Muitos amigos, não sendo da área específica de Letras, me perguntam qual a diferença entre narração e narrativa. Tentarei uma explicação que possa ser didática, sem fugir das questões técnicas. A narrativa é o todo, é o plano geral que encerra uma história que se conta. Dentro desse todo, há vários meios de que o narrador se utiliza para contar a história. Estes meios chamamos de recursos narrativos. Tomemos, como exemplo, um poema épico, em lugar de um romance ou de um conto, narrativas mais fáceis de se evidenciar a diferença que aflige várias pessoas.
A Eneida é um poema narrativo, portanto uma narrativa, e há vários recursos utilizados por Virgílio para narrar a história de Eneias. E é uma narrativa porque necessita de um narrador, alguém distanciado do fato, no tempo e no espaço, e que não participa necessariamente da história, para contá-la. No caso específico da Eneida, o narrado é um poeta, como acontece em todos os poemas épicos.
Victor Satt
A Narração é a parte principal do poema, pois constitui-se de cerca de 95% do assunto, iniciando no verso 12 do Livro I e só terminando no verso 952 do Livro XII, o último do poema. No caso da Eneida, não existe o Epílogo, como em outros poemas épicos, a exemplo da Ilíada e da Odisseia, tendo em vista que a obra de Virgílio não foi terminada, tendo sido publicada postumamente, a pedido de Otávio Augusto César, em 17 a. C.
A parte integrante do poema épico chamada de Narração está, por sua vez, constituída dos seguintes recursos narrativos: a narração propriamente dita, que se entende como o ato de narrar fatos e acontecimentos, de
Victor Satt
O Livro I, Eneias na Líbia, é constituído de 756 versos, que podem ser decompostos da seguinte forma:
Proposição: versos 1-7
Invocação: versos 8-11
Narração: versos 12-756
No tocante à Narração, vejamos como ela se constitui:
A narração propriamente dita começa no verso 12, estendendo-se até uma parte do verso 37, quando começa um monólogo de Juno que segue até o verso 49. Após essa interrupção, a narração continua até o verso 64, quando Juno se dirige a Éolo, a divindade que preside os ventos. Trata-se nesse instante de um diálogo ou discurso direto, que ocupa os versos 65-75. Éolo, por sua vez, faz a sua réplica, em novo discurso direto, entre os versos 76-80. Em ambos os casos, o que caracteriza o discurso direto é o fato de que Juno e Éolo têm as suas palavras reproduzidas ipsis litteris pelo narrador.
Victor Satt
Retoma-se, mais uma vez, a narração no verso 142, alongando-se até o verso 197. No verso 198, inicia-se um discurso direto de Eneias aos companheiros, novamente sem réplica, que só acaba no verso 207. A narração é retomada no verso 208 até parte do verso 229, quando Vênus, num discurso direto interpela Júpiter, entre os versos 229 e 253. Após breve narração introdutória da réplica de Júpiter, entre os versos 254-256, dá-se o discurso direto do deus, compreendendo os versos 256-296.
A narração é retomada entre os versos 297 e parte do 321. Do 321 ao 324, vemos novo discurso direto de Vênus. Após uma breve narração introdutória da réplica de Eneias, no verso 325, acontece o discurso direto de Eneias, entre os versos 326-334. O verso 325 começa com uma brevíssima introdução ao discurso de Vênus, que se estende até o hemistíquio do verso 370, cujo outro hemistíquio serve de introdução até o verso 371, da resposta de Eneias, em discurso direto, que se alonga até o verso 385, onde se repete a mesma estrutura do verso em dois hemistíquios, num misto de discurso direto e narração introdutória de novo discurso, versos 385-386. Do verso 386 ao 401, dá-se o discurso direto de Vênus, em resposta a Eneias. A narração é retomada nos versos 402-406, introduzindo o final do diálogo com o discurso direto de Eneias, nos versos 406-410, que Vênus já não ouve.
Victor Satt
A narração segue o seu curso a partir do verso 464 até o verso 522, mais uma vez mesclada de descrição. Do verso 523 ao 558, temos o discurso direto de Ilioneu à rainha Dido. Nos versos 559-561, a narração é retomada, apenas para introduzir o discurso direto de Dido, em resposta a Ilioneu, o que ocorre entre os versos 562-578. Outra rápida retomada da narração, entre os versos 579-581, para introduzir o discurso direto de Acates a Eneias, entre os versos 582-585, sem direito a réplica. Nova retomada da narração, versos 586 até parte do verso 595, quando se dá o discurso de Eneias a Dido, estendendo-se até um pouco mais da metade do verso 610. Na parte final do verso 610, a narração, que se estende até o verso 614, ocorre, de modo a introduzir o discurso direto de Dido, em resposta a Eneias, que vai do verso 615 até o verso 630.
Victor Satt
Falando em complexidade narrativa, destacamos duas passagens dentro do Livro I, para mostrar que, muito frequentemente, estes recursos não são puros. A separação que fazemos entre eles é didática e, ainda que eles possam aparecer isoladamente, o mais frequente é que eles se mesclem. A primeira passagem se situa entre os versos 227 e 296. O que temos aí? Do verso 227 à primeira cesura do verso 229 – ādlŏquĭtūr Vĕnŭs –, que corresponde aos dois dáctilos iniciais, existe um trecho de narração que prepara o discurso direto, inclusive com a presença de um verbo dicendi, o verbo introdutor do discurso, no caso adlŏquor, na sua forma adlŏquĭtur. Do restante do hexâmetro – Ō quī rēs hŏmĭnūmquĕ dĕūmquĕ –, correspondendo a um espondeu, dois dáctilos e um troqueu, marca o início do discurso direto de Vênus dirigido a Júpiter.
Victor Satt
O mesmo ocorre no discurso direto de Júpiter, em resposta a Vênus, após três versos introdutores do discurso (254-256), onde se vê a presença do verbo dicendi *for, na sua forma fātŭr. Júpiter de dirige à filha e a tranquiliza, desfiando o destino de Eneias, em sua resposta, com o discurso direto passando a ser uma narrativa, em forma de narração, da construção de Roma, desde a saída de Eneias de Troia, sua chegada ao Lácio, as lutas que ele vai enfrentar com Turno, a fundação do reino de Lavínio, a fundação de Alba Longa, a fundação de Roma, até chegar a César e a Augusto. Ou seja, ambos os discursos diretos, o de Vênus e o de Júpiter, tornam-se uma narrativa, no momento de sua realização, que se utiliza da narração como recurso.
Um texto exemplificativo sobre o assunto, por mais que se queira didático, não é suficiente para esclarecer toda a complexidade que envolve a narrativa e seus recursos. Cabe ao leitor, se quiser ir além da leitura de fruição e construir um aprendizado mais sólido a respeito do assunto, ler anotando e procurar estabelecer as diferentes formas de expressão do discurso, com relação ao texto que ele tem em mãos. Ao leitor que se contenta apenas com o prazer da leitura, as explicações não se fazem necessárias. É pular esta e se deliciar com o texto.