O meu neto, Arthur tinha 8 anos – hoje está com 10 –, quando me perguntou se eu sabia que ele tinha uma madrasta e um madrasto. Mesmo sabe...

Madrasto e Boadrasta

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O meu neto, Arthur tinha 8 anos – hoje está com 10 –, quando me perguntou se eu sabia que ele tinha uma madrasta e um madrasto. Mesmo sabendo o que ele dizia, eu lhe pedi que me explicasse o que ele estava dizendo. Ele me disse que a namorada do pai era a sua madrasta; o namorado da mãe era seu madrasto.

Temos aí um ótimo exemplo do que se encontra no sistema da língua – a lógica simples da flexão nominal de gênero – e que, embora repudiado pela gramática artificial e pela gramatiquice neurótica,
encontra-se disponível na gramática interna do falante.

Claro que, por uma questão de bom senso, sem entrar nos meandros etimológicos, não cabíveis na ocasião, eu expliquei que, com relação ao homem, se diz padrasto. Mas elogiei a lógica com que ele, sem ter sido contaminado por gramatiqueiros, me explicou, corretamente, o que queria dizer, tendo em vista que são lições gratuitas da morfologia da língua, na sua transformação em linguagem e sem qualquer necessidade de teorias mirabolantes.

Lembrei-me imediatamente, com a tirada lógica de Arthur, do meu bom amigo Germano Romero que, na sua criatividade, chama a sua madrasta, Alaurinda, de boadrasta, retirando a carga semântica de malevolência que o termo madrasta ganhou em outras línguas, mas com um peso maior na língua portuguesa, tendo em vista a associação da sílaba inicial /ma-/ com o adjetivo má. São associações livres que a língua permite, independente de sabermos que o radical /madr-/ é apenas a sonorização do fonema dental médio do radical erudito /metr-/ do grego (μήτηρ, μητρός), que chegou para nós através do radical latino /matr-/, não menos erudito (mātĕr, mātris).

Existe, no entanto, uma diferença entre o uso de Arthur e o uso de Germano Romero. Na fala de Arthur, podemos ver que a língua, como um sistema, apresenta possibilidades (paradigma), que poderão se tornar realizações (sintagma), embora não haja qualquer obrigatoriedade para que a possibilidade se torne realização. Por existir no vasto repertório paradigmático, a realização, quando o falante deseja, torna-se natural, pertencendo, neste caso, a um campo de estudo específico da língua, que se chama morfologia. Madrasto, por oposição a madrastra é quase automático. Não o é, porque há um raciocínio muito rápido e imperceptível, ditado pelo sistema.

á o uso de boadrasta por Germano Romero requer um raciocínio mais explícito, trabalhado, em que o falante joga com a língua, numa espécie de ludicidade intencional. Já não se trata mais de um uso quase mecânico, mas de uma intenção de renovar sentidos. É a linguagem se recriando e ganhando uma verticalidade que não há na sua estrutura mais rígida, lógica e natural. Isto porque estamos no campo da semântica e da sua associação com a estilística, e não mais no da morfologia. Há uma intenção declarada, com um objetivo preciso de mudança de significado no vocábulo boadrasta, que não existe em madrasto. Este, uma previsão da língua; aquele, uma recriação da linguagem.

A lição que fica é a seguinte: se conhecermos um pouco do funcionamento da língua e ficarmos atentos a seus usos, nos diversos campos em que ela se realiza como linguagem, talvez possamos entender quão esdrúxulo e fora de propósito é querer inventar absurdidades e, pior, querer impor às outras pessoas um uso despropositado.

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  1. Muito bom. As palavras são mágicas, todas abracadabras. Ou não haveria o "Rio de Janeiro, fevereiro e março", do Gilberto Gil. Ainda agora, quando alguém, no facebook, se disse escandalizado por eu não tolerar Bolsonaro, citei - amigavelmente - a velha frase "Que seria do amarelo se todos gostassem do vermelho" - e só depois me toquei que pareceu estar me referindo a Lula. Por coincidência, o Astier Basílio me esclareceu, lá de Moscou, que o nome da célebre Praça Vermelha, de Moscou, ( Красная площадь, Krasnaya ploshchad ) está mal traduzido: esse "Krasnaya" não se refere à cor do regime nem dos tijolos dos edifícios em volta, mas significa "bonita". Esse "madrasto" do teu neto, Professor, me remeteu a um dos artigos do recente "Pequenos Estudos de Lingua(gem)", de José Augusto Carvalho, em que ele explica a forma infantil "fazi" como resultante "da analogia com verbos da 2a. conjugação, como "corri" ou "escrevi". Ou seja. Abracadabra... e o "nunc", do latim, vira "agora", tão opostos entre si quanto "push" inglês - empurre - e o nosso "puxe".

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    1. Anônimo1/2/22 08:15

      Isto mesmo, Solha! As palavras são mágicas e estão esperando que as faça se tornar o que são. As crianças são lógicas e descontaminadas da gramatiquice. Meu filho, que hoje tem 38 anos, quando era criança, pegava na direção do carro e dizia que era o "dirijor", traduzindo, sem saber, o pragmatismo do inglês. Agradeço, mais uma vez a sua leitura.

      Milton Marques Junior

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