A passagem de um ano para o outro nada muda em nós. Sabemos disso, mas cultivamos a ilusão de que alguma coisa nova começa. É difícil encarar o novo ano sem lhe dar cores utópicas; isso compensa o que não conseguimos conquistar nos 365 dias que ficam para trás, e nos fortifica a esperança.
Um bom cardápio dessa utopia se encontra em “Vou-me embora pra Pasárgada”, o famoso poema de Manuel Bandeira. As imagens da Pasárgada do poeta correspondem a nossas fantasias comuns –
Kateryna Hliznitsova
Para muita gente, a maior delas é “ser amigo do rei”. Cair nas boas graças do maioral da Corte é fazer parte de uma confraria seleta, que tem acesso a mordomias e prazeres proibidos ao resto dos mortais. Verbas, cargos, comissões, imunidades. Quantos não sonharão hoje à noite com um passaporte para esse reino exclusivo, onde se ganha muito e de onde se sai com uma régia aposentadoria?
Outros preferem ter “a mulher que querem, na cama que escolherão”. Sabiamente o poeta intensifica a perspectiva do prazer referindo não apenas a figura feminina, como também o móvel no qual se daria o venturoso encontro. Pois há deles que, pela exiguidade ou a dureza, não se prestam à contorcida ginástica dos amantes. Além do mais, a resistência do móvel desperta na imaginação do aquinhoado com essa ventura a possibilidade de não ser uma mulher só, já que em Pasárgada todas vão olhar para ele. Todas não, assim também é exagero; só as bonitas.
Kateryna Hliznitsova
Há utopias para todos os desejos na composição do “São João Batista do Modernismo”. Em outro de seus famosos poemas, ele lamenta “a vida que podia ter sido e que não foi” – um dos versos mais pungentes da nossa lírica, pois expressa o que nos tornará mesmo tristes quando cruzarmos (bêbados ou não) o umbral de mais um ano.
Não há utopia que nos console desta certeza crua, a que chegamos toda vez que morremos um pouco, como agora: nossa vida é um desvio, um simulacro, uma cópia embotada do que podia ter sido – e não foi.
De qualquer modo, leitor, Feliz Ano-Novo!