório Jr. saiu do hotel e deixou um bilhete para Vinícius, avisando que iria fazer um lanche e comprar remédios. Sumiu na noite de Buenos Aires.

Vinícius de Moraes, Toquinho e o poeta Ferreira Gullar (que estava exilado no país) procuraram Tenório Jr., exaustivamente, em delegacias, hospitais e necrotérios. Vinícius, ex-diplomata, mobilizou a embaixada brasileira na Argentina para tentar encontrar o músico. Em entrevista dada, na época, em Buenos Aires, o poeta considerava inexplicável o que estava ocorrendo, já que o pianista “não tinha nada, nada, com política, era absolutamente apolítico e levava os documentos no bolso, seguindo orientação dos empresários”.

Cinco dias depois do desaparecimento de Tenório Jr, os militares assumiam o poder na Argentina, iniciando uma das ditaduras mais hediondas já implantadas no Continente. Números oficiais estimam em 10 mil os mortos e desaparecidos na ditadura militar argentina. Para Toquinho, “Tenório era um tipo original, muito alto, de barba, cabelos longos, usava um capote comprido, foi confundido com alguém”. Tenório Jr tinha 34 anos e esperava o nascimento de seu quinto filho. Vinícius nunca mais fez shows na Argentina. Quatro anos depois do episódio, em 1980, faleceu no Rio de Janeiro.

Passadas duas décadas do desaparecimento de Tenório Jr, o mistério começava a ser desvendado. Depoimento de um ex-integrante da repressão argentina indicava que o pianista havia sido sequestrado, torturado e, depois, morto em dependências da Marinha da Argentina, na presença de agentes do famigerado SNI brasileiro. No livro “O Crime contra Tenório – Saga e Martírio de um Gênio do Piano Brasileiro”, o guitarrista Fredera (Frederico Mendonça) confirma essa versão, acrescentando que a Embaixada do Brasil na Argentina tinha conhecimento da detenção do músico e que “começavam os preparativos para libertá-lo quando o SNI manifestou interesse pelo preso. Tenorinho foi intimado a delatar artistas comunistas”.

Em 2001, foi publicado, pela jornalista argentina Stella Calloni, um livro sobre a Operação Condor (Operación Condor: Pacto Criminal). A Operação Condor era uma atuação consorciada dos aparelhos de repressão das ditaduras de vários países latino-americanos. No livro, Stella Calloni afirma que Tenório Jr. foi torturado e morto por agentes argentinos com a participação de um major do exército brasileiro, cujo nome é dado pela jornalista.

O corpo de Tenório Jr nunca apareceu. Provavelmente, como ocorreu com muitos dos que foram assassinados pela ditadura militar argentina, o músico teve o seu corpo desfigurado pelas torturas e jogado em uma vala comum em um cemitério clandestino, de lugar incerto.

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  1. Excelente artigo, Flávio com um texto de um pesquisador nato.

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  2. Flavio Brito nos revela aspectos inusitados, insuspeitos ee nuca contados dos meandros da música brasileira.
    Mostra que a sua bateria eletrônica dá tiros rápidos e certeiros.
    Parabenizo por nos brindar com mais um texto de elevado nível. Enriquecido pela incansável e competente equipe de produção do ALCR.
    José Mário Espínola

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