Gilberto Freyre escreveu dois artigos de enorme importância para a bibliografia crítica de Augusto dos Anjos. O primeiro foi redigido em i...

Gilberto Freyre, leitor de Augusto dos Anjos

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Gilberto Freyre escreveu dois artigos de enorme importância para a bibliografia crítica de Augusto dos Anjos. O primeiro foi redigido em inglês e publicado em The Stratford Monthly (Boston, setembro de 1924). Traduzido para o português por Miguel Lopes Viera Pinto, está reproduzido em Perfil de Euclides e outros perfis, que foi publicado em 1944 pela José Olympio, na série Documentos Brasileiros.

Esse artigo recebeu o título de “Nota sobre Augusto dos Anjos” e consiste numa breve apreciação sobre a poesia do paraibano, destacando-lhe o pessimismo, a angústia metafísica, a aversão à natureza tropical. Na linguagem de Augusto, o autor de Casa Grande & Senzala reconhece uma “aspereza toda sua”, uma “angulosidade de expressão”
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decorrente em grande parte, segundo ele, do uso de termos científicos. Em razão dessa aspereza, ou dissonância, ele vincula a poética do paraibano à arte dos expressionistas alemães, antecipando-se a estudiosos como Anatol Rosenfeld e Lucia Helena.

No artigo de 1924, Gilberto Freyre reconhece em Augusto dos Anjos “alguma coisa de um moderno pintor expressionista. Um gosto mais de decomposição do que de composição” – traduzido, segundo ele, num “audacioso sabor mais para os olhos do que para os ouvidos.” Ou seja, mais para ser visto do que escutado, embora adiante ele reconheça a mesma marca expressionista “no latim duro da historia natural”, que o paraibano teria preferido ao “latim mole da Igreja”. Um latim, ainda segundo o sociólogo, com sotaque alemão e inglês, a evocar no plano fônico o parentesco com o anglo-saxão, a pré-língua inglesa que o pernambucano por esse tempo estudava nos Estados Unidos.

O curioso nesse artigo é a ênfase com que o sociólogo vincula as angústias do poeta às suas doenças, especialmente a tuberculose. Em certo momento ele chega a compará-lo a Robert Louis Stevenson, que, ao contrário do paraibano, teria sabido enfrentar com coragem “o inimigo dentro do próprio corpo: nos pulmões”. A referência à tísica aparece outras três vezes no texto, justificando os padecimentos do poeta e transferindo os motivos de sua angústia do âmbito psicológico, ou propriamente moral, para o físico. Ora, sabe-se que Augusto nunca foi tuberculoso e que a doença, na sua poesia, é antes uma referência simbólica. É mais uma metáfora do que um sintoma, e como tal deve ser interpretada.

Essa pequena inconsistência biográfica não tira o brilho de um artigo sagaz, cheio de ricas aproximações hermenêuticas e de um sensualismo estilístico que valoriza, para além do pessimismo e da mórbida introspecção de Augusto,
o que há nele de profundamente vital. O reparo no entanto deve ser feito – primeiro, em proveito da verdade; segundo, para que melhor se apreenda a melancolia do poeta. Sabe-se que é próprio do melancólico eleger o corpo como alvo de suas agressões. Nele, as angústias decorrentes de um superego tirânico se revelam como patologia somática. Daí na lírica do nosso poeta as referências à morfeia, à artrite, à elefantíase e também à tuberculose.

O segundo artigo do sociólogo apareceu em julho de 1991, na revista Colóquio/Letras: "Um encontro em dois eus de brasileiros preocupados com a renovação da língua portuguesa no Brasil", Ensaio, p. 183-194. O autor inicia o texto referindo-se ao artigo anterior, isto é, indagando-se por que, estudante nos Estados Unidos e tendo sido chamado a colaborar em revista norte-americana, escolheu como tema Augusto dos Anjos. Justifica a escolha explicando que o poeta o atraiu “pela singularidade do modo que viria a chamar-se sociolinguístico de ser poeta”. Em que consistiria esse modo sociolinguístico de poetar? Primeiro, em ostentar um eu que, “sendo o dele, era também um tanto o de outros brasileiros”. Segundo, no fato de Augusto “procurar nova expressão literária para a língua portuguesa”. Concorria para essa nova expressão “o domínio como que pioneiro sobre consoantes”, efeito da incorporação do léxico científico à língua do poeta.

Nesse ponto é que ele aproxima o idioma de Augusto dos Anjos, com a sua riqueza de aliterações, sinéreses, vocábulos esdrúxulos, ao dialeto anglo-saxão, observando que foi por estudar naquele momento essa língua que se interessou pela poesia do brasileiro. “O curso me pôs em contato com uma língua em estado de tal modo telúrico que revolucionou toda a minha visão da própria língua portuguesa” – explica. O conhecimento do anglo-saxão despertou-o para valores sonoros e semânticos que, não se harmonizando com a nossa castiça latinidade, traduziam impressões e sentimentos próprios do homem brasileiro – sobretudo o homem simples, preso aos mistérios e apelos da terra.

Com efeito: a sedução dos versos de Augusto sobre o homem comum é atestada pela enorme popularidade que o Eu alcançou desde a sua publicação, em 1912. Explodem nele acordes dessa musicalidade
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dissonante na qual o sociólogo viu semelhanças com o anglo-saxão, musicalidade estranha e no entanto afeiçoada ao ouvido e ao espírito do brasileiro, que parece amar o poeta menos quando o entende do que quando ouve versos como estes: “Era antes uma tosse ubíqua, estranha,/ Igual ao ruído de um calhau redondo/ Arremessado, no apogeu do estrondo,/ Pelos fundibulários da montanha!”; ou estes: “Livres de microscópios e escalpelos,/ Dançavam, parodiando saraus cínicos,/ Bilhões de centrossomas apolínicos/ Na câmara promíscua do vitellus.”; ou, ainda, estes; “A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua/ Que da ígnea flama bruta estriada espira;/ A formação molecular da mirra,/ O cordeiro simbólico da Páscoa;” – todos extraídos do poema “As cismas do Destino”.

O segundo artigo é em muitos pontos uma reescrita do primeiro, na medida em que alarga e aprofunda temas como o do expressionismo, o da dissonância expressiva, o da modernidade de Augusto. Sobre esta, vale a pena mencionar o reparo que Gilberto Freyre faz aos nossos modernistas, insensíveis que se mantiveram ao fenômeno Augusto dos Anjos. Segundo ele, os modernistas não souberam “descobrir em Augusto (...) um pós-modernista mais fraterno com eles do que Mários e Oswalds de Andrades! Mais telúrico do que esses irredutíveis beletristas de gabinete”.

Com esses dois textos, Gilberto Freyre concorreu para uma melhor avaliação da poesia de Augusto. Foi muito importante para o pernambucano afastar-se do Brasil a fim de compreendê-lo e, em outro país, reconhecer o que há em nós de mais característico. Não é de admirar que, procurando sentir o país de fora, tenha-o impressionado a particular expressão poética de Augusto dos Anjos. Nela se reflete, como em poucos autores brasileiros, nossa índole romântica, nosso sensualismo desvairado, nossas veleidades intelectuais contrastadas com a submissão supersticiosa ao desconhecido. Enfim, tudo o que de escuro e iluminado – ou seja, de caracteristicamente barroco – habita o nosso perplexo coração.

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